4. NOVO MARCO LEGAL DAS STARTUPS E O INCENTIVO LEGAL AO INVESTIMENTO ANJO
É no contexto traçado nos capítulos anteriores que surgiu o novo marco legal das startups, que se concretizou na Lei Complementar 182/2021, bem como nas alterações trazidas para a Lei 6.404/1976, que trata da sociedade por ações, e para a Lei Complementar 123/2006, já citada, que regulamenta as microempresas e empresas de pequeno porte.
Nos termos do art. 3o da LC 182/2021, o novo marco legal se pauta no incentivo ao empreendedorismo inovador, em virtude de sua grande importância para o desenvolvimento econômico, social e ambiental. Para tanto, buscou-se criar um ambiente regulatório favorável a estas atividades, prezando pela segurança jurídica, liberdade contratual, modernização do ambiente de negócios, cooperação entre os entes públicos e o setor privado e promoção da competitividade das empresas nacionais.
Assim, neste capítulo iremos abordar as principais alterações trazidas pela nova legislação no que diz respeito ao tema deste trabalho, bem como analisar se estas mudanças de fato representam os avanços propostos pelo programa.
4.1 Ambiente regulatório
Primeiramente, é interessante verificar que o novo marco legal trouxe algumas disposições com nítida intenção de desburocratizar o ambiente empresarial brasileiro.
Uma delas é a previsão do art. 11 da LC 182, que traz a possibilidade de instituição do chamado sandbox regulatório pelos órgãos e entidades da administração pública.
Isto significa que a administração pública poderá autorizar que determinadas empresas inovadoras atuem dentro de um regime regulatório mais flexível e dinâmico, desde que obedeçam a certos parâmetros, o que é muito interessante, considerando que as startups frequentemente não se enquadram nas categorias regulatórias clássicas, aplicáveis às demais empresas (COUTINHO FILHO, 2021, 266,265).
Um excelente exemplo de sandbox regulatório instituído pelo novo marco legal é a introdução do art. 294-A na Lei 6.604/76, determinando que a CVM regulamente condições facilitadas de acesso das empresas de menor porte ao mercado de capitais
Ademais, a possibilidade do art. 293 da Lei da S.A. de que as companhias fechadas com receita bruta anual de até R$ 78.000.000,00 realizem suas publicações de forma eletrônica e substituam os livros previstos no art. 100 do mesmo diploma legal por registros eletrônicos também é de grande relevância, já que diminuem os custos destas companhias com despesas burocráticas.
Estas alterações, entre outras, demonstram a preocupação do legislador de facilitar a abertura de novas startups, o que se traduz em significativa desburocratização dos processos, que tende a fomentar um desenvolvimento mais acelerado do ramo, como se observou na experiência internacional, por exemplo a italiana, cujo Italian Startup Act de 2012 alavancou em 160% o crescimento desta modalidade empresarial entre 2014 e 2016 (GRANT THORNTON BRASIL, 2017, p. 3).
4.2 Segurança jurídica e incidente de desconsideração da personalidade jurídica
Um dos pontos de maior preocupação dos investidores anjo é a desconsideração da personalidade jurídica, que traz graves riscos ao investimento, sendo necessária uma maior proteção legislativa neste sentido.
O novo marco legal trouxe mudanças significativas, que devem ser analisadas cuidadosamente.
Temos que, antes da publicação da nova lei, ainda carecia de segurança jurídica o investimento anjo, uma vez que era incerto se o investidor poderia ser alcançado pelo incidente de desconsideração da personalidade jurídica.
No que diz respeito ao contrato de participação, tem-se que a LC 155/2016 limitou a proteção do investidor do incidente de desconsideração da personalidade jurídica prevista no art. 50 do Código Civil.
Ora, olvidou-se a legislação de esclarecer se a proteção se estendia às demais modalidades de desconsideração da personalidade jurídica, como a prevista no art. 28 do CDC, que adota a teoria menor, bem como às previstas nos arts. 2o, §2o, 10o e 855-A da CLT.
Deixou, ainda, de incluir a proteção contra a responsabilização tributária, prevista nos arts. 124, 133, 134 e 135 do CTN.
Assim, a proteção do investidor anjo, nos termos da LC 155/2016, se demonstrou deficiente, já que prevalecia, ainda, grande insegurança jurídica e vulnerabilidade ao patrimônio do investidor.
Para as demais modalidades contratuais a situação não era muito mais vantajosa.
O contrato de sociedade em conta de participação conta com expressa previsão legal de que apenas o sócio ostensivo responde pelas dívidas relativas à empreitada, desde que o sócio oculto não interfira nas relações entre a sociedade e terceiros, nos termos do art. 993, parágrafo único, do Código Civil.
Entretanto, frequentemente vinha sofrendo com a aplicação da desconsideração da personalidade jurídica prevista na legislação trabalhista.
Isto porque, apesar do art. 2o da CLT ter delimitado um pouco mais a responsabilização solidária em situações enquadradas como "grupo econômico", a jurisprudência ainda é altamente vacilante e, a depender da interpretação dada pelo Juiz do Trabalho, muitas vezes influenciada por uma tradição de grande protecionismo do hipossuficiente e de responsabilização de todo aquele que, de alguma forma, aufere proveito ou tem participação na atividade empresarial, o que pode ensejar a responsabilização do sócio oculto.
Veja-se, a título de exemplo, a jurisprudência abaixo, que é apenas uma entre várias no mesmo espírito:
INCIDENTE DE DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA. ESGOTAMENTO DOS MEIOS DE EXECUÇÃO. TEORIA MENOR. SOCIEDADE EM CONTA DE PARTICIPAÇÃO. SÓCIO OCULTO.
I. À vista do resultado negativo da pesquisa realizada por intermédio do sistema disponível ao Juízo, bem como diante da não localização de veículo pertencente à empresa executada e da ordem de gradação prevista no art. 835 do CPC, está comprovado o esgotamento dos meios de execução em face da empresa executada, o que justifica a instauração do incidente de desconsideração da personalidade jurídica.
II. Para a sua decretação, dispõe o art. 50 do CC sobre a teoria maior, que exige a demonstração de abuso ou fraude, e o art. 28, § 5.º, do CDC sobre a teoria menor, que admite a responsabilização dos sócios quando a personalidade da sociedade empresária configurar impeditivo ao ressarcimento dos prejuízos causados ao credor. Nos dois regramentos legais, a responsabilidade recai sobre a figura do sócio, enquanto partícipe da sociedade com suas cotas sociais, condição comprovada nos autos.
III. No caso, aplica-se a teoria menor, advinda da relação de consumo, a qual também incide sobre o regime processual do trabalho, como salvaguarda das verbas trabalhistas devidas ao empregado, ante a omissão da legislação que é própria ao regime celetista. Comprovada processualmente a impossibilidade de a empresa executada assumir o pagamento do débito exequendo, a instauração do incidente para o prosseguimento dos atos executórios em face dos sócios é medida que se ajusta ao ordenamento legal.
IV. Nos termos do art. 991 do Código Civil, na sociedade em conta de participação a responsabilidade exclusiva do sócio ostensivo está condicionada ao fato de a atividade constitutiva do objeto social ser exercida unicamente pelo sócio ostensivo. No caso dos autos, o sócio participante movimentava os recursos financeiros da sociedade perante instituição financeira, fato esse, inclusive, reconhecido pelo próprio recorrente na sua peça recursal, sob a justificativa de falta de confiança nos repasses dos lucros da sociedade pela sócia ostensiva. Tal situação traz a aplicação do disposto no art. 993, parágrafo único, do CCB, tornando o sócio oculto solidariamente responsável pelo débito exequendo.
(TRT-10 - AP: 00001954920125100102 DF, Data de Julgamento: 23/06/2021, Data de Publicação: 29/06/2021) (grifo nosso)
Idêntica preocupação se aplica aos contratos de mútuo conversível, e aquisição da opção de compra de participação societária.
Por fim, todas as modalidades do investimento anjo sofriam, previamente ao novo marco legal das startups, grave insegurança jurídica no que tange à responsabilidade tributária, especialmente quando, eventualmente, ocorre a conversão em participação societária.
Adentrando agora as novidades trazidas pela LC 182/2021, o novo marco legal das startups, passaremos analisar se as supracitadas inseguranças foram solucionadas pela nova lei.
Primeiramente, tem-se que o art. 5o do marco legal traz a tipificação, em numerus apertus, das modalidades de investimento que não serão consideradas como integrantes do capital social, contendo todas as modalidades já abordadas neste artigo, além de outras.
Em complementação, o art. 8o esclarece que o investidor que realizar o aporte de capital nos formatos já especificados "não será considerado sócio ou acionista nem possuirá direito a gerência ou a voto na administração da empresa, conforme pactuação contratual" e
não responderá por qualquer dívida da empresa, inclusive em recuperação judicial, e a ele não se estenderá o disposto no art. 50 da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil), no art. 855-A da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), aprovada pelo Decreto-Lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943, nos arts. 124, 134 e 135 da Lei nº 5.172, de 25 de outubro de 1966 (Código Tributário Nacional), e em outras disposições atinentes à desconsideração da personalidade jurídica existentes na legislação vigente (BRASIL, 2021).
É nítida a preocupação do legislador em aumentar a segurança jurídica do investimento anjo em startups, que acertou em estender a proteção ao patrimônio do investidor, para abarcar não só o incidente de desconsideração da personalidade jurídica do código civil, mas também às relações trabalhistas, consumeristas e de responsabilidade tributária.
Outra alteração interessante sob a ótica da segurança jurídica foi a complementação promovida no art. 61-A, §4o da LC 123/06, para resguardar a possibilidade de o investidor anjo participar das deliberações societárias em caráter estritamente consultivo, sem que isso configure a descaracterização do contrato de participação.
Referida alteração é de grande relevância, uma vez que esclarece que a participação do investidor em caráter consultivo não configura, por si só, qualquer fraude ou simulação de efetiva participação societária, o que reduz sobremaneira o risco de aplicação da desconsideração da personalidade jurídica.
Não obstante o aumento na segurança jurídica, temos que ainda restam brechas significativas para se alcançar o patrimônio do investidor anjo, especialmente porque a nova lei se esqueceu da responsabilização solidária do grupo econômico, quando demonstrada a efetiva comunhão de interesses e atuação conjunta, prevista no art. 2o da CLT.
Ora, caso o investidor anjo seja pessoa jurídica, poderia facilmente ser responsabilizado por meio do grupo econômico, eis que, a depender da interpretação, pode-se configurar o interesse integrado entre o investidor anjo e a startup, o que acarreta sua responsabilidade solidária, que é, inclusive, mais gravosa do que a desconsideração propriamente dita da responsabilidade jurídica que, em regra, goza do benefício de ordem.
Não bastasse, também deixou a nova lei de abordar a responsabilidade do sucessor empresarial prevista no art. 133 do CTN, referente à aquisição de fundo de comércio ou estabelecimento, com continuação da atividade econômica.
Neste caso, a responsabilidade do adquirente é integral, caso o alienante não mais exerça atividade empresária, e subsidiária à do alienante que continua a exercer a atividade, ou que recomece a explorá-la nos seis meses subsequentes à alienação.
É patente a possibilidade de incidência do referido artigo para as modalidades de investimento anjo em que o investidor opta pela conversão em participação societária, com a continuação da atividade pelo investidor.
A conversão do investimento em participação societária pode ser considerado aquisição de fundo de comércio? Para tanto, seria necessário que o investidor se tornasse sócio majoritário?
São questões que permanecem sem resposta clara, a gerar grande incerteza para os investidores.
4.3 Liberdade contratual e liquidez dos investimentos
Foram também realizadas modificações visando aumentar a liberdade contratual entre as partes, já que o prazo de remuneração dos aportes do contrato de participação, previsto no art. 61-A, §4o, III da LC 123, foi expandido de 5 para 7 anos.
Também se promoveu um aumento na liquidez dos contratos de participação, com significativa alteração no §6o do referido artigo, eliminando-se o limite de 50% dos lucros da sociedade para a remuneração do investidor, bem como trazendo explicitamente a possibilidade da conversão de aporte de capital em participação societária.
O §7o também sofreu alteração, ainda que mais discreta, para prever que, para fins de resgate do investimento, o valor deverá ser corrigido conforme índice previsto no contrato.
4.4 Tributação
A tributação do investimento anjo também deve ser analisada de forma cuidadosa, por se tratar de um dos principais alvos de críticas pelo mercado, em virtude da ausência de maiores incentivos.
No contrato de participação, sob o ponto de vista da startup, o regime tributário é vantajoso, tendo em vista que os aportes de capital não são considerados receita, e não impedem que a startup que recebe o investimento permaneça optante pelo Simples Nacional (BRASIL, 2016).
Por outro lado, sobre a tributação dos rendimentos do investidor anjo,
Apesar de ser equiparada à participação nos resultados em sociedade, há incidência de imposto de renda sobre a remuneração, que consiste em uma das três modalidades de retirada de capital pelo investidor, a teor do que disciplina a IN n. 1.719/2017 (RORATO FILHO, 2019, p. 59).
Não bastasse, a IN RFB n. 1719, que regulamenta a tributação destes rendimentos, traz em seu art. 5o alíquotas regressivas que variam entre 22,5% e 15%, e que são idênticas às praticadas na tributação de investimentos de renda fixa.
Referida alíquota se aplica não só sobre a remuneração periódica do investidor, mas também ao resgate e à cessão dos direitos para terceiro, tudo nos termos da IN RFB n. 1719.
Trata-se de verdadeiro desincentivo, uma vez que o investimento anjo é de altíssimo risco, enquanto a renda fixa é de baixo risco, o que, no entendimento de Rorato Filho, viola o princípio da isonomia, previsto no art. 150, II da CF/88 (RORATO FILHO, 2019, p. 25).
Lado outro, a IN RFB n. 1719 não prevê como fato gerador a conversão do aporte em participação societária. Sendo assim, caso o investidor opte por não receber sua remuneração periódica, mas sim convertê-la em participação ao final do termo estipulado em contrato, não incidiria imposto de renda para o investidor.
Assim, analisando a legislação sob outro enfoque, pode-se dizer que a legislação tributária, na realidade, estimula que o investidor realize, ao final, a conversão de seu aporte em participação societária, o que é interessante para o desenvolvimento das startups, pois promove a aplicação dos valores na atividade empresária.
Já o contrato de mútuo conversível em participação societária é tributado de forma diversa.
Isto porque, caso o investidor seja pessoa jurídica, a operação de mútuo é fato gerador do IOF, nos termos da Lei 5.143/66, bem como do imposto de renda sobre o ganho de capital, em alíquotas regressivas de 22,5% a 15%, análogas às aplicáveis à renda fixa (RORATO FILHO, 2019, p. 38).
Ainda, em caso de ágio, quando da conversão da participação em sociedade limitada, incidirá alíquota de 15%, sendo os sócios da investida pessoas físicas, até 34%, se forem pessoas jurídicas. Assim, pode ser vantajosa a transformação da sociedade em Sociedade Anônima antes da conversão, uma vez que, neste caso, o art. 38 do Decreto-Lei n. 1.598/1977 afasta a incidência de imposto sobre o ágio (RORATO FILHO, 2019, p. 38).
Uma vantagem muito interessante nesta modalidade contratual é que o valor investido não afastaria o regime tributário Simples, uma vez que seria contabilizado como um passivo (RORATO FILHO, 2019, p. 38).
Por fim, resta abordar a tributação dos investimentos anjo realizados por meio de sociedade em conta de participação.
Na prática, esse tipo de contrato acaba sendo pouco utilizado nos investimentos em startups, uma vez que, segundo interpretação dada pela Receita Federal, pode inviabilizar a startup de permanecer optante pelo regime tributário Simples Nacional, conforme leitura combinada do art. 3º, § 4º, VII e do art. 30 da Lei Complementar 123/06. Assim, considerando que a grande maioria do investimento anjo em startups se dá em uma fase inicial do negócio, a migração para um regime tributário mais complexo pode trazer diversos empecilhos para a sociedade que recebe o investimento (JUDICE et al, 2015, p. 171 e 172).