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Apontamentos práticos de um IRDR suscitado pelo DETRAN/PA:

da iniciativa de instauração ao julgamento bifásico

Leia nesta página:

Examinam-se as repercussões legais ao condutor pelo cometimento de infrações de trânsito vedadas dentro do período de permissão de um ano (art. 148, § § 3º e 4º do Código de Trânsito Brasileiro).

1. introdução

O presente ensaio cinge-se em pontuar, sob o ponto de vista prático, o iter percorrido desde a percepção do cabimento do Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas (IRDR), previsto no caput do art. 976 do CPC/2015, mediante a iniciativa de instauração por parte da Procuradoria Jurídica do detran/pa, até a fase final do julgamento do mérito pelo Pleno do Tribunal de Justiça do Estado do Pará, com a sua total procedência e a ulterior fixação de tese jurídica.

Com efeito, diante da sistemática repetição de processos sobre a mesma controvérsia perante Juízos de várias Comarcas do Estado do Pará, com decisões reiteradamente divergentes em seus órgãos judicantes, na primeira e segunda instâncias, cujo objeto residia na impossibilidade de obtenção ou renovação da CNH definitiva, em razão do cometimento, durante o período de permissão, de infrações gravíssimas, graves ou reincidência nas médias, por condutores de veículos, nos termos do art. 148, § § 3º e 4º do CTB, o detran/pa suscitou, perante o Tribunal de Justiça do Estado do Pará, Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas (IRDR), ao intuito de fixar tese jurídica sobre a referida matéria de direito, diante do iminente risco de ofensa à isonomia e à segurança jurídica.

Objetivava-se colocar em relevo que os órgãos e entidades que compunham o Sistema Nacional de Trânsito – snt, em busca de um trânsito mais seguro pudiam se socorrer da atuação de seus órgãos jurídicos como mais um instrumento para, utilizando-se dos meios processuais disponíveis no CPC/2015, manejar institutos inovadores, como o IRDR, com vistas a pacificar discussões judiciais sobre a melhor aplicação da legislação de trânsito.  

Para tanto, ainda que de maneira não aprofundada, faz-se neste ensaio a abordagem sobre os requisitos legais para a propositura do incidente processual, detalhando-se as duas fases do julgamento (admissibilidade e  mérito) e a descrição da matéria controvertida (aplicação dos dispositivos do CTB), apontando-se a tese proposta e a fixada ao final do julgamento.

Em consonância com a inovação trazida pelo CPC/2015, os Procuradores subscritores do IRDR gravaram um vídeo, no qual trataram, em linhas gerais, dos fundamentos para a admissão e a procedência do pedido, e o inseriram, por meio de um QR Code (quick response code), na respectiva peça de ingresso, o que permitiu aos Desembargadores do tjpa e seus assessores assistirem à mídia, funcionando, dessa forma, como um reforço argumentativo em favor da tese defendida.

2. da iniciativa de instauração do IRDR e sua admissibilidade

2.1. Trânsito seguro como um direito de todos e uma obrigação dos órgãos e entidades que compõem o Sistema Nacional de Trânsito

Antes da descrição do caminho traçado pelo IRDR, da admissibilidade ao julgamento, cabe registrar que todos têm direito a um trânsito seguro, sendo uma obrigação dos órgãos e entidades que compõem o snt adotar as medidas necessárias para tal fim.

É o que disciplina no art. 1º, § 2º do CTB, como se vê a seguir:

Art. 1º O trânsito de qualquer natureza nas vias terrestres do território nacional, abertas à circulação, rege-se por este Código.

§ 2º O trânsito, em condições seguras, é um direito de todos e dever dos órgãos e entidades componentes do Sistema Nacional de Trânsito, a estes cabendo, no âmbito das respectivas competências, adotar as medidas destinadas a assegurar esse direito. (sem destaque no original)

O Departamento de Trânsito do Estado do Pará – detran/pa, como órgão executivo e rodoviário estadual de trânsito, utilizou-se do meio processual cabível para garantir a aplicação da legislação de trânsito, bem como para evitar que condutores que não tivessem dirigindo com as cautelas devidas durante do período da permissão permanecessem com suas CNHs válidas, o que seria um fator a mais para o agravamento da insegurança no trânsito.

2.2. Requisitos legais do IRDR devidamente preenchidos

Em observância ao teor dos incisos I e II do art. 976 do CPC /2015, tem-se cabível o IRDR quando houver a efetiva repetição de processos com a mesma controvérsia sobre matéria unicamente de direito, a respeito da qual haja reiterada divergência de entendimentos pelos magistrados.

Nesse sentido, no caso em questão, tendo se verificado que, em várias comarcas do Estado do Pará, estaria havendo o ajuizamento sistemático de ações contra o detran/pa por condutores habilitados questionando a impossibilidade de renovação da CNH definitiva, sob a alegação de que, ao se dirigir à autarquia de estadual de trânsito, estariam sendo impedidos de renová-la, em razão da existência de infrações de trânsito graves, gravíssimas ou reincidência nas médias, cometidas dentro do período de condutor permissionário, a Procuradoria Jurídica do detran/pa, no ano de 2017, lançou mão deste novo incidente processual, chamado IRDR, para buscar uma definição da questão controvertida e, assim, ensejar a fixação de tese jurídica a ser aplicada a todos os processos idênticos.

A controvérsia então tratada se constituía sobre matéria unicamente de direito, pois, ao se detectar a existência de pontuação decorrente de infrações graves, gravíssimas ou reincidência nas médias, cometidas dentro do período de permissão do condutor, cumpriria ao detran/pa, por obrigatória submissão ao princípio da legalidade e à luz da tese de defesa então adotada em juízo, aplicar o inteiro teor do art. 148, § § 3º e 4º do CTB, desimportando se o referido condutor já estaria há vários anos na condição de habilitado e possuidor de CNH definitiva, mas que restaria obrigado, de toda sorte, a reiniciar o processo de habilitação.

Por isso, o fato de o condutor ter obtido a CNH definitiva não lhe asseguraria o direito adquirido de possuir tal licença administrativa por prazo indeterminado, porquanto, a cada renovação, deveria preencher todos os requisitos legais, sendo, um deles, não ter cometido infração de trânsito grave, gravíssima ou reincidência nas médias no período de permissão (1 ano), mesmo que a pontuação correspondente viesse a ser lançada posteriormente, observado o prazo prescricional quinquenal, em face da necessária observância do transcurso de todos os prazos de defesa e recursais, até a consecução da coisa julgada administrativa, justamente como prevê o parágrafo único do art. 290 do CTB.

E, uma vez se observando o processamento de diversas ações pelo mesmo juízo da comarca da 6ª Vara Cível de Santarém (PA), já repercutindo até na seara do próprio Tribunal de Justiça do Estado do Pará, ora acolhendo a tese dos condutores, julgando procedente o pedido de renovação da CNH definitiva, ora compreendendo como inteiramente regular a conduta do detran/pa, de obstar a renovação da CNH, justamente por fazer incidir o comando legal do art. 148, § 3º do CTB, diante da ocorrência de pontuação das infrações vedadas dentro do período de permissão, é que se dera a iniciativa para a instauração do IRDR aqui em análise.

Por tais situações, o que vinha ocorrendo é que alguns condutores alcançavam a tutela jurisdicional favorável, no sentido de poder renovar a CNH definitiva, sob o pálio da razoabilidade e do direito adquirido, mesmo tendo cometido infrações de trânsito graves, gravíssimas ou reincidência nas médias, dentro do período de permissão, mas outros condutores, muito embora na mesma situação fática e jurídica, não obtinham a decisão judicial almejada, uma vez que os magistrados reconheciam, diga-se, de forma pertinente, a incidência do disposto no art. 148, § § 3º e 4º do CTB, obrigando-os ao reinício do processo de habilitação, revelando tal divergência, ao final, grave risco à isonomia e à segurança jurídica.

Diante desse cenário, constituía-se inquestionável a grave insegurança jurídica gerada por decisões judiciais díspares no âmbito do Poder Judiciário do Estado do Pará, com evidente risco à isonomia aos jurisdicionados, o que reclamaria, portanto, a admissibilidade de um IRDR.

A título de ilustração acerca da dissonância sobre a matéria de direito controvertida a autorizar a instauração do IRDR, pertinente se transcrever os julgados abaixo, utilizados como paradigmas da oscilação reiterada da jurisprudência do próprio Tribunal de Justiça do Estado do Pará, a saber:

Renovação de carteira de habilitação definitiva. Infração de trânsito cometida na época da habilitação provisória. Preliminar de ilegitimidade passiva do Detran. Rejeitada à unanimidade. A carteira nacional de habilitação será conferida ao condutor que, ao término do prazo da permissão para dirigir, não tenha cometido infração de natureza grave ou gravíssima ou seja reincidente em infração média (art. 148, § 2º e § 3º, do CTB). Uma vez expedida a habilitação definitiva, não se pode negar a renovação dessa ao argumento de que multas foram cometidas na época da habilitação provisória, em atenção aos princípios da segurança jurídica, da boa-fé objetiva e da razoabilidade. Recursos conhecidos e desprovidos à unanimidade. (TJE/PA – APC Nº 0008802-76.2014.814.0051 – AC. nº 160.276 – 2ª Câmara Cível Isolada – Desa. Ezilda Pastana Mutran – julg. 30.05.2016 – DJe 03.06.2016)

Reexame necessário e apelação cível. Ação ordinária de obrigação de fazer com pedido de antecipação de tutela. Preliminar de ilegitimidade passiva do Detran/PA ou chamamento da Polícia Rodoviária Federal como litisconsorte passivo necessário. Rejeitada. As matérias discutidas nos autos não são referentes as multas de trânsito em si, emitidas pela Polícia Rodoviária Federal, cometidas durante o perído em que o apelado possuía permisão provisória para dirigir, mas, sim, se estas multas teriam o condão de obstar a renovação da carteira nacional de habilitação, matéria esta afeta à autarquia estadual. Mérito. Decisum de primeiro grau que julgou procedente o pedido, para permitir a renovação da carteira nacional de habilitação do recorrido. Inconsistência do julgado. Carteira de habilitação definitiva. Concessão. Expectativa de direito. Necessidade de preenchimento dos requisitos do art. 148, §3º, do CTB. Cometimento de infração grave e gravíssima na espécie. Não expedição de CNH. (TJE/PA – Apelação Cível nº 00088271120108140051 – 5ª Câmara Cível Isolada – Decisão Monocrática – Des. Constantino Augusto Guerreiro – julg. 13.11.2015 – DJe 17.11.2015)

Como se pode observar, o próprio tribunal já vinha se posicionando de maneira dissonante sobre a mesma matéria de direito, razão pelo qual o detran/pa, por meio de sua Procuradoria Jurídica, entendera deveras plausível a propositura do IRDR.

De qualquer modo, o CPC/2015 também exige um pressuposto negativo de admissibilidade do IRDR, qual seja: a inexistência de afetação de recurso extraordinário ou especial ao regime jurídico dos recursos repetitivos.

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Nos termos do art. 976, § 4° do CPC/2015, deve ser inadmitido o IRDR quando um dos tribunais superiores, no âmbito de sua respectiva competência, já tiver afetado recurso para definição de tese sobre questão de direito material ou processual repetitiva.

Não obstante, na hipótese em questão, há de se ressaltar que o STJ já havia cancelado a submissão da presente controvérsia ao rito dos recursos repetitivos, conforme decisões prolatadas no REsp 1.484.380/rs e no REsp 1.484.381/rs, estando o tema (nº 895), portanto, cancelado e desafetado para fins de definição de tese jurídica, o que autorizaria, em consequência, o trânsito do IRDR, pois afastada a vedação contida no art. 976, § 4º do CPC/2015, tal como posteriormente confirmado pelo próprio tribunal no julgamento de admissibilidade do incidente.

O CPC/2015 também exige que o IRDR seja suscitado no bojo de uma determinada demanda, seja uma ação originária do tribunal ou um recurso de sua competência derivada, sob pena de ser instaurado procedimento per saltum e em ofensa ao princípio do juiz natural.

E, na hipótese em exame, havia uma ação ordinária (processo nº 000690.865-2014.8.14.0051) julgada procedente, para permitir ao autor a realização de todos os exames necessários para revalidação da carteira nacional de habilitação (CNH), tendo o detran/pa, com base em razões jurídicas inequívocas quanto à correção da prevalência do art. 148, § § 3º e 4º do CTB, interposto o devido recurso de apelação.

Com base em todos esses aspectos acima elencados, o presente IRDR fora submetido ao julgamento de admissibilidade pelo Tribunal de Justiça do Estado do Pará.

2.3. Juízo de admissibilidade positivo – 1ª fase de julgamento

Distribuído o IRDR à relatoria de um dos membros do Pleno do Tribunal, tal como preceitua o art. 978 do CPC/2015 em conjunto com o art. 188 e 189 do Regimento Interno daquela Corte, houve a Relatora, Eminente Desembargadora elvina gemaque taveira, em providência primeira, requisitar informações à Coordenadoria de Recursos Extraordinários e Especiais – nugep, a fim de confirmar se a matéria então suscitada pelo detran/pa já havia sido afetada ou decidida em recurso repetitivo pelos tribunais superiores.

Tendo a Coordenadoria de Recursos Extraordinários e Especiais – nugep informado inexistir no stf e no STJ tema paradigma com pertinência ao objeto do incidente suscitado pelo detran/pa, mas apenas esclarecendo que o Tema 85 no STJ, vinculado ao REsp nº 1.484.380/rs, tivera sua afetação cancelada, bem como o detran/pa tendo demonstrado a existência da multiplicidade de processos pendentes contendo a mesma controvérsia, relacionando um total de 52 (cinquenta e dois) feitos, inclusive com a juntada de cópia integral do processo originário, a Desembargadora Relatora pautou o julgamento da admissibilidade do IRDR perante o Pleno do Tribunal.

Finalmente, em sessão de 04.04.2018, o Pleno, à unanimidade, admitiu o IRDR suscitado pelo detran/pa, uma vez preenchidos todos os requisitos legais do art. 976 do CPC/2015, ultrapassando, portanto, a primeira fase de julgamento, com a consequente e ulterior submissão à análise de mérito.

Para os fins desta exposição, imprescindível se mencionar a ementa do juízo positivo de admissibilidade do incidente, a saber:

INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE DEMANDAS REPETITIVAS-IRDR. APLICABILIDADE DO ART.148 §§3º E 4º AO CONDUTOR QUE JÁ POSSUI A CARTEIRA DE HABILITAÇÃO DEFINITIVA E TIVER PONTUAÇÃO DECORRENTE DE INFRAÇÕES GRAVES, GRAVÍSSIMAS OU QUE SEJAM REINCIDENTE NAS INFRAÇÕES MÉDIAS, DENTRO DO PERÍODO PERMISSIONÁRIO. RENOVAÇÃO DE CNH DEFINITIVA. EXISTÊNCIA DE EFETIVA REPETIÇÃO DE PROCESSOS COM DECISÕES DISSONANTES NO ÂMBITO DESTE EGRÉGIO TRIBUNAL. RISCO. À ISONOMIA E À SEGURANÇA JURÍDICA CONFIGURADO. INEXISTÊNCIA DE AFETAÇÃO NO ÂMBITO DOS TRIBUNAIS SUPERIORES SOB À SISTEMÁTICA DOS RECURSOS REPETITIVOS. REQUISITOS DO ART.976 DO CPC/2015 PREENCHIDOS. IRDR ADMITIDO. 1. O presente incidente fora instaurado no processo 0006908-65.2014.814.0051, em fase de apelação, ainda pendente de remessa a este Egrégio Tribunal, portanto, não se trata de IRDR preventivo. 2. A questão submetida a julgamento consiste na interpretação e aplicação do art.148 §§3º e 4º do Código de Trânsito Brasileiro, nos casos de o condutor já possuir a carteira definitiva e tiver pontuação decorrente de infrações graves, gravíssimas ou que seja reincidente nas infrações médias, dentro do período permissionário, previsto no §2º. 3. O incidente pretende definir se a Administração pode criar óbices à renovação da Carteira Nacional de Trânsito, obrigando o condutor ao reinicio do processo de habilitação, que, embora já tenha obtido a definitiva, cometeu as infrações relacionadas no §3º do art. 148, enquanto ainda estava no período da permissão. 4. A matéria encontra efetiva repetição no âmbito deste Tribunal, tendo em vista a existência de decisões, ora reconhecendo a ilegalidade da negativa do Detran/PA em permitir a renovação da CNH ou outros procedimentos, ora reputando legal a conduta da Administração e a exigência de submissão a novo processo de habilitação com base nos mencionados dispositivos 5. A existência de julgamentos dissonantes em diversos processos sobre a mesma matéria de direito suscitada põe em risco a isonomia e a segurança jurídica, tornando imperiosa a uniformização da jurisprudência deste Egrégio Tribunal. 6. Não havendo afetação no âmbito do STJ e do STF sob a sistemática dos recursos repetitivos, restam preenchidos os requisitos para a admissibilidade do presente incidente. 7. IRDR admitido, nos termos do art. 976 do CPC/2015. 8. À unanimidade. (TJE/PA – Ac. nº 189.158 – IRDR nº 0009932-55.2017.8.14.0000 – Tribunal Pleno – Desa. Elvina Gemaque Taveira – julg. 04.04.2018 – DJe 30.04.2018) (sem grifo no original)

Uma vez admitido o incidente e, atendendo ao pedido do detran/pa, firmado com base no art. 982, I do CPC/2015, a Eminente Relatora, em 30.07.2018, determinou, outrossim, a suspensão de todos os processos pendentes em trâmite no Estado do Pará, que versassem sobre a mesma questão objeto do IRDR, até o julgamento final de mérito do feito pelo tribunal.

Ato contínuo, a Relatora também determinou o envio de ofício circular a todos os magistrados dando ciência da admissibilidade do incidente e da decisão de suspensão dos processos sobre a mesma matéria.

Para além disso, fora determinada a intimação dos interessados, do Estado do Pará, do contran, do denatran, do cetran (Conselho Estadual de Trânsito) e da oab/pa, para fins de instrução e elucidação da questão de direito controvertida, conforme previsão do art. 983 do CPC/2015 — mas sem a designação de audiência pública, ainda que possível —, com a posterior oitiva do Ministério Público e o julgamento de mérito.

3. juízo de mérito do IRDR – defesa de tese jurídica

3.1. Impossibilidade de renovação de CNH – Incidência do art. 148, § § 3º e 4º do CTB

Ultrapassada a admissibilidade do incidente, restava uniformizar a matéria de mérito controvertida, quanto à possibilidade ou não de um condutor renovar ou adquirir sua CNH definitiva, haja vista o cometimento de infração grave, gravíssima ou reincidência na média, durante o período de permissão.

Por isso o detran/pa sustentava que, a se autorizar a aquisição da CNH definitiva, ou mesmo a sua renovação, sem atentar para a existência de pontuação impeditiva, revelar-se-ia a clara violação ao art. 148, § § 3º 4º do CTB.

Portanto, não haveria falar, como por vezes decidido em alguns Juízos do Estado do Pará em favor dos condutores, em aplicação dos princípios da boa fé objetiva, da segurança jurídica e da razoabilidade, além da violação ao direito de defesa e ao direito adquirido.

Ao contrário, a questão ora tratada seria de mera subsunção ao princípio da legalidade pela Administração Pública e o detran/pa, por seu turno, não poderia ignorar o fato de constar pontuação grave, gravíssima ou reincidência na média, no período de permissão do condutor, e renovar ou expedir a CNH definitiva, ante a existência de óbice legal do art. 148 CTB.

O fato é que, desde o cometimento das infrações vedadas e as respectivas notificações expedidas, o condutor já tinha total conhecimento da ocorrência da infração dentro do período de permissão e também dos efeitos que poderiam ser gerados em sua CNH no futuro, até porque, desde a realização do curso teórico de legislação, esse condutor já possuía ciência das repercussões incidentes em seu prontuário no caso do cometimento de tais infrações, afastando-se, portanto, a boa-fé objetiva.

Aliás, se a penalidade fora imputada ao motorista somente depois da obtenção da 1ª CNH definitiva, só se poderia inferir que, até a sua emissão, ainda não havia ocorrido o trânsito em julgado administrativo da infração, a fim de autorizar o respectivo órgão autuador a lançar a pontuação do cadastro do condutor infrator.

A propósito, a pontuação relativa às infrações em geral, com a final imposição da penalidade, somente poderia ser inserida no prontuário do condutor após o trânsito e julgado do processo administrativo, em observância ao princípio do contraditório e da ampla defesa, possibilitando ao condutor permissionário, não raro, receber sua CNH definitiva, mesmo tendo cometido infrações durante o período de validade de sua permissão.

Isso porque, muitas vezes, não haveria tempo hábil para a conclusão de todas as etapas (autuação – notificação de autuação e de penalidade – recursos e julgamentos) do processo administrativo de aplicação da penalidade (multa) e a inserção na pontuação no prontuário do condutor ainda dentro dos 12 meses.

Logo, uma vez sendo notificado duplamente pelo órgão autuador respectivo, o condutor já teria pleno e prévio conhecimento do cometimento das infrações vedadas (grave, gravíssima ou reincidência na média) e de seus efeitos ainda como permissionário, de modo que não poderia alegar que só ficara sabendo do impedimento ao tentar renovar sua CNH definitiva.

De outra senda, a CNH não é uma licença por tempo indeterminado, e, a cada período de tempo fixado na legislação, o condutor deve preencher novamente todos os requisitos para a obtenção da CNH definitiva, e, um deles, seria a não ocorrência de infrações vedadas dentro do período de permissão, pelo que, não atendidas tais condições, estaria afastado qualquer direito adquirido à renovação pretendida.

E mais: não sendo a aplicação do art. 148, § § 3º e 4º do CTB uma penalidade, mas apenas a mera aferição objetiva e periódica dos requisitos de concessão da CNH definitiva, que, repita-se, devem ser preenchidos a cada renovação, tal qual o exame de aptidão física e mental (exame médico) o é, tornar-se-ia prescindível um processo administrativo específico, o que implicaria afirmar a invalidade de qualquer alegação de cerceamento de defesa pelo condutor, principalmente porque, aquela altura, já teria sido notificado duplamente para o exercício de ampla defesa e do contraditório desde o seu cometimento (dentro do período de permissão), que ora o impediria de renovar a CNH definitiva.

3.2. Abrangência da tese jurídica apenas para as infrações que causam riscos ao trânsito seguro – Prevalência da segurança do trânsito e da proteção de toda a coletividade

Muito embora o art. 148, § § 3º e 4º do CTB não tenha especificado a natureza da infração de trânsito, mas apenas se referindo ao nível de gravidade, nas gradações gravíssima, grave ou média, sabia-se que, a teor da compreensão do STJ [AgInt no AREsp 928131 / SP – 2ª Turma – Min. Og Fernandes – julg. 06.03.2018 – DJe 13.03.2018.], na condição de órgão de cúpula do Poder Judiciário para a uniformização da interpretação da legislação federal, a impossibilidade de renovação da CNH não se estenderia às infrações meramente administrativas, assim consideradas aquelas não ensejadoras de riscos à segurança do trânsito e de toda a coletividade, sendo tal argumentação, justamente, a tese sustentada no IRDR.

Dessa forma, tal como suscitado pelo detran/pa, a impossibilidade de obtenção da CNH, nos termos do art. 148, § §3º e 4º CTB, estaria jungida apenas às infrações de trânsito que viessem a colocar em risco o trânsito seguro e, precipuamente, os valores fundamentais em defesa da vida, e não em relação às infrações meramente administrativas e documentais.

Nessa perspectiva, a procedência do IRDR pugnada pelo detran/pa fora pautada para a fixação da seguinte proposta de tese jurídica :

Na hipótese de motorista com pontuação decorrente de infrações de trânsito graves, gravíssimas ou reincidência nas infrações médias, cometidas na qualidade de condutor dentro do período de permissionário, quando não se tratar de infração de natureza administrativa, é vedado a renovação ou obtenção de CNH definitiva, nos termos do art. 148, § 3º do CTB.

Importante anotar que o próprio Departamento Nacional de Trânsito – denatran, em sua manifestação técnica, elucidou a questão no sentido de adotar o mesmo entendimento então defendido pelo detran/pa, quanto à inexistência de direito adquirido à renovação da CNH.

De igual modo, tanto o Ministério Público quanto a oab/pa convergiram para a procedência do IRDR, acolhendo a tese defendida pelo detran/pa, razão pela qual estaria a se buscar o desejável reconhecimento do Poder Judiciário para o deslinde da questão controvertida mediante o IRDR e a imediata fixação de tese jurídica e ulterior aplicação vinculante aos processos idênticos em repetição.

3.3. Análise de mérito pelo Tribunal Pleno – 2ª fase de julgamento

Finalmente em 01.09.2021, após rejeitar questão de ordem quanto à competência de julgamento do recurso de apelação, do qual se originara o incidente processual, firmando o entendimento final de que tal recurso deveria ser julgado pelo próprio órgão turmário, forte em previsão regimental, o Pleno do Tribunal de Justiça do Estado do Pará, à unanimidade, julgou procedente o IRDR, conferindo prevalência, sob a técnica da ponderação, ao princípio da legalidade e ao direito fundamental coletivo ao trânsito seguro, em detrimento do interesse particular do condutor, em ordem a aplicar o regramento do art. 148, § § 3º e 4º do CTB, desde que a natureza das infrações pudesse interferir na segurança do trânsito e não estivessem tais infrações sido fulminadas pela prescrição quinquenal.

Na ementa do acórdão de julgamento do IRDR, vê-se que, após amplo debate entre os Desembargadores presentes à sessão realizada em videoconferência, por conta da pandemia de Covid-19, e, acolhendo todos os argumentos deduzidos pelo detran/pa, inclusive aqueles trazidos pela Procuradoria Jurídica da autarquia em sede de sustentação oral, o Tribunal Pleno afastou qualquer violação ao devido processo legal, ao direito adquirido, à segurança jurídica e à boa-fé objetiva, compreendendo, ao final, que seria mais consentâneo que o condutor com infrações vedadas cometidas dentro do período de permissão fosse submetido a um novo processo de habilitação, segundo se transcreve o excerto abaixo:

Incidente de resolução de demandas repetitivas. Expedição de CNH definitiva. Condutor que cometeu infração no período permissionário. Posterior negativa da administração em conceder a renovação da habilitação ou proceder com a mudança de categoria com fundamento no art.148, §§ 3º e 4º do CTB. Discussão acerca da aplicabilidade dos dispositivos. Lançamento da infração ocorrido após a expedição da CNH. Pendência de procedimento administrativo para discutir validade e existência da infração. Necessidade de ponderação. Consideração do contexto em que ocorreu a expedição. Interpretação teleológica da norma. Proteção ao direito fundamental coletivo à segurança no trânsito. Poder de polícia do estado. Princípio da legalidade. Ausência de direito adquirido e de violação ao princípio da segurança jurídica. Prevalência do direito fundamental coletivo em detrimento do interesse particular. Tese firmada para reconhecer a aplicabilidade do art. 148, §§3º e 4º do CTB ao possuidor de habilitação definitiva, desde que a natureza da infração interfira na segurança do trânsito e que não esteja fulminada pela prescrição quinquenal. Incidente acolhido para fixar tese jurídica. (...)13. Incidente acolhido para firmar a seguinte tese: Ante o exposto, nos termos da fundamentação, acolho o presente Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas – IRDR, fixando a seguinte tese jurídica: A concessão da CNH definitiva ao condutor que cometeu as infrações relacionadas no §3º do art. 148 do CTB, no período da Permissão para Dirigir-PPD, não gera óbice ao superveniente cancelamento do ato e não impede que a Administração exija que o condutor fique sujeito a novo processo de habilitação, como preceitua o §4º do art. 148 da CTB, desde que a expedição da CNH tenha ocorrido na pendência do procedimento administrativo para a apuração da validade da infração, no qual houve a devida notificação para o exercício do contraditório e ampla defesa; bem como, que a infração imponha risco à segurança no trânsito e não esteja fulminada pela prescrição quinquenal. (TJE/PA – IRDR nº 0009932-55.2017.8.14.0000 – Tribunal Pleno – Desa. Elvina Gemaque Taveira – julg. 01.09.2021 – DJe 16.09.2021) (sem grifo no original)

Ao final, houve o Tribunal Pleno por fixar a tese jurídica destacada na ementa acima, a qual, mesmo sob redação diversa, restou exatamente amoldada à pretensão veiculada pelo detran/pa no IRDR, no sentido de dar plena eficácia à norma de regência em análise e, assim, impossibilitar a obtenção da CNH pelo condutor, quando incidente nas vedações especificadas na referida espécie normativa.  

4. conclusão

Chegando-se ao final do percurso processual aqui exposto, desde a iniciativa de instauração do IRDR até o seu julgamento final de mérito, crível se inferir que o referido instituto do IRDR, na condição de procedimento judicial abstrato e objetivo, bem como inserido no sistema de precedentes, deve levar à uniformização de determinada questão de direito e à fixação de tese jurídica, tal como assentado pelo Tribunal de Justiça do Estado do Pará, a ser adotada imediatamente, de forma obrigatória e vinculante, por todos os órgãos jurisdicionais sob a competência territorial do Poder Judiciário do Estado do Pará, sob pena de reclamação, a teor do art. 985, § 1º do CPC/2015.

Referências

NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de direito processual civil – volume único. 9ª ed. Salvador: JusPodivm, 2017.

CESPEDES, Lívia; ROCHA, Fabiana Dias da. Novo Código de Processo Civil – obra coletiva. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2016.

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Sobre os autores
Fábio de Oliveira Moura

Procurador Autárquico e Fundacional do Estado do Pará.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GAIA, Márcio André Monteiro ; MOURA, Fábio Oliveira. Apontamentos práticos de um IRDR suscitado pelo DETRAN/PA:: da iniciativa de instauração ao julgamento bifásico. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 26, n. 6729, 3 dez. 2021. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/93565. Acesso em: 22 dez. 2024.

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