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Direito à nacionalidade

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10/01/2007 às 00:00
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O Estado e a nacionalidade

            Estado é sinônimo de sociedade civil ou de autoridade suprema existente nessa sociedade. No primeiro sentido, dizemos que o cidadão deve sacrificar-se ao bem do Estado. No segundo, afirmamos que o Estado é obrigado a proteger a paz pública.

            Aristóteles, em Política, IV, c.V., 1326 b, 22-30, diz que "a pólis é uma sociedade perfeita que se basta completamente, formada para proporcionar a seus membros a vida feliz".

            Sociedade completa, o Estado tem por fim o bem comum, no que este tem de mais geral – material, intelectual e moralmente. Uma missão civilizadora, que abrange todo o domínio do humano, nos dizeres de J. Dabin (La Philosophie de l’ordre juridique positif, Sirey, 1963, p. 116).

            Sociedade perfeita, o Estado é independente, na sua existência e na sua atividade, de todas as sociedades particulares, e possui todos os meios necessários para cumprir as obrigações que resultam da sua missão.

            União das famílias, células primordiais da sociedade política, o Estado compõe-se da multidão de famílias. É assim que o estagirita definia a cidade como "a união das famílias e das comunas" (Política, I, c.I, 1252 b, 27).

            O Estado é pois uma multidão de indivíduos, reunidos em famílias, cidades, províncias e ofícios; uma autoridade suprema (interna) e uma soberania (externa), em relação a outras sociedades da mesma natureza.

            Sociedade necessária ao homem. Ser perfectível, ele só pode realizar a perfeição de sua natureza com a ajuda da sociedade civil, de direito natural (ius naturae).

            Sociedade orgânica, resulta da união estável e hierárquica de grupos sociais inferiores, que continuam a existir e a desempenhar as funções diversas requeridas pela amplitude da tarefa deferida ao Estado.

            Seu problema político consiste em regular as liberdades públicas e o poder central, para evitar a anarquia e o despotismo.

            Sociedade desigual organicamente que se compõe de pessoas juridicamente desiguais. Assim, a diversidade das profissões e dos interesses determina a formação de classes de cidadãos, que se hierarquizam entre si, segundo a importância de suas funções.

            A natureza realista do Estado admite ter o grupo uma realidade que transborda o simples total dos indivíduos.

            O Estado é um todo. Para a filosofia peripatética, "o Estado é naturalmente anterior à família e ao indivíduo, porque o todo é necessariamente anterior às suas partes" (Política, 1, c, I).

            Todo lógico, princípio formal que faz a unidade dos elementos, pois o todo não existe como tal, mas reside nos seus elementos constitutivos. É assim o pensamento de Tomás de Aquino (1221-1274): totum dicitur esse in partibus. (...) totum non est praeter partes, et sic oportet ut intelligatur esse in partibus (71966, In: Physic, lib. 4l. 4n).

            Todo moral, o Estado é uma realidade que, como todo, só existe na mente, mas que se funda na unidade de fim das pessoas humanas. Enquanto a multidão constitui o elemento material do Estado, o elemento formal, de onde procede a unidade da multidão, baseia-se nessa finalidade comum das pessoas e nas relações mútuas que dela derivam.

            Assim compreendido, o Estado é um todo cujo princípio unificador é o bem comum visado pelos indivíduos, e depois redistribuído a cada um. Esse fim comum, constitutivo da unidade social e, por conseguinte, do próprio Estado, é que gera os órgãos e as instituições jurídicas que formam o corpo do Estado e, de maneira efetiva e de alguma sorte material, asseguram a comum dependência dos membros da sociedade política.

            A dificuldade em compreender tudo isso vem da força com que o Estado se impõe como uma realidade física, visível e sensível. Por Estado entende-se então: um território (o soberano visita seus Estados); o povo instalado neste território ou a Nação (o governo do Estado); o território e a Nação juntos (o chefe do Estado); o próprio governo (as relações da Igreja com o Estado); os funcionários e a administração do Estado. Quando a gente diz que "Fulano demanda em face do Estado", ou "esta floresta pertence ao Estado", o termo Estado não é tomado em nenhuma das acepções precedentes, senão que personifica a autoridade, não como tal, mas em seus instrumentos ou órgãos em geral. O Estado é assim considerado como um todo entitativo. Isso também sucede quando se personifica uma parte do Estado, por exemplo o município ou o departamento ("essa estrada pertence ao departamento").

            Nesses diversos casos, servimo-nos de órgãos ou de propriedades do Estado e realizamos um todo que não passa de um todo lógico. Nada mais legítimo e nem mais inevitável. Mas isso não nos autoriza a transferir ao Estado como um todo a realidade entitativa que de fato só pertence aos seus órgãos e aos seus efeitos jurídicos.


Nacionalismo e patriotismo

            Nação e Pátria são fatos que se impõem à mente e ao coração. Toda uma série de gerações e de séculos é necessária para formar a alma e a consciência comuns que fazem a Nação e a Pátria. O Estado pode nascer ou desaparecer de um dia para o outro, por efeito de uma decisão arbitrária ou de uma guerra infeliz. A Pátria é a realidade que dura e que não muda, aquela que dizemos eterna, enquanto o Estado não cessa de se transformar no correr dos séculos.

            Fiador do bem comum, o Estado pode reclamar os maiores sacrifícios, mas, por instinto, cada um sente que é à Pátria e não ao Estado que se faz homenagem dos próprios bens e, se preciso, da própria vida.

            A Nação é antes de tudo uma unidade histórica; o Estado, uma unidade política; e a Pátria, uma unidade moral.

            Um Estado pode englobar várias nações. Foi assim o império romano, na antiguidade. Em nossos dias, é o caso do império britânico, como foi também o do império francês e o da Rússia. Ademais, uma só Nação pode formar vários Estados, como sucedeu na Grécia antiga, ou então ela pode estar dividida entre vários Estados, como a Polônia, após a partilha do século XVIII.

            A Nação não tem a estabilidade da Pátria. Pode modificar-se de diversas maneiras: pelo afluxo de elementos novos (em conseqüência de uma invasão), por efeito de novas tradições, de mutações econômicas ou políticas (revolução), que transformam o seu aspecto material e espiritual. A Pátria, esta não muda: no meio de todas as perturbações, continua sendo o mesmo solo, o mesmo lar; continua a oferecer ao amor de seus filhos o mesmo rosto materno.

            As duas realidades de Nação e Pátria não coincidem necessariamente, pois existe o caso de uma nação que não tem pátria. Assim foi o caso da nação judia durante sua permanência no Egito dos faraós. Igualmente, desde a revolta de Simão Bar-Kohba contra a dominação romana (132-136 a.D.) até 1948, quando, depois de dezenove séculos, voltou a encontrar uma Pátria, o Estado de Israel, em condições territoriais precárias.

            Sendo a Nação e a Pátria um fato, o nacionalismo é uma doutrina. Melhor dizendo, é o princípio segundo o qual é dever essencial do Estado trabalhar por conservar e por desenvolver a Nação, por promover o respeito de seus direitos e o êxito de suas reivindicações.

            Nesse sentido, o nacionalismo é uma forma vigilante do patriotismo. Para não estar sujeito a excessos, se o patriotismo é uma virtude, deve submeter-se à lei do justo meio-termo (in medio virtus), que é uma regra de sabedoria e de perfeição.

            Amar a própria pátria em demasia talvez seja uma maneira de amá-la mal. Devemos evitar os excessos. Patriotismo sadio não implica nem a xenofobia, sentimento ridículo de aversão a pessoas ou a coisas estrangeiras, nem o desprezo ou o ódio dos forasteiros, nem o espírito de guerra e de conquista, nem o fanatismo que pretendesse colocar o serviço da pátria acima da justiça e do direito. Tudo isso é uma maneira má de amar a própria pátria, querendo sacrificar-lhe essas coisas, que são a verdade e a justiça.

            O amor que devemos à Pátria é fruto do encanto que nasce de sua beleza moral. Para que possamos amá-la sem reservas, e até ao sacrifício da vida, torna-se mister que sua fisionomia conserve sempre aos nossos olhos uma auréola de santidade.

            O termo nacionalidade evoca o fato da pertença jurídica não a um Estado (Staatsangehörigkeit), mas sim a uma Nação. Assim, o princípio das nacionalidades consiste em afirmar que toda a Nação ou Pátria deve atingir suas fronteiras naturais; ou que toda a Nação deve poder constituir-se em Estado independente; ou, enfim, que todo o povo tem o direito de dispor livremente de si mesmo. Essas fórmulas encerram a mesma reivindicação, que é a coincidência do Estado com a Nação, ponto de vista que, desde a Revolução Francesa, exerceu influência enorme sobre os destinos do mundo.

            Felizmente, a teoria das fronteiras naturais não tem em seu favor nenhum argumento científico ou jurídico. A Pátria e a Nação não têm fronteiras determinadas, pois são fatos morais e espirituais. O Estado, sim, tem fronteiras definidas.

            Igualmente, o princípio das nacionalidades é desprovido de qualquer fundamento científico e jurídico, pois a Nação e a Pátria não se identificam necessariamente com o Estado. Uma Nação tem o direito de se separar de um Estado no qual foi incorporado por efeito de contingências políticas que cessaram de valer. Circunstâncias acidentais que tornam caduca ou revogável a primeira incorporação.


O direito de nacionalidade

            Povo é o elemento humano do Estado, de cujas relações com o território decorre o vínculo da nacionalidade. Tal conceito não se confunde com população nem com habitante, que são o conjunto de residentes no território, nacionais ou estrangeiros. Nacionais são os nascidos no território com a mesma origem, a mesma língua, os mesmos costumes e tradições de seus antepassados, formando uma comunidade de base sociocultural; estrangeiros são os não nacionais.

            Marcelo Caetano (In: Direito Constitucional, ed. portuguesa, p. 352; ed. brasileira, p. 159) diz que nacionais seriam "todos quantos nascem num certo ambiente cultural feito de tradições e costumes, geralmente expresso numa língua comum, atualizado num idêntico conceito de vida e dinamizado pelas mesmas aspirações de futuro e os mesmos ideais coletivos". Juridicamente, porém, nacionalidade é o vínculo jurídico-político que faz da pessoa um dos elementos componentes da dimensão pessoal do Estado, nos termos de Pontes de Miranda (In: Comentários à Constituição de 1967 com a Emenda nº 1, de 1969, t. IV, p. 352).

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            No direito constitucional brasileiro, nacional é o brasileiro nato ou naturalizado, ou seja, o que se vincula, por nascimento ou naturalização, ao território brasileiro. Cidadão é o que qualifica o nacional no gozo dos direitos políticos e os participantes da vida do Estado (CF, arts. 1º, II, e 14), o reconhecimento do indivíduo como pessoa integrada na sociedade estatal (CF, art. 5º, LXXVII). Nacionalidade primária é a que resulta de fato natural, o nascimento; secundária é a que se adquire por fato voluntário, depois do nascimento.

            Para a determinação da nacionalidade primária usa-se o critério da origem sanguínea ou da procedência territorial. O substantivo defectivo latino sanguis, que só se usa no singular, tem o genitivo pronunciado ‘sânguinis’, daí o critério ius sanguinis, pelo qual se confere a nacionalidade em função do vínculo de sangue, reputando-se nacionais os descendentes de nacionais. O critério de origem territorial, ius soli, é o que atribui a nacionalidade a quem nasce no território do Estado de que se trata.

            Os Estados de emigração, como a maioria dos europeus, preferem a regra do ius sanguinis, com base na qual a diminuição de sua população pela saída para outros países não importará em redução dos integrantes da nacionalidade. Os Estados de imigração, como a maioria dos americanos, acolhem a do ius soli, pela qual os descendentes na massa dos imigrantes passam a integrar a sua nacionalidade, o que não ocorreria se perfilhassem o critério do sangue.

            A nacionalidade secundária depende primeiramente da vontade do indivíduo, quando se lhe dá o direito de escolher determinada nacionalidade (CF, art. 12, I, c, e II, a), e, em segundo lugar, do Estado, mediante outorga ao nacional de outro, espontaneamente ou a pedido, como foi a grande naturalização concedida pela Constituição de 1891 (art. 69, IV e V) e como é agora a hipótese da CF, art. 12, II, b, em face da residência há mais de 15 anos no Brasil, bastando o pedido do interessado.

            Polipátrida é quem tem mais de uma nacionalidade: é o caso dos filhos de italiano aqui nascidos, se seus pais não estiverem a serviço de seu país; eles adquirirão, necessária e involuntariamente, a nacionalidade brasileira. Como a Itália adota o critério do ius sanguinis, os filhos de italiano, mesmo nascidos fora do seu território, são também, para ela, necessária e involuntariamente, italianos. Assim, os filhos de italianos nascidos no Brasil têm dupla nacionalidade (polipátrida), condição explicitada na CF, art. 12, § 4º, II, a, segundo a qual não se perde a nacionalidade brasileira no caso de reconhecimento de nacionalidade originária pela lei estrangeira.

            Outra hipótese (CF, art. 12, § 4º, II, b) se dá quando norma de outro Estado impõe a naturalização ao brasileiro nele residente como condição de permanência em seu território ou do exercício de direitos civis.

            Heimatlos, expressão alemã originária de Heimat (pátria, terra natal) e los (solto, livre), significa sem pátria, apátrida. É a situação da pessoa que, dada a circunstância de nascimento, não se vincula a nenhum daqueles critérios que lhe determinariam uma nacionalidade. Exemplo disso é o filho de brasileiro nascido na Itália, se seus pais não estiverem a serviço do Brasil: não adquire a nacionalidade italiana, porque adota a Itália o princípio do ius sanguinis, nem a nacionalidade brasileira, porque o Brasil acolheu o princípio do ius soli.

            A Declaração Universal dos Direitos Humanos estatui que toda a pessoa tem direito a uma nacionalidade, e ninguém será arbitrariamente privado de sua nacionalidade nem do direito de mudar da nacionalidade (The Universal Declaration of Human Rights. Article 15 – Everyone has the right to a nationality. No one shall be arbitrarily deprived of his nationality nor denied the right to change his nationality).

            O sistema constitucional brasileiro sempre ofereceu e continua a oferecer mecanismo normativo (CF, art. 12, I, b e c) adequado para solucionar os conflitos de nacionalidade negativa em que se vejam envolvidos filhos de brasileiros.

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Sobre o autor
Máriton Silva Lima

Advogado militante no Rio de Janeiro, constitucionalista, filósofo, professor de Português e de Latim. Cursou, de janeiro a maio de 2014, Constitutional Law na plataforma de ensino Coursera, ministrado por Akhil Reed Amar, possuidor do título magno de Sterling Professor of Law and Political Science na Universidade de Yale.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LIMA, Máriton Silva. Direito à nacionalidade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1288, 10 jan. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/9374. Acesso em: 16 abr. 2024.

Mais informações

Texto resultante da compilação de artigos do autor publicados no “Jornal da Cidade”, de Caxias (MA), entre 06/06 e 29/08/2004.

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