1.Considerações introdutórias.
O presente artigo tem por objetivo abordar um dos preceitos mais importantes da Carta Constitucional de 1988: o § 2° do art. 5°, chamado de cláusula de abertura, ou de não tipicidade (Jorge Miranda), que possibilita a ampliação do catálogo de direitos fundamentais materiais, que não se encontram topograficamente localizados no Título II, mas que possuem a mesma importância institucional dos direitos ali consagrados, muito embora não ostentem o arcabouço de proteção, no que tange às limitações formais e materiais erigidas contra o Poder de Reforma, dos direitos formalmente fundamentais.
Assim, a legislação ordinária e o trato das relações diplomáticas, por meio da celebração de tratados, e mesmo outros direitos constitucionais não constantes do rol do Título II, podem ser considerados direitos fundamentais (materiais) em decorrência da aplicação do § 2° do art. 5°. É necessário perquirir o significado de um preceito desta natureza para o constitucionalismo pátrio, bem como o alcance da proteção dispensada por tal preceito aos direitos que ela abarca.
2.o significado da cláusula de abertura do art. 5°, § 2° da Constituição.
O art 5°, § 2° da Carta Magna apregoa que os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte [01]. O preceito transcrito encerra a chamada abertura material do catálogo de direitos fundamentais, ou simplificadamente cláusula aberta [02].
O fenômeno de recepção de valores básicos e perenes de dado contexto pelo legislador, imprimindo-os num documento solene que ocupa o ápice da pirâmide normativa, implica que o avanço progressivo da comunidade, no sentido de aquisição de novos valores, princípios, ou mesmo da remodelação do conteúdo das normas positivadas, pode não ser comportado pela constituição vigente [03]. A cada momento surgem reivindicações e na medida em que elas não são atendidas pelo Estado, a eventual rigidez do sistema poderia impedi-las de serem abraçadas com a nota da fundamentalidade.
O catálogo de direitos fundamentais não é estático, mas dinâmico, sendo ditado pela evolução dos costumes e da moral, desde que abarcados para o campo do jurídico. Premiam-se aqueles interesses que se mostram mais relevantes com anota de fundamentalidade. Para evitar a auto-ruptura da ordem constitucional, tributária de um engessamento constitucional que inviabilize a incorporação de novas reivindicações, o constituinte procurou municiar o texto magno com mecanismos que possibilitem a sua flexibilização aos interesses contingentes, e dotem os poderes constituídos de instrumentos para acolhes e efetivar essas conquistas.
É indispensável que a constituição incorpore o estado espiritual de seu tempo (geistige situation) para lhe assegurar, enquanto ordem adequada e justa, a defesa da consciência geral, afigurando-se igualmente necessário que se mostre apta a adaptar-se a uma mudança dessas condicionantes porventura ocorrente [04].
Em última análise, cuida-se da confecção de um salvo-conduto para a própria manutenção do regime democrático, tanto em épocas de crises quanto em situações de normalidade, é um output normativo, que mantém a integridade do sistema justamente pela viabilização do diálogo com todos os setores.
A norma em comento foi inspirada na emenda IX à Constituição Federal dos Estados Unidos da América (uma das poucas aditadas ao texto magno de lá), que exerceu também influencia sobre diversas outras constituições e traduziu o entendimento de que os direitos fundamentais não se esgotavam num elenco meramente exemplificativo de uma Constituição Formal, e são, acima de tudo, um conceito que se destaca pela substancialidade. Há, para a Lei Maior americana, direitos fundamentais que não se contêm nela.
A existência de uma cláusula de abertura normativa é muito significante, principalmente na comunidade globalizada em que vivemos, na qual o consenso diplomático entre as nações produz freqüentemente tratados que resguardam direitos humanos, os quais, após enfrentarem um processo legislativo para integração ao direito interno, consagram verdadeiros direitos fundamentais [05]. A elaboração infraconstitucional também pode reconhece-los, pois a nota de fundamentalidade se caracteriza não pela pertinência ao texto constitucional, mas pela importância como princípios (direitos fundamentais como princípios) supremos.
3. Alcance do catálogo material de direitos fundamentais.
A primeira conseqüência que deflui do art. 5, § 2°, é a abertura material do catálogo dos direitos fundamentais. Logo, é inaplicável o tradicional cânone hermenêutico do inclusio unius alterius est exclusius. Com efeito, há interesses consagrados topograficamente fora da constituição, ou em outros capítulos localizados geograficamente fora do título II que revestem a qualidade de posições jusfundamentais. O rol do art. 5° e seguintes não é taxativo, mas meramente exemplificador, mesmo sendo analítico, já que trata dos pormenores da matéria. A doutrina se ocupa em interpretar o artigo para faze-lo abraçar não apenas os direitos fundamentais de cunho extra-constitucionais, mas também os chamados valores ou direitos fundamentais "implícitos" e "decorrentes".
A opção constitucional demonstra que o constituinte não prestigiou apenas os valores de seu tempo, mas também aqueles que fatalmente seriam agregados por injunções históricas. Reflete também o caráter democrático da nossa constituição, porquanto se prestigiou o senso jurídico dominante em cada momento e a consideração de uma ordem de valores naturalmente mutável e que não se encontra na dependência do constituinte.
É de se perguntar se haveriam direitos fundamentais não escritos presentes fora da constituição formal, pois, a priori, é inegável apenas a existência de direitos positivados escritos. A solução para a indagação passa necessariamente pelo caráter normativo que os princípios ostentam no direito posto, eis que não é atributo exclusivo das regras (empregado o termo no sentido de dever-ser escrito), mas também dos princípios. Como diretrizes de otimização, os princípios são, acima de tudo, normas que encerram mandados assim como as chamadas regras de direito. São tão obrigatórios e vinculativos quanto do dever-ser escrito.
Há, evidentemente, princípios insertos em enunciados e aqueles que não possuem expressão literal numa regra de direito, e nem por isto desprovidos de normatividade. Eles servem de ponderação na hora de avaliar os interesses jurídicos conflitantes e buscam salvaguardar os interesses constitucionais mais importantes. Assim, considerando o caráter normativo dos princípios na ordem constitucional, não há razão para desconsiderar a condição de direitos fundamentais não escritos, inseridos fora da Constituição. Muitos deles são ramificações e desdobramentos de normas-princípios de estatura constitucional, como o princípio da proibição de experiências genéticas degradantes com o ser humano, que é dedutível do princípio da dignidade humana. A questão da fundamentalidade material de normas não-escritas se reduz, essencialmente, à consideração de princípios e valores não explícitos da ordem vigente.
Uma interpretação sistemática do art. 5°, § 2°, indica que podemos cogitar de duas categorias de direitos fundamentais: aqueles integrantes no nível formalizado e constante expressamente no texto constitucional (direitos formal e materialmente constitucionais); e uma segunda categoria formada por aquelas posições fundamentais que não possuem assento da Constituição (direitos apenas materialmente constitucionais). Doutrina abalizada sustenta a tese da existência de uma terceira espécie de direitos fundamentais, que possuem relevância somente do ponto de vista formal (fundamentalidade meramente formal). Dentre os partidários, advoga Gomes Canotilho, para quem há direitos que, pela carência de substância e importância, não se enquadram no conceito material de direitos fundamentais [06].
Outra leitura do preceito indica que o argumento topográfico é imprestável para compreender o catálogo dos direitos fundamentais na Constituição, já que o título II não esgota o rol de posições fundamentais, pois elas se plasmariam por todo o texto constitucional, configurando-se meramente exemplificativa a fundamentalidade formal do art. 5° e seguintes. Estas são as possíveis exegeses para o dispositivo, essencialmente interpretações sistemáticas.
Nesse passo, o principal efeito da cláusula seria acolher sob o manto da proteção material direitos fundamentais constantes em diplomas os chamados "direitos implícitos", decorrentes do regime e da principiologia adotada pela Carta Magna, e também consagrados em tratados internacionais, e é desse aspecto que a norma essencialmente cuida.
De outra perspectiva, é possível se inferir que, do ponto de vista de uma exegese rigorosamente literal, que se o preceito declara solenemente que os direitos e garantias expressos nesta constituição não excluem outros, é precisamente pelo porque pretende tutelar direitos e garantias extra-constitucionais concedidos por tratados internacionais ou derivados da sistemática traçada na lei maior, não tendo em vista, nem indiretamente, direitos constitucionais, pelo motivo óbvio de que estes já encontram guarida no próprio texto constitucional. O que se trata é de direitos e garantias não positivados na constituição.
Essa interpretação seria a correta, porque o art. 5°, §2° não fala em outros direitos constitucionais, mas em outros direitos não expressos na constituição. Ora, a constituição não lança mão de palavras inúteis e a correta interpretação do art. 5° § 2° conclama que se deixe de lado a idéia inclui direitos de estatura constitucional, entendidos como aqueles consagrados no texto da Carta Magna.
Este é o posicionamento que decorre da exegese literal do dispositivo. No entanto, ressalvamos que os comentários que faremos ao art. 5°, § 2°, não serão orientados por este ponto de vista, mas pelo entendimento majoritário, o qual propõe que uma interpretação rigidamente literal da Constituição não conduz a resultados satisfatórios.
Urge que visualizemos o art. 5º, §2° em harmonia com o contexto normativo em que se insere, à luz dos princípios que informam a proteção dos direitos fundamentais, e atentando para a localização geográfica do dispositivo, sob a epígrafe do capítulo que cuida dos direitos e garantias fundamentais. Assim, o que o constituinte almejou foi alargar o horizonte de direitos fundamentais para abarcar posições substanciais que se encontrem além daquelas consagradas expressamente na Carta Magna – muito embora não os tenha dotado do regime formal de proteção – alcançando direitos criados pelo legislador ordinário, por meio de tratados e decorrente de princípios.
Tais posições são tão fundamentais (materialmente) quanto aquelas previstas no rol do art. 5° e seguintes. Por meio da interpretação sistemática também se chega a conclusão que haveria direitos fundamentais espalhados por toda a Carta Magna. Esta é a via interpretativa que é abraçada pela doutrina e jurisprudência majoritárias e que entendemos ser a mais consentânea com os cânones hermenêuticos modernos, que propugnam por uma leitura da constituição que maximize a eficácia dos preceitos, evitando-se, sempre que possível, uma exegese aferrada à literalidade da norma. Além disso, enfatiza Konrad Hesse a interpretação constitucional está submetida ao princípio da ótima concretização da norma (gebot optimaler verwirklichung der norm) [07], da qual se extrai a sua força normativa.
O espectro de incidência da norma se amplia para alcançar não só aquelas posições jurídicas tipicamente de primeira geração, com função de defesa, como os direitos de liberdade negativa, dirigidos contra a intervenção do Estado, mas inclui também direitos sociais que decorrem do sistema e dos princípios por ela adotados, e interpretação contrária restringiria demasiadamente o relevo da cláusula, pois hodiernamente a ação estatal e legislativa são informadas pelo princípio do bem-estar social (em que pese apenas na teoria).
O Governo, por um lado, busca desenvolver atividades que realizem as condições mínimas de vida do cidadão, com investimentos voltados para a área social, como a educação, saúde e fiscalização do ambiente de trabalho, que se caracterizam pelo cunho prestacional e comunitário. É claro que a ineficiência estatal ainda predomina. Contudo, o que se aponta aqui é uma tendência que se revela ainda um pouco acanhada no Brasil, mas que desponta em vários entes da federação, no sentido de priorizar o lado social e garantir aporte de recursos preferencialmente para necessidades coletivas.
Semelhante fenômeno se passa na seara legiferante, com o constante alargamento do âmbito de direitos sociais de natureza prestacional, que conclama do estado um correlato dever de atuar comissivamente no sentido de efetiva-los, e não vislumbramos razão (a não ser de ordem política, para furtar o Estado da sua obrigação de realizar tarefas no campo social) para não compreendê-los no âmbito de proteção do art. 5°, § 2ª [08].
A mera localização topográfica no Capítulo I do Título II não induz, por inferência, que os direitos sociais não estariam abarcados pela proteção.
Por outro lado, avulta de significado prático saber se a cláusula de abertura tem o condão de estender a proteção jurídica dos direitos fundamentalmente formais e acobertar os direitos materialmente fundamentais com a nota da imutabilidade formal preceito que os consagra, em outras palavras, se a abertura material proporcionada pelo art. 5°, §2° tem o efeito de alargar a incidência da cláusula pétrea do art. 60, § 4°, inc. IV para abranger os direitos fundamentais em sentido material.
A hipótese vertente não é absurda, já que a cláusula de abertura se encontra positivada no art. 5°, e o intérprete desavisado poderia entender a situação geográfica do preceito como um indicativo de que o regime aplicado aos direitos constantes sob aquela epígrafe alcançaria também os direitos fundamentais materiais por extensão.
Do ponto de vista constitucional, a exegese descrita não é viável, já que o regime aludido pelo art. 5, § 2°, refere-se ao conteúdo da Carta de Direitos Fundamentais Materiais, ou seja, aqueles direitos que são abarcados pela norma de abertura, e não diz respeito ao regime jurídico-constitucional dos direitos fundamentais, mas, precipuamente, ao regime adotado pelo texto constitucional para sistema de governo, qual seja, o regime democrático e seus princípios inerentes, mas não se esgota nele, e podem emergir direitos fundamentais, ilustrativamente, do regime tributário ou do regime financeiro. Portanto, a norma não se relaciona nem indiretamente com o regime aplicável aos direitos fundamentais em sentido formal.
Num primeiro relance, a textura aberta do preceito enseja o seu alargamento para alcançar outros direitos fundamentais expressos ou não na Constituição e, até mesmo, princípios não escritos. Entretanto, não há que se falar na submissão dos direitos apenas materialmente fundamentais à cláusula de imutabilidade do art. 60, § 4°, inc. IV, já que o art. 5º, §2°, inc. IV, não fala, em nenhuma passagem, de equiparação ao regime dos direitos formalmente constitucionais.
A possibilidade de integração do catálogo dos direitos fundamentais proporciona, na visão de Jorge Miranda, a manifestação de princípio geral do ordenamento jurídico, o princípio da realização da pessoa humana como decorrência da afirmação jurídica de sua dignidade. Entende ele que a regra de abertura possui função semelhante aquela exercida pela cláusula do caráter restritivo das restrições aos direitos fundamentais.
Vale transcrever passagem do voto do Ministro Marco Aurélio de Mello, proferido no julgamento da ADI 939-7/DF, no qual ele abordou a extensão da cláusula de abertura:
Senhor Presidente, em primeiro lugar, registro minha convicção firme e categórica de que não temos, como garantias constitucionais, apenas o rol do art. 5° da Lei Básica de 1988. Em outros artigos da Carta encontramos, também, princípios e garantias do cidadão, nesse embate diário que se trava com o estado, e o objetivo maior da Constituição é justamente proporcionar uma certa igualação das forças envolvidas – as do Estado e as de cada cidadão considerado de per si.
A demonstração inequívoca da procedência desse entendimento está no § 2° do artigo 5°:
"os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte".
Veja v. Exª. que o Diploma Maior admite os direitos implícitos, os direitos que decorrem de preceitos nela contidos e que, portanto, não estão expressos.
Senhor Presidente, para mim as exceções a esses direitos, insertas na própria Carta, apenas os confirmam, e ninguém coloca em dúvida, pro exemplo, que a propriedade é um direito do cidadão; no entanto, esse direito está mitigado pela regra insculpida no inciso XXIV do artigo 5°, que cuida da desapropriação. Ninguém duvida, também, que a exclusão da pena de morte é um direito, é um direito previsto no rol do artigo 5ª e está excepcionado por regra insculpida na própria alínea "a" no inciso XLVI do artigo 5°, admitindo-se-a em caso de guerra declarada, no termos do artigo 84, inciso XIX.
Senhor Presidente, os antigos já diziam que nada surge sem uma causa, sem uma justificativa, decorrendo, daí, o princípios do motivo determinante. Indago-me por que a União desprezou o teor do artigo 154, inciso I, da Constituição Federal e, ao invés de utilizar-se do meio adequado nele inserto para a criação de um novo imposto, lançou mão de emenda constitucional? A resposta é, desenganadamente, a tentativa de burlar as garantias constitucionais vigentes, drible que não pode prosperar, porquanto o inciso IV do parágrafo § 4° do artigo 64 é categórico no que veda a tramitação de proposta de emenda tendente a abolir os direitos e garantias individuais. Buscou-se, mediante esse instrumento, que é a emenda constitucional, viabilizar um imposto que pela própria nomenclatura tem repercussões inconciliáveis com certas garantias do contribuinte.
De início, Senhor Presidente, vemos o afastamento da anterioridade, e creio que posso deixar de discorre a respeito. A Corte, ao enfrentar o pedido de concessão de liminar, teve presente que a anterioridade encerra uma garantia constitucional, e não vejo, em face apenas de a Carta conter algumas exceções a esse princípio, como esvazia-lo, como coloca-lo em plano secundário a ponto de dizer da impertinência do inciso IV do parágrafo § 4° do artigo 60, ou, até mesmo, num passo pouco mais largo, assentar que não se está diante de uma garantia constitucional. É um garantia constitucional, como está previsto, com todas as letras, na alínea "b" dom inciso III do artigo 60 da Carta:
"Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:
E, aí, temos:
III – cobrar tributos:
.....................................
b) no mesmo exercício em que haja sido publicada a lei que os institui ou aumentou".
Senhor Presidente, houve a opção pelo legislador constituinte de 1988 e, com ela, tivemos o esgotamento das exceções, porque taxativamente fixadas na Carta. Os dispositivos são numerus clausus, não apenas exemplificativos. Fora das hipóteses excepcionadas cabe observar, com rigor, a anterioridade (...)" [09].
O Ministro Carlos Velloso também acompanhou este posicionamento, como se infere da passagem colhida do Voto que proferiu durante a sessão do julgamento:
Sr. Presidente, examino a questão posta na Emenda Constitucional n.° 3, de 1993. Tenho como relevante, no ponto, a argüição, no sentido de que a Emenda Constitucional n.° 3, desrespeitando ou fazendo tábula rasa do princípio da anterioridade, excepcionando-o, viola limitação material ao poder constituinte derivado, a limitação inscrita no art. 60, § 4°, IV, da Constituição.
(...).
Sr, Presidente, o que entendo relevante, no caso, é a questão da anterioridade. Na verdade, o princípio da anterioridade, inscrito no art. 150, III, letra b, da Constituição, a estabelecer que não é possível a cobrança do tributo no esmo exercício financeiro em que haja sido publicada a lei que instituiu ou aumentou, é uma garantia individual, uma garantia do contribuinte; é a própria Constituição que deixa expresso que o princípio da anterioridade é uma garantia do contribuinte; no caput do artigo 150 da Constituição está escrito que "Sem prejuízo de outras garantais asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios", e seguem-se as vedações estabelecidas como garantias do contribuinte.
Ora, a Constituição, no seu art. 60, § 4°, inciso IV, estabelece que "não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: IV – os direitos e garantias individuais". Direitos e garantias individuais não são apenas aqueles que estão inscritos nos incisos do art. 5°. Não. Esses direitos e essas garantias se espalham pela Constituição. O próprio art. 5°, no seu §2 °, estabelece que os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República do Brasil seja parte.
É sabido, hoje, que a doutrina dos direitos fundamentais não compreende, apenas, direitos e garantias individuais, mas, também, direitos e garantias sociais, direitos atinentes à nacionalidade e direitos políticos. Este quadro todo compõe a teoria dos direitos fundamentais. Hoje, não falamos, apenas, em direitos individuais, assim direitos de primeira geração. Já falamos em direitos de primeira, segunda, de terceira e até de quarta geração.
O mundo evoluiu, e assim, também, o Direito:
É certo que é respeitável o argumento, mais meta jurídico do que jurídico, propriamente, no sentido de que o raciocínio abrangente da matéria – a matéria dos direitos e garantias individuais – sem distinguir direitos e garantias individuais de primeira classe e direitos e garantias de 2ª classe, poderia impedir uma maior reforma constitucional. O argumento, entretanto, não deve impressionar. O que acontece é que o constituinte originário quis proteger e preservar a sua obra, a sua criatura, que é a Constituição. As reformas constitucionais precipitadas, ao sabor das conveniências políticas, não levam a nada, geram a insegurança jurídica traz a infelicidade para o povo. É natural, portanto, que o constituinte originário, desejando preservar a sua obra, crie dificuldades para a alteração da Constituição. a Constituição norte-americana é de 1787, tem mais de duzentos anos e apenas vinte e seis emendas. Os Estados Unidos, por isso mesmo, ostentam pujança econômica, política e jurídica, e seu povo é feliz.
Sr. Presidente, retomo o fio do raciocínio anterior: a Emenda Constitucional n.° 3, ao estabelecer, no seu ª ° do art. 2°, que ao imposto de que trata este artigo não se aplica o art. 150, inciso II, letra b, incorreu em inconstitucionalidade. É o que me parece, pelo menos ao primeiro exame. É que assim procedendo, a Emenda suprime, suspende a afasta garantia do contribuinte, assim garantia individual, intangível à mão do constituinte derivado ou de revisão. Tenho, portanto, como relevante o fundamento da inicial, quando sustente que não poderia a lei – e o tribunal já entendeu que no vocábulo lei está compreendida a Emenda Constitucional n.° 3 – excepcionar, suspender ou suprimir garantia de direito individual, garantia do contribuinte.