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Aspectos negativos da reforma administrativa

11/10/2021 às 19:00

Resumo:


  • A Reforma Administrativa proposta pelo governo brasileiro visava reestruturar o Estado, mas foi reduzida a mudanças no regime jurídico dos servidores públicos devido a pressões políticas e aproximação do calendário eleitoral.

  • O texto aprovado pela Comissão Especial da Câmara dos Deputados mistura aspectos da reforma administrativa com a previdenciária, gerando uma proposta confusa que, em muitos aspectos, retrocede em relação ao regime vigente.

  • A reforma enfrenta críticas por estender a estabilidade a um número maior de carreiras, dificultar a avaliação de desempenho para demissão de servidores e por medidas que podem aumentar os litígios e custos para o erário público, além de manter privilégios para certas categorias.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

O desempenho funcional satisfatório não depende de normas legais, muito menos de princípios constitucionais. Basta a vontade política para criar uma burocracia estável e eficiente.

Palavras chaves: Reforma admistrativa. Estabilidade. Avaliação de desempenho, Reforma previdenciária.

A Reforma Administrativa projetada originariamente  pelo Ministro Paulo Guedes era bem mais abrangente do que aquela que foi enviada ao Congresso Nacional.

Aquela proposta inicial  preconizava  uma verdadeira reforma do Estado com enxugamento de órgãos e instituições.

Realmente, ela previa a extinção de municípios eternamente dependentes de recursos financeiros da União, por não conseguirem sobreviver com tributos próprios.

Ora, se a Constituição prevê o mecanismo de criação de novos municípios, por meio de plebiscito, o certo é que essa mesma Constituição previsse, também, o mecanismo de sua extinção ou reincorporação ao município de origem, sempre que inviabilizada a sua existência autônoma. Preconizava, também, a extinção de penduricalhos como licença prêmio, quinquênios, férias superiores a 30 dias anuais, incorporação de valores recebidos no exercício de cargos e funções, aumentos salariais retroativos etc..

Contudo, em função da proximidade do calendário eleitoral fez com que aquele projeto inicial ficasse restrita à reforma do regime jurídico do servidor público.

Assim, aquela robusta proposta legislativa foi reduzida a simples reforma do regime jurídico do servidor público reservando-se os cargos efetivos apenas a servidores exercentes das carreiras de Estado (diplomatas, auditores fiscais, advogados públicos etc.) passando tudo o mais para o regime celetista.

Porém, as pressões contínuas e permanentes exercidas sobre os parlamentares por servidores lotados nas três esferas do Poder (Executivo, Judiciário e Legislativo), com infundado receio de perder seus privilégios, apesar da expressa disposição de que o novo regime não seria aplicável aos atuais servidores públicos, fez com que a pretendida reforma administrativa representasse um retrocesso. Os servidores querem, na verdade, perenizar a atual situação ao longo das gerações de servidores públicos. Nem os avanços tecnológicos na área da informática, que importaram na redução de mão de obra no setor privado, teve qualquer impacto no setor público, aonde o número de servidores públicos, notadamente os nomeados sem concurso público,  crescem da noite para o dia.

Em consequência dessas pressões ilegítimas, o Relator da PEC nº 32/2020 foi alterando continuamente o seu relatório, resultando em uma proposta confusa que mistura reforma administrativa com a reforma previdenciária, piorando tudo em relação ao regime vigente.

Foi reformulado  “n” vezes o relatório final  pelo Deputado Arthur Oliveira Maia, Relator da PEC nº 32/2021, que foi apresentado no dia 23-9-2021,  meia hora antes de sua tumultuada votação. Esse confuso relatório  foi aprovado pela Comissão Especial da Câmara dos Deputados por 28 votos a favor e  18 votos contrários, sem apreciação dos 21destaques. A aludida proposta de reforma , praticamente, desfigurou a proposta original do governo, representando um retrocesso na disciplina do servidor público.

A seguir examinemos  os principais aspectos do texto básico aprovado açodadamente:

           

a) inexplicavelmente a estabilidade foi estendida para todos os servidores pertencentes a um número enorme de diferentes carreiras, com a agravante de dificultar a avaliação de seu desempenho. O processo administrativo para demissão só poderá ser instaurado se o servidor tiver duas avaliações insatisfatórias consecutivas ou três intercaladas. A definição por lei complementar das carreiras típicas de Estado perdeu a razão de sua existência, uma vez que todos os servidores passam a gozar de estabilidade. O descuidado Relator sequer atentou para esse fato, mantendo uma norma que se tornou dispensável. Os calorosos debates travados na Comissão, confundindo procedimento de avaliação de desempenho com o processo administrativo de verificação desempenho para fins de demissão, exigindo-se o contraditório e ampla defesa em ambas as situações, está a sinalizar futuras demandas judiciais caso o texto seja aprovado como se encontra. Na verdade, bastava tão só a lei complementar regulamentar o texto constitucional já existente (inciso III, do art. 41 da CF). Não se cumpre a determinação constitucional para criar nova determinação. É sempre assim. Não faz menor sentido!

b) Inseriu-se norma prevendo a possibilidade de redução de jornada e de vencimentos de até 25% em caso de crise financeira.  É o tipo de norma acrescida para se somar a outras normas meramente dispositivas. Preceito normativo semelhante da LRF (art. 23, § 2º da LC nº 101/2000) foi declarado inconstitucional pelo STF (Adin nº 2.238-DF, Rel. Min. Ilmar Galvão, j. 9-5-2002). Agora, a norma é constitucionalizada;

c) Proibiu-se  as férias anuais superiores a 30 dias para todos os servidores e membros das Cortes de Contas. Contudo,deixou de foram dessa vedação os membros da Magistratura e do Ministério Público que continuam com férias anuais de 60 dias. Não ficou claro se as proibições de demais penduricalhos (aumento salarial retroativo, incorporação de valores recebidos no exercício e cargos ou funções; licença prêmio, quinquênios etc.) que constavam da proposta original restaram mantidas ou eliminadas;

d) Atribuiu-se  excessiva proteção aos integrantes da Segurança Pública como se tratasse de uma República de Policiais. Tanto é que preconiza aposentadoria integral para policiais, agentes penitenciários e socioeducativos, bem como tratamento benéfico a seus pensionistas. Dessa forma, anula-se parte da redução de gastos obtida, à dura pena, com a Reforma da Previdência implantada pela EC nº 103, de 12-11-2019. O que é pior, os benefícios retroagem à data da Emenda nº 103. Mal se inventou um mecanismo para cobrir o rombo resultante de desgoverno (calote dos precatórios) e já se preconiza outro rombo nas contas públicas. E mais, monopoliza o acesso ao cargo de Delegado-Geral da Polícia Federal. Confere foro privilegiado ao Delegado-Geral da Polícia Federal e aos Delegados-Gerais das Polícias Civis.

e) Preconiza  a assinatura de contratos de trabalho temporários com até dez anos de duração, mediante concurso seletivo especial. Trata-se de uma estabilidade temporária. Não se sabe para que fim, nem se descobre. Cheira algo encomendado!

f) Incorpora no elebnco do art. 37 da CF oito novos princípios da administração pública, em sua maioria, vagos e imprecisos (imparcialidade, transparência, inovação, responsabilidade, unidade, coordenação, boa governança e subsidiariedade) ao lado dos cinco atualmente previstos (legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência), além de aumentar consideravelmente as normas constitucionais voltadas para o funcionalismo público. Há excesso de princípios, potencializando o aumento de litígios perante a Corte Suprema já congestionada;

g) Preconiza uma visão subsidiária do Estado limitando as políticas de fomento das atividades econômicas ao inserir  norma proibindo ao “Estado instituir medidas que gerem reservas de mercado que beneficiem agentes econômicos privados, empresas públicas ou sociedades de economia mista ou que impeçam a adoção de novos modelos favoráveis à livre concorrência, exceto nas hipóteses expressamente previstas nesta Constituição”. Em tese, podem ficar inviabilizadas as atuais ações das agências oficiais de fomento (BB, CEF, BNDES, BA e BN), pois bastará que um hiper-empresário do setor privado reclame contra a “quebra” do princípio da livre concorrência;

h) Confere ao Presidente o poder de extinguir entes da administração indireta. No sistema vigente o Presidente da República só pode, por meio de Decreto, promover a “organização e funcionamento da administração federal, quando não implica aumento de despesa nem criação ou extinção de órgãos públicos "“ (art. 84, VI, a da CF) e extinguir cargos quando vagos (art. 84, VI, b da CF). São as duas únicas hipóteses excepcionais em que o Decreto do Executivo atua de forma autônoma. Agora, a Reforma sob comento introduz uma alínea ao inciso VI, do art. 84 da CF para conferir ao Presidente da República a faculdade de extinguir entes da administração indireta mediante decreto. Na prática, o Presidente da República poderá partir para a extinção de órgãos e instituições que agem contra a sua vontade, mas, dentro da legalidade. Pode, por exemplo, extinguir o INPE ou o IBAMA que, com seus posicionamentos no cumprimento de disposições legais, representam um obstáculo ao plano de desenvolvimento econômico desejado pelo Chefe do Executivo.

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i) Por derradeiro, prevê a faculdade de o poder público firmar parceria com o setor privado para a execução de serviços públicos, a exemplo da PPP para execução de obras públicas. Não há coerência do legislador: de um lado engessa a administração pública conferindo estabilidade a milhares de servidores que nada têm a ver com carreira de Estado e, de outro lado, flexibiliza o regime estatutário para a execução de serviços cabentes a servidores efetivos. Isso é o mesmo que gerar um caos no funcionalismo público mediante mistura generalizada do que é público com o que é privado. Aliás, a privatização já atingiu o orçamento público por meio da conhecida emenda do Relator (RP9). Sabe-se que o Ministro do Desenvolvimento Regional, Rogério Marinho, desviou R$1,4 milhão do chamado “orçamento secreto” para construir um mirante turístico em Monte das Gamaleiras, no Rio Grande do Norte, que dista 300 metros de sua propriedade onde está sendo projetada a construção de um condomínio de alto luxo.

Concluindo, o relatório do relator aprovado, por maioria de votos pela Comissão Especial, retira as poucas virtudes da proposta original do governo; promove uma contrarreforma previdenciária onerando o erário em tempo de crise financeira do Estado; cria mecanismo permanente de manutenção de maus servidores colocando empecilhos no processo de avaliação de desempenho; mantém todos os privilégios legítimos e ilegítimos para determinadas categorias.

Trata-se, sem dúvida,  de uma reforma conduzida por servidores públicos de diferentes matizes que ao invés de servir à sociedade dela vêm se servindo ao longo das décadas. Como os congressistas podem se livrar deles? Eis a pergunta inconveniente!

Era preferível que deixassem como estão as Seções II e III do Capítulo VII da CF (arts. 39 a 42 da CF) que regem os servidores públicos, limitando-se a regulamentar, por lei complementar, o processo de avaliação de desempenho do servidor, para fins de sua demissão, como prescrito no inciso III, do art. 41 da CF, desde 5-10-1988. Passados mais de três décadas aquele preceito constitucional nunca foi regulamentado, por completa ausência de vontade política. Tudo que pode gerar eficiência no serviço público é escamoteado, na contramão da proclamação de princípios constitucionais voltados para a administração pública. Quem quer faz; quem não quer inventa princípios.

O desempenho funcional satisfatório não depende de normas legais, muito menos de princípios constitucionais. Basta a vontade política para criar uma burocracia estável e eficiente, como a que tínhamos à época do antigo DASP - Departamento de Administração de Pessoal - dirigido por um servidor de carreira que conhecia o funcionalismo público como a palma de sua mão. O DASP foi extinto durante o regime militar que introduziu o cargo em comissão por razões de todos conhecidos, mas, que após a normalidade institucional, por conveniência política, aqueles  cargos em comissão não só foram mantidos, como também, decuplicados.

Atualmente, o Estado Federal Brasileiro é prisioneiro dos burocratas ineficientes incrustados nas três esferas do Poder que impedem a elaboração de normas jurídicas sadias, simples, claras  e objetivas. Em mãos deles tudo se transforma em um inferno jurídico com normas complexas, vagas, imprecisas e nebulosas, sem a menor preocupação com o pragmatismo. Quando clara a norma, é para proclamar o óbvio.

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Sobre o autor
Kiyoshi Harada

Jurista, com 26 obras publicadas. Acadêmico, Titular da cadeira nº 20 (Ruy Barbosa Nogueira) da Academia Paulista de Letras Jurídicas. Acadêmico, Titular da cadeira nº 7 (Bernardo Ribeiro de Moraes) da Academia Brasileira de Direito Tributário. Acadêmico, Titular da cadeira nº 59 (Antonio de Sampaio Dória) da Academia Paulista de Direito. Sócio fundador do escritório Harada Advogados Associados. Ex-Procurador Chefe da Consultoria Jurídica do Município de São Paulo.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

HARADA, Kiyoshi. Aspectos negativos da reforma administrativa. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 26, n. 6676, 11 out. 2021. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/93944. Acesso em: 22 dez. 2024.

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