Crime, sob o aspecto formal-analítico, é fato típico e antijurídico; a culpabilidade constitui pressuposto da pena. Esta é a fórmula que vem sendo repetida, há muito, pela dogmática jurídico-penal brasileira. É a fórmula que aprendemos todos em sala de aula. Corresponderá à verdade?
Pequeno não é o espanto daqueles que, ao se aprofundarem no estudo do direito penal, deparam-se, constantemente, com a fórmula ampliada do conceito, isto é, a culpabilidade também integrando o crime (concepção tripartite).
Em seminário realizado na cidade gaúcha de Porto Alegre, no ano de 1995, os Professores Damásio de Jesus e Francisco Muñoz Conde participaram de uma discussão histórica sobre a conceituação de crime. Este, defensor de um conceito ainda mais amplo, em que se veria incluída, além da culpabilidade, também a punibilidade. Aquele, inovador, deduziu, para o caso brasileiro, o conceito bipartite, como aprendemos.
Reconhecendo a predominância na doutrina do conceito de crime como fato típico, antijurídico e culpável, o Professor Damásio de Jesus apresentava duas inconsistências relativas a tal corrente: 1ª) sendo a culpabilidade normativa, isto é, juízo de reprovação do agente e de sua conduta, estando, portanto, na "cabeça do juiz", como poderia fazer parte do crime?; 2º) nos casos de exclusão da ilicitude (legítima defesa, por exemplo) é o próprio código penal que nos fala "não há crime..." (art. 23, do CPB), enquanto nas excludentes de culpabilidade (e.g. art. 26 do CPB, inimputabilidade), o dispositivo legal nos informa que "é isento de pena...".
Estariam aí, para o Professor Damásio, argumentos mais do que suficientes para a defesa de sua conceituação. O ilustre Professor relata-nos que nunca se deparou com um fato culpado ou inculpado, não obstante já tenha visto homens culpados e inocentes.
Pensemos, só por um instante, o que nos sobra ao retirar-mos da ação criminosa o juízo da reprovação social - a repulsa da sociedade, sociedade concentrada aqui na figura do juiz à conduta daquele que a pratica. Pergunta-se: o que sobraria? Sobraria-nos um ente abstrato, sem vida, sem razão de existir digo que também nunca vi um crime "andando" por aí...Veremos adiante que isto servirá a um propósito bem definido).
Lembremos a todos que direito é regra de conduta para o homem em sociedade (ubi societas, ibi ius). É ciência normativa, ciência do dever-ser. Não estabelece relações necessárias, determinantes; ao contrário, prescreve o que deve ou não deve ser feito. Ao fim de tudo, julga-se o homem pelo que fez com vontade livre e consciente, mas somente se condena se possível foi ao magistrado determinar que, naquela situação, aquele homem poderia ter agido conforme a regra e se possuía consciência do caráter ilícito de sua conduta.
Porém, o que fazem alguns de nossos mestres? Excluem do conceito de crime esta escolha, esta consciência de estar agindo errado. Roubam-lhe o que tem de mais precioso. Recordemos que o dolo da conduta é a intenção de realizar os elementos objetivos do tipo. Nada nos diz sobre o juízo de valor que o agente possui sobre esta ação. Como, então, imaginar esta conduta como criminosa se o que confere a ela esta adjetivação é o juízo de reprovação que lhe faz a sociedade?
O que nos sobra é, exatamente, aquilo que hoje se quer que sobre: o nada. E aqui se expõe o que há de mais cruel na dogmática penal hodierna: o crime existirá para a dogmática assim, sem rosto, sem alma, sem ninguém que lho cometa; assim como um objeto de uma experiência física ou química. Estuda-se, à exaustão, algo vazio, sem conteúdo. Porém, a ele é erigido um verdadeiro templo de adoração.
É disto, contudo, que se valem hoje os nossos estudiosos; é disto que se vale toda a dogmática. Faz-se doutrina em cima de um nada, deixando sob o rótulo da "política criminal" aquilo que se fará com o homem, que, se bem lembrarmos, encontra-se no começo, no meio e no fim de tudo o que até aqui se discutiu. Como dizer que este homem cometeu um crime sem perguntar a seus iguais: sentir-vos-ão ofendidos com tal conduta? Quem for capaz de prescindir da resposta, pouco se importa com ela.
Por outro lado, quanto à argumentação em função da redação do nosso código (lembremos a 2ª inconsistência apresentada pelo Professor Damásio), não a rebateremos. Não diretamente. Mas vamos propor, nós também, uma inconsistência (ou teria sido um mero esquecimento?). Argumenta o ilustre mestre paulista que nossa Lei Penal quando fala de atipicidade da conduta ou de sua licitude, fala-nos "não há crime...". Contudo, quando nos fala de exclusão da culpabilidade, fala-nos "é isento de pena...". Então, vejamos: qual seria o motivo para o legislador falar-nos "é isento de pena quem, por erro plenamente justificado pelas circunstâncias, supõe situação de fato que, se existisse, tornaria a ação legítima..." (artigo 20, §1º do CPB, descriminantes putativas). Ora, segundo o próprio Professor Damásio, as eximentes putativas ou causas putativas de exclusão da antijuridicidade derivadas de erro de tipo invencível, isto é, escusável, exclui o dolo e a culpa, tornando a conduta atípica. Assim, não havendo conduta típica, não há crime. Mas relembremos: não nos dizia a letra da lei que "é isento de pena..." (lembra o artigo 20, §1º?), e esta não era a argumentação do próprio Professor Damásio para justificar-se, ou seja, não pertenceria a culpabilidade ao conceito de crime, pois o código assim o determinava? Não nos havia dito o Professor Damásio que sendo lícita a conduta, não haveria crime, e o próprio Código assim nos informaria? Enganou-se o legislador? Não. A argumentação não se sustenta.
Encontramo-nos diante de um encruzilhada: a dogmática penal, como um médico tresloucado, cria monstros do nada e procura dar-lhes uma alma humana (em outras palavras é o que podemos chamar de "fetiche da lei"). No entanto, assim procedendo, tornar-se cada vez mais distante daquilo que podemos entender por meio de um senso comum talvez por ser este o destino de qualquer ciência. Mas, como pode o Direito Penal fazê-lo sem negar sua própria essência de ciência do homem? Afirmamos que, neste caso, a criatura não pode ser incompreensível ao seu criador. Deverá, no entanto, manter sua mesma alma, sua mesma essência. Afastar o Direito do homem é negar-lhe a possibilidade de viver em liberdade, talvez o seu bem mais precioso.