Reforma tributária: história e autonomia municipal

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A reforma tributária pela perspectiva histórica da autonomia municipal

Um povo que não conhece a sua história, está condenado a repeti-la. As palavras do filósofo irlandês do século XVIII, Edmund Burke, podem ser um farol à reforma tributária que ora se apresenta, pois, conquanto as propostas expressem alguns avanços, também ressuscitam o assombro da dependência municipal dos governos federal e estadual no que se refere à tributação sobre o consumo.

As propostas em tramitação no Congresso Nacional apresentam avanços, como a seletividade, a incidência no destino, a redução das obrigações acessórias e das discordes interpretativas e o fim da cobrança do imposto por dentro, que impõe ao cidadão o pagamento do imposto sobre o imposto.

De modo distinto, a propositura de junção do Imposto sobre Operações relativas à Circulação de Mercadorias e sobre Prestações de Serviços de Transporte Interestadual e Intermunicipal e de Comunicação – ICMS, de competência estadual, e do Imposto Sobre Serviços de Qualquer Natureza – ISSQN, de competência municipal, em um imposto sobre valor agregado (IVA), consignada na Proposta de Emenda à Constituição – PEC nº 110/2019 (Senado Federal), resultaria em retrocesso à autonomia municipal. Evidenciemos, inicialmente, o fato de que o imposto conhecido como IVA já é uma ideia obsoleta, senão equivocada:

O imposto de circulação, com a incidência principal da arrecadação na fase do processo produtivo, acarreta sérios embaraços ao progresso econômico pelo desperdício que impõe retenção de capital de giro, em prejuízo dos investimentos. [...] Embaraça a eqüidade fiscal porque drena recursos das regiões mais pobres para as mais ricas. (BULHÕES, 1999, p. 109)

São disfunções comuns ao IVA a sonegação, a exigência de considerável estrutura estatal, a alíquota alta e a complexidade. Os países da União Europeia acumularam € 152 bilhões (quase um trilhão de reais em valores atuais) em perdas por sonegação com o IVA somente no ano de 2015 (COMISSÃO EUROPEIA, 2017, p. 1). Inegável, inclusive, que a implantação de um IVA no Brasil, necessitaria de uma estrutura de controle e fiscalização sem precedentes. A alíquota para um IVA brasileiro é estimada em 30%, o que implicaria em considerável aumento dos preços, especialmente dos serviços de saúde e educação, que hoje têm alíquotas de ISSQN de 2% a 5%. Como comparação, a alíquota geral do ICMS no Estado do Rio Grande do Sul em 2021 é de 17%, tendo recentemente chegado a 30% para os combustíveis. Aliás, ressaltamos que o ICMS já é um IVA e apresenta sérios problemas, sendo possivelmente o tributo mais complexo já criado em terras tupiniquins. Segundo relatório Doing Business do Banco Mundial (2021, p. 104), no Brasil uma empresa de médio porte gasta em torno de 1.501 horas por ano somente para apurar e pagar tributos, enquanto a média nos países integrantes da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico – OCDE é de 156 horas. Somente o ICMS é responsável por 885 horas (59%). O ISSQN, por sua vez, é um imposto simples, sem mecanismos de créditos e débitos, tem alíquotas baixas, apuração e pagamento rápidos e base crescente, faltando-lhe apenas simplificação e a padronização das obrigações acessórias. Jungir esses dois impostos, um estadual e outro municipal, não se mostraria boa prática já pela análise dos inconvenientes de um IVA, e constituiria um retrocesso pela extinção do tributo que concedeu alguma autonomia aos Municípios.

O ISSQN foi atribuído, constitucionalmente, aos Municípios, sendo da sua competência efetuar o lançamento, a fiscalização e a arrecadação. Reduzir a autonomia tributária municipal a receber o repasse da arrecadação ou a definir a alíquota, seria involução, seria desconhecer a história. A autonomia tributária municipal não se mede somente pelo volume de recursos transferidos por outros entes. Subjugar os Municípios a dependerem de recursos geridos pela União ou Estados é equivalente a voltar no tempo, é dessaber os avanços democráticos granjeados nos últimos 80 anos. Victor Nunes Leal, em sua obra Coronelismo, enxada e voto, descreve a relevância da autonomia municipal, a começar pela autonomia tributária:

Este o panorama encontrado pela Assembleia Constituinte de 1946, que revelou maior preocupação que a da Segunda República pela sorte dos municípios. O seu “enternecimento municipalista” manifestou-se principalmente na solução dada ao problema tributário e seguiu, no mais, os mesmos rumos evidenciados na Constituinte anterior. A autonomia dos municípios foi garantida: pela eleição do prefeito e dos vereadores; pela administração própria, no que concerne ao seu peculiar interesse. Conceituou-se o peculiar interesse do município, especialmente, pela decretação e arrecadação dos tributos de sua competência, aplicação de suas rendas e organização dos serviços públicos locais. (LEAL, 2012, p. 54)

A palavra “autonomia” tem sentido de liberdade; para os Municípios, a de não se sujeitar ao amesquinhamento de suas capacidades. A capacidade de obtenção de suas próprias receitas equipara-se à contenda de outrora pela eletividade dos prefeitos:

Rui Barbosa, defendendo no Supremo Tribunal a autonomia dos municípios baianos, deu grande ênfase literária à eletividade dos prefeitos. Não podemos deixar de lhe transcrever as belas palavras: Vida que não é própria, vida que seja de empréstimo, vida que não for livre, não é vida. Viver do alheio, viver por outrem, viver sujeito à ação estranha, não se chama viver, senão fermentar e apodrecer. A Bahia não vive, porque não tem municípios. Não são municípios os municípios baianos, porque não gozam de autonomia. Não logram autonomia, porque não têm administração, porque é o Governo do Estado quem os administra. (LEAL, 2012, p. 73)

Já em 1882, relata Leal (2012, p. 77), o Ministro da Fazenda, Visconde de Paranaguá, empenhado em não admitir que as Províncias exorbitassem de sua legítima esfera tributária, preocupou-se em aumentar a receita local. Assim, constituiu uma comissão especial para elaborar um projeto de lei que melhorasse a divisão e classificação das rendas gerais, provinciais e municipais. Essa comissão propôs diversas medidas, como a transferência para as Províncias dos impostos de indústrias e profissões e de transmissão de propriedade. Infelizmente seu relatório não teve sucesso. Visconde de Ouro Preto, contemporâneo de Paranaguá, participando de comissão incumbida de estudar a reorganização administrativa das Províncias e Municípios, entendia que o problema tributário se achava em primeiro plano, pois de nada valia libertá-las da tutela que as atrofiava, “se, por deficiência de meios”, fossem “condenadas a vegetar”. Mas, nenhuma mudança ainda se anunciava. No regime de 1891, viu-se o risco de uma mistura entre receitas tributárias estaduais e municipais:

No regime de 1891, [...] o poder tributário dos municípios era inteiramente derivado do estadual e devia exercer-se nos limites marcados pela Constituição e leis do Estado. Portanto, somente dos tributos permitidos ao Estado se podia extrair a receita municipal [...]. Durante a longa vigência da Constituição de 1891, as rendas municipais, de modo geral, foram ínfimas. [...] À deficiência tributária dos Estados, Alcântara Machado imputava a penúria dos municípios: “Daí resulta a vida meramente vegetativa da grande maioria dos nossos municípios, feridos de paralisia, apodrecendo ao sol, incapazes de prover às suas necessidades elementares”. Que fazem os Estados, “premidos pelas circunstâncias? De uma parte, sacam desvairadamente, contra o futuro, comprometendo o erário em ruinosas operações de crédito; de outra parte, invadem a esfera tributária, própria dos municípios, estancando as fontes de vida local”. (LEAL, 2012, p. 79)

As tentativas de uma campanha municipalista na Assembleia de 1933-34 obtiveram, lamentavelmente, minguados resultados:

Relativamente à discriminação da competência para tributar, começou por mostrar que não havia problema no pertinente às rendas e às taxas. A dificuldade surgia com os impostos. Partindo da anterior discriminação das fontes tributárias, o senhor Prado Kelly assim as distribuiu: para a União, bens móveis e sua transferência; para os Estados, atividade e bens imóveis rurais e sua transmissão; para os municípios, bens imóveis urbanos e sua transmissão. Mas — cumpre observar — esta segunda discriminação não é da receita, mas somente da competência para tributar. [...] A emenda no 1.945 [...] foi aprovada na parte que nos interessa, saindo vitoriosa a ideia de constar da Constituição federal a discriminação da receita municipal. Tocaram, assim, aos municípios: o imposto de licenças; os impostos predial e territorial urbanos, cobrado o primeiro sob a forma de décima ou de cédula de renda; o imposto sobre diversões públicas; o imposto cedular sobre a renda de imóveis rurais; metade do imposto de indústrias e profissões, cujo lançamento incumbia aos Estados; 20% da arrecadação, em seu território, de impostos não especificados na Constituição e que viessem a ser criados pela União ou pelo Estado; as taxas sobre serviços municipais e, finalmente, qualquer outro imposto que lhes fosse transferido pelo Estado. Na expressão do senhor Levi Carneiro, a Assembleia adotara “a grande e salutar inovação” de atribuir renda privativa aos municípios. Essas rendas ficaram, entretanto, muito aquém de suas necessidades. (LEAL, 2012, p. 84)

A Carta de 1946 transferiu aos Municípios o Imposto Sobre Indústrias e Profissões, mantendo-lhes o Imposto Sobre Diversões Públicas. Seja pela necessidade de crescimento do mercado consumidor interno ou pela visível penúria dos entes locais, a transferência da competência para tributar possibilitou o desenvolvimento dos Municípios, tanto nas sedes urbanas quanto nos distritos rurais. Os reflexos da dependência econômica dos Municípios manifestaram-se em nossa história de diversas formas:

Já vem de muito longe, como se vê, a situação de penúria financeira dos nossos municípios. No Império, especialmente a partir do Ato Adicional, e na República, a questão da receita municipal tem estado envolvida no problema mais amplo da receita provincial e estadual. Tanto as províncias como, depois, os Estados têm tido rendas insuficientes para o vulto de seus encargos, e essa situação forçosamente haveria de refletir-se nas finanças municipais. Não pensemos, porém, que o erário nacional sempre nadou em ouro, porque também ele tem vivido de aperturas. O panorama é de pobreza geral, na tríplice esfera tributária: quando os políticos e publicistas se referem à partilha leonina da nossa receita pública, isso não significa fartura para uns e sovinice para outros; é mera expressão comparativa, que traduz uma indevida proporcionalidade entre as diversas categorias de rendas: municipais, provinciais ou estaduais e gerais ou federais. Sobre o problema da discriminação tributária, como tivemos oportunidade de ver, grandes e eruditas tertúlias registram nossos anais parlamentares, ilustrando plenamente o dito popular: em casa onde falta o pão, todos brigam, ninguém tem razão. Ainda assim, a divisão da pobreza poderia ter sido mais equitativa do que é costume entre nós. A maior cota de miséria tem tocado aos municípios. Sem recursos para ocorrer às despesas que lhes são próprias, não podia deixar de ser precária sua autonomia política. O auxílio financeiro é, sabidamente, o veículo natural da interferência da autoridade superior no governo autônomo das unidades políticas menores. A renúncia, ao menos temporária, de certas prerrogativas costuma ser o preço da ajuda, que nem sempre se inspira na consideração do interesse público sendo muitas vezes motivada pelas conveniências da militança política. Exemplo característico da perda de atribuições por motivo de socorro financeiro encontramos na lei mineira no 546, de 27 de setembro de 1910. Essa lei, conhecida pelo nome do presidente que a sancionou, Bueno Brandão, permitiu ao Estado fazer empréstimo aos municípios para abastecimento de água, rede de esgotos e instalações de força elétrica. Condicionava, porém, esses empréstimos à celebração de acordo, em virtude do qual pudesse o Estado arrecadar rendas municipais para garantir o serviço de amortização e juros. Os empréstimos anteriores, ainda mediante acordo, também poderiam ser unificados e submetidos ao mesmo regime. A exigência do acordo era uma reverência ao princípio jurídico da autonomia municipal, mas, em certos casos, essa ressalva lembraria a liberdade que tem o operário de discutir o salário em época de desemprego. (LEAL, 2012, p. 94)

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Constata-se semelhança entre as condições, para os Municípios mineiros, da lei aprovada em 1910 e, para os Estados, do regime de recuperação financeira aprovado 107 anos depois, através da Lei Complementar nº 159/2017, e preocupa-nos a percepção de que os Municípios podem ser os próximos, repetindo a história.

Experimentamos uma longa luta pela existência de um tributo de livre competência dos Municípios, de um tributo que lhes concedesse liberdade. Essa autonomia consolidou-se em 1965:

Foi a Emenda Constitucional nº 18, de 1º de dezembro de 1965, sob o comando do Programa de Ação Econômica do Governo 1964/1966, o diploma responsável pela única grande reforma tributária brasileira realizada até hoje e pela criação do Imposto Sobre Serviços de Qualquer Natureza, hoje vigente, normalmente designado pelas siglas ISSQN e ISS. A reforma tributária de 1965 procurou eliminar a superposição de impostos, bem como os impostos destituídos de funcionalidade econômica, e reviu critérios de competência e de incidência. Extinguiu os impostos sobre indústrias e profissões e sobre diversões públicas, além de outros, como os impostos de licença (municipal) e sobre transações (estadual). Criou o Imposto sobre operações relativas à Circulação de Mercadorias, conhecido como ICM (art. 12), e o Imposto Sobre Serviços de Qualquer Natureza, ISSQN (art. 15). (LIMA, 2018, p. 26)

O ISSQN, mantido na Carta Magna de 1988, já é responsável por 50% das receitas próprias das médias e grandes cidades; renunciá-lo seria renunciar à autonomia municipal. A PEC 110/2019 prevê a junção do ICMS com o ISSQN em um IVA de competência dos Estados, Distrito Federal e Municípios, a ser disciplinado por um conselho, além de um período de transição de 6 anos. No entanto, seja por lei ou deliberação do conselho, os Estados, entes federados cada vez mais fortes politicamente e debilitados financeiramente, tenderão a assumir o controle do novo imposto. A história fala por si. A proposta de junção do ICMS e do ISSQN não aparenta trazer avanços; pelo contrário, tem o potencial de reviver a dependência municipal dos poderes geral e provincial, concebendo um retorno ao estado de coisas anterior a 1965, talvez anterior a 1946. Retrocederemos 80 anos em 6.

 

REFERÊNCIAS

BANCO MUNDIAL. Doing Business Subnacional Brasil 2021. Washington: World Bank Publications, 2021. Disponível em: <https://portugues.doingbusiness.org/content/dam/doingBusiness/media/Subnational/DB2021_SNDB_Brazil_Full-report_Portuguese.pdf>. Acesso em: 11 out. 2021.

BULHÕES, Octávio Gouvêa de. Considerações sobre reforma tributária. Rio de Janeiro: Fundação Octávio Gouvêa de Bulhões, 1999.

COMISSÃO EUROPEIA. Desvio do IVA: países da UE perderam 152 mil milhões de euros em 2015, o que revela urgente necessidade de reforma do IVA. Bruxelas: Comissão Europeia - Comunicado de imprensa, 2017. Disponível em: <https://ec.europa.eu/commission/presscorner/api/files/document/print/pt/ip_17_3441/IP_17_3441_PT.pdf>. Acesso em: 11 out. 2021.

DEODATO, Alberto. Manual de ciência das finanças. Belo Horizonte: Paulo Bluhm, 1941.

FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Dicionário Aurélio da língua portuguesa. 5. ed. Curitiba: Positivo, 2010.

LEAL, Victor Nunes. Coronelismo, enxada e voto: o município e o regime representativo no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.

LIMA, Tarciano José Faleiro de. Exportação de serviços: incidência do ISSQN. Porto Alegre: Editora Rígel, 2018.

MORAES, Bernardo Ribeiro de. Doutrina e prática do imposto sobre serviços. São Paulo: Revista dos tribunais, 1975.

PONTES DE MIRANDA. Comentários à Constituição de 1946. Tomo II. 4.ed. Rio de Janeiro: Borsoi, 1963.

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Sobre o autor
Tarciano José Faleiro de Lima

Auditor-Fiscal do Município de Porto Alegre. Pós-graduado em Direito Público e Gestão Pública. Professor. Escritor.

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