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A criminalidade e o pacto social

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Cesare Beccaria, homem de grande visão e extraordinário intelecto, fortemente influenciado pela teoria de Rousseau, construiu as teses que são objeto do presente ensaio. Mas nem Beccaria, que nasceu e viveu na Europa do século XVIII, teria podido prever de que forma haveriam de evoluir as sociedades do mundo moderno.

As bases contratualistas de Beccaria sugerem que ao ordenamento jurídico penal implementador de condutas e sanções, preexiste um Contrato Social que vincula indelevelmente os indivíduos entre si e estes com a sociedade em pactos mútuos que se revelam úteis à maioria. Este grande Tratado Social reina soberano acima de todas as cabeças e todos, indistintamente, devem temê-lo de igual maneira.


A grande questão no presente ensaio, é a busca em vislumbrar qual o real valor de um contrato, produto de um corpo social cujas diferenças não se fizeram apenas pelo maior empenho e esforço de alguns indivíduos sobre os outros, mas de que forma tal proposição é traduzida nesta sociedade brasileira em que vivemos.

"A criminologia hodierna revela, com meridiana clareza, que o crime é fenômeno sócio-politico, advindo da conjugação de fatores sociais, tendo o Direito Penal ínfima capacidade de influir sobre eles. Inútil tentar evitar certas ações tornando-as delituosas, não sendo possível ao Direito Penal a solução do problema da criminalidade".

Concentremo-nos na primeira parte da assertiva supra-transcrita, a fim de mensurar-lhe a veracidade.

Como explicar o recrudescimento da criminalidade na sociedade brasileira hedierna, especialmente a criminalidade violenta?

Como atribuir a um povo pacífico a banalização da vida humana nestes presentes termos? De que modo justificar a indesejável estatística de 31 homicídios para cada 100.000 habitantes?

Não prefere o espírito deste povo a resolução pacifica de suas escaramuças ao despotismo físico, afinal? Então, por quê a violência tem escalado estes índices estratosféricos que tornam a vida do homem médio absolutamente insuportável?

A criminalidade é, provavelmente, um dos fenômenos de maior complexidade na história da evolução humana. Como surgiu, de que forma prosperou entre os indivíduos, como passou de circunstância isolada ao fenômeno social moderno? Todas estas indagações restam dissecadas e esgrimidas nas teses que procuram entender o crime.

Procura-se entender o fenômeno crime no Brasil pelo que existe de mais evidente em nossa estrutura social: o colossal contraste que impera o ventre deste corpo social e que pode ser traduzido pela existência de dor e prazer, felicidade e miséria, apenas que alguns poucos são destinatários fixos de ventura, enquanto que grande maioria o é de tragédia.

O que pode explicar melhor a crescente criminalidade do que as inaturáveis diferenças sociais que hoje preferem a máxima de dar a cada um o que é seu, ao princípio de dar a cada um conforme sua necessidade?

Que visão pode operar melhor exegese da formação do fenômeno criminal do que as legiões de miseráveis que saem dos campos para invadir e tornar insuportáveis as estruturas urbanas?

Bolivar Lamounier, citando Roberto Pompeu de Toledo, manifesta-se brilhantemente sobre a questão, propugnando que "pior que a desigualdade em si, que apesar de não ser o único, é o fator decisivo para efeitos de desencadeamento da criminalidade, é a desigualdade num tempo em que acreditar na justeza e na fatalidade das coisas é tão fora de moda como acreditar no direito divino dos reis."

Não foi tal descrença que precipitou o movimento que tornou-se historicamente conhecido como Revolução Francesa? Não seria o crime a revolução que se opera entre a sociedade injustiçada, apenas em moldes diferentes aos da ocorrida na Europa?

"O tempo atual é o da denúncia das facilidades, das fatalidades e das hipocrisias que eles encobrem, bem como das ingenuidades que nutrem. Ocorre também que este é o século da força irresistível da democracia, ou pelo menos da idéia da democracia, desta sua filha incômoda, a igualdade. Também é o século da comunicação veloz da televisão, da propaganda, do apelo embriagador ao consumo. O Brasil foi apanhado entre dois focos. Tem cabeça no Ocidente e corpo na Ásia. Ou, por outra, rege-se pelo ideal ocidental do desenvolvimento, a liberdade e o do individualismo, mas tem a sociedade mergulhada numa estrutura de subcontinente indiano.

E como restam os indivíduos diante da ambígua situação que, a um só tempo, lhes informa das maravilhas da democracia, das novas liberdades, dos avanços tecnológicos e do prazer de consumir, e do outro, através de um sistema excludente, nega-lhes o mínimo de bem estar?

Os criminosos que matam sem motivo apresentam um quadro de impotência patológica. Eles transformam todas as suas frustrações em sadismo. Somente quando matam alguém, desfrutando uma sensação de poder, é que se sentem vencedores.

Penso que a criminalidade violenta, traduzida pela selvageria do miserável contra o apaniguado, é forma de protesto e reação à estrutura de poder que perpetua e aumenta os abismos sociais.

Sim, porquê aqui fala-se em criminalidade violenta. Se a questão fosse tão somente de sobrevivência, seriam os delitos patrimoniais bastante para reduzir as diferenças do binômio dor-prazer. O que explica, então, a necessidade de que os indivíduos pratiquem atos de truculência e barbárie contra os seus semelhantes?

Parece ser mesmo uma mecânica determinista a compulsar nossos patrícios ao crime. Pode, contudo, ser tomado como regra? Embora tal lei de causa e feito seja proverbial, nem sempre uma situação de extrema miserabilidade leva um indivíduo ao crime.

Todavia, muito mais lógico concluir que ao homem dono de um presente de tal forma miserável e certo de um porvir tão sem dignidade e tão dessesperançoso, afigura-se o crime como a mitigação de sua dor. A conduta criminosa mostra-se como a forma de recuperar parte da felicidade que lhe é subtraída e que é, afinal, o fim precípuo do trato social, que é de assegurar, através dos termos tácitos de sua contratualidade, máximas segurança e felicidade para todos.

Os pactos sociais, que na concepção de Rousseau devem se afigurar úteis à maioria, acabam por efeito contrário, a exemplo do que demostra o contigente de seres absolutamente miseráveis espalhados por este país.

De 150 milhões de brasileiros, 16 milhões vivem abaixo das condições mínimas para que se integrem à condição humana mais elementar. Mais de 16 milhões, recebendo apenas o salário mínimo, não corporificam o conjunto dos que vivem decentemente, e assim por diante, até que se verifique o desprezível percentual dos que retém a grande parcela da riqueza nacional. É diminuta a parcela que emprega recursos e esforços para a formação do corpo legislativo que irá traduzir nos códigos o contrato social.

Cesare Beccaria opera tal exgese ao afirmar que "consultemos a história e veremos que as leis, que são ou deveriam ser pactos entre homens livres, não passaram, geralmente, de instrumentos da paixão de uns poucos, ou nasceram da necessidade fortuita; jamais foram elas ditadas por um frio examinador da natureza humana, capaz de aglomerar as ações de muitos homens num só ponto e de considerá-las de um único ponto de vista: a máxime felicidade compartilhada pela maioria. Felizes as raras nações que não esperam que a lenta evolução das circunstâncias e das vicissitudes humanas conduzisse ao bem após ter atingido o mal extremo, mas que por meio de boas leis aceleraram as passagens intermediárias."

Todavia, teria sido possível, no Brasil, que boas leis acelerassem estas passagens intermediárias de infelicidade e infortúnio? O próprio mestre italiano ajuda a elucidar esta questão: "devemos admitir que os homens que renunciam ao seu depotismo natural, tenham dito; que o mais industrioso tenha as maiores honras e que sua fama resplandeça nos seus sucessores; e quem é mais feliz e honrado tenha maiores aspirações, mas não tema, menos que os outros, violar aqueles pactos por meio dos quais se elevou acima deles".

É de perguntar, todavia, de que modo se formaram os homens de maior honra e fama deste país. Teriam as grandes oligarquias brasileiras se formado e estabelecido pela industriosidade de seus representantes? Se a busca por tais "honra e fama" deu-se, desde o princípio, em condições de desigualdade, e não pela industriosidade dos indivíduos, pode a lei mais não ser do que a cristalização destas desigualdades.

Afinal são as leis o instrumento a degenerar o pacto social, codificando equivocadamente os termos da contratualidade?

Beccaria propõe que não basta construir o depósito das liberdades individuais renunciadas, mas é mister defendê-lo das usurpações privadas de cada homem em particular, o qual sempre tenta não apenas retirar do depósito a porção que lhe cabe, mas ainda procura apoderar-se daquela dos outros. Tal defesa consiste nas leis. Mas sendo leis produto de diferenças sempre existentes, é possível que o corpo político defenda o depósito das liberdades renunciadas com igual empenho contra os excluídos e aqueles que se encontram sob o apanágio do poder da riqueza?

Mas o eventual acesso desses últimos ao depósito, não é aparente, todavia. Se o fosse, toda estrutura social desabaria como um prédio em ruínas. Sua incolumidade precisa estar demonstrada de bem da perpetuação e ordenamento do corpo social.

Preleciona Beccaria que "a quem dizer que a pena aplicada ao nobre, ao plebeu não é realmente a mesma em virtude da diversidade da educação e da infâmia que se derrama sobre uma ilustre família, responderei que não se medem as penas pela sensibilidade do réu, mas sim pelo dano público, tanto maior quanto é ocasionado pelo mais favorecido."

Quanta razão cabe ao ilustre mestre italiano, e quão infeliz restaria diante do que se observa hodiernamente no Brasil.

Embora figurem em ações penais e sejam submetidos à execração pública pelos órgãos de imprensa, os indivíduos que corporificam as altas classes raramente confirmam, com eventual condenação, a proposição beccariana de que as penas são proporcionais aos delitos cometidos e aos danos praticados à nação.

Ocasionalmente, todavia, um desses indivíduos é sacrificado a bem da garantia e da proteção jurídico-penal, quando então, contrario sensu, hiperdimensiona-se a porporção beccariana crime-castigo. É quando, em nome da demonstração de que a instituição permanece estável e o império da lei reina soberano acima de todos os indivíduos indistintamente, toda a miséria e toda a infâmia recaem sobre este único indivíduo, como fosse ele sozinho responsável pelos males que assolam o país como verdadeira endemia.

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Concentremo-nos no problema da impunidade. Não seriam as lei penais boas o bastante para consagrar o axioma de que "todos são iguais perante a lei"?

O certo é que, embora não se deva sacralizar às leis de direito material, muito maior carga de culpa reside nas leis processuais. Penso que ocorra a conjugação de dois fatores que contribuem para aumentar as diferenças e concorrem para a certeza dos destinatários das penas. São eles o acesso à justiça e a lei processual penal.

Até o intelecto mais vulgar sabe que o acesso à justiça tanto mais se dá quanto é o prestígio social ou as possibilidades materiais que determinado indivíduo concentra. Traduz-se pela condição que tem de dispor de advogados de grande renome e fama, que circulam com desenvoltura pelo meio jurídico e a quem é atribuída insuspeita reputação. Profissionais que colocam a serviço do acusado não apenas um superior saber jurídico, mas também o que de mais moderno existe em termos de material jurídico-legal.

A questão da lei processual cinge-se à complexidade processualística, ao sem números de possibilidades que o processo penal admite desde o início até o seu final, também fortalecido pelo princípio do contraditório e ampla defesa, consagrado pelo diploma constitucional vigente.

Mas não é a ampla defesa o objeto da nossa critica. Que se registre, ao contrário, as enormes conquistas alcançadas no plano de direitos e garantias individuais da nova Carta, em que tais princípios estão inseridos e pelos quais todas as possibilidades de defesa do réu devem ser devidamente exauridas antes de eventual condenação, máxime diante da realidade dantesca em que nosso sistema prisional se transformou.

O que se pretende dizer é que, enquanto a uns são ferecidas todas as possibilidades, a outros, mais não resta do que uma defesa de tal forma pífia que antes assemelha-se a uma condenação antecipada.


Restam últimas considerações a respeito do contrato social.

A contratualidade opera no sentido precípuo de que máximas segurança e felicidade sejam alcançadas, sendo que os termos para que se atinja esses objetivos encontram-se delineados pela renúncia de porções das liberdades individuais.

Toda vez que prevalece a impunidade, alcançada pela posição privilegiada de um indivíduo que muita vezes não foi sua industriosidade que lho deu, a crença da cláusula tácita que vincula os homens uns aos outros perde força e legitimidade.

Não se sabe, todavia, até que ponto resta ameaçado o pacto social no Brasil, pois que nossos cidadãos, donos de enorme viver e humor, e grandes ironizadores de suas próprias tragédias e miséria, pouco sabem e muito ignoram acerca de nossa realidade.

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Sobre o autor
Marcus Valério Saavedra Guimarães de Souza

Advogado, especializado em Direito Penal e Processo Penal, pós-graduando em Direito Civil e Processo Civil pela Universidade Estácio de Sá (RJ), membro-associado da Associação dos Criminalistas do Estado do Pará, membro-associado da Academia de Júri do Estado do Pará

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SOUZA, Marcus Valério Saavedra Guimarães. A criminalidade e o pacto social. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 5, n. 42, 1 jun. 2000. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/941. Acesso em: 29 mar. 2024.

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