1.INTRODUÇÃO
Através do presente trabalho objetivamos reafirmar a inconstitucionalidade do instituto da reincidência diante dos princípios esposados na Carta Magna, em entendimento oposto à declaração do Supremo Tribunal Federal (STF) de constitucionalidade da recidiva quando do julgamento do Recurso Extraordinário (RE) 453.000 em abril de 2014.
Uma ótica realista lançada sobre o sistema de justiça criminal permite verificar que o problema da execução das penas é generalizado na sociedade brasileira. As prisões são criminogênicas e geram reincidência. Se ficarmos limitados ao estudo de dispositivos para tratar do crime, como a reincidência legal, não nos aprofundaremos no real funcionamento do sistema de justiça criminal, que tem os seus parâmetros legais, como o direito penal e o processo penal, mas que funciona efetivamente através da atuação da polícia, da justiça e da prisão.
As prisões, na verdade, não reduzem a criminalidade e não cumprem as funções declaradas de “correção” do criminoso. Iludem-se os operadores do direito com a possibilidade de usar a pena como meio de transformação do sujeito. Os objetivos declarados da prisão, de correção do condenado, não são cumpridos, porque a prisão introduz o sujeito em novas relações de violência. A prisão é um mundo violento – uma observação sempre necessária. O sujeito que entra na prisão tem que se adaptar às novas normas deste sistema. São regras de sobrevivência, de violência e de malandragem. Quando, então, o sujeito se encontra absolutamente adaptado à prisão, ou seja, foi “prisionalizado”, deve retornar para a comunidade, aonde irá deparar-se com as mesmas condições adversas que o levaram à primeira criminalização, além da atitude adversa das outras pessoas, pois agora ele é um egresso. A sociedade tem um papel nisso, pois se comporta em relação ao delinquente com a expectativa de que ele continue praticando novos crimes e prossiga a sua carreira criminosa. O resultado é, naturalmente, a reincidência.
Por consequência, temos que o cumprimento da pena privativa de liberdade em ambientes hostis, na verdade, produz reincidência, conforme preleciona a criminologia crítica, que se faz necessária para entendermos o que realmente é o direito penal.
A criminologia crítica expõe um sistema de justiça criminal inteiramente criminogênico, o qual não cumpre as funções declaradas pelo discurso jurídico oficial, mas outras funções ocultas, como a manutenção de uma sociedade desigual. Numa sociedade profundamente desigual e injusta como a nossa, o direito penal busca garantir essa injustiça e essa desigualdade, então ele é, por natureza, elitista.
Há muitos autores de escol que ao versarem sobre o tema alinham-se à postura crítica defendida neste trabalho diante de tão aviltante que é o instituto da reincidência criminal perante vários princípios fundamentais consagrados na Constituição Federal de 1988.
Apesar do entendimento já consolidado pelo STF, no julgamento do RE 453.000, a homogeneidade de pensamentos exposta no respectivo acórdão não é verificada na doutrina, pois trata-se de tema com manifesta carga de divergência doutrinária entre os criminalistas.
Através de uma breve análise do julgamento realizado pelo Supremo, iremos expor os principais tópicos desfavoráveis à aplicação da reincidência e procurar contra-argumentar os principais posicionamentos que foram apresentados pelos ministros quando proferiram seus votos.
A metodologia empregada na investigação foi o método dialético. A partir de uma formulação geral, de que a reincidência não se coaduna com uma série de princípios constitucionais e de uma análise sociológica do sistema de justiça penal, procuramos entender o motivos que levaram os ministros do Supremo a declararem a constitucionalidade do instituto e se os argumentos de que se valeram poderiam ser rebatidos diante de uma análise minuciosa a partir da lógica de um direito penal de fato albergado pelo garantismo penal.
Assim, esperamos com este trabalho expor uma abordagem crítica do instituto da reincidência e do RE 453.000, considerando que a declaração de constitucionalidade da reincidência pela Suprema Corte não esgota o assunto, pois a reincidência criminal pode ser valorada negativamente como dispositivo inconstitucional intimidatório de natureza retrógrada e autoritária.
2. REINCIDÊNCIA
Segundo o dicionário MICHAELIS, reincidente é “aquele que faz a mesma coisa novamente” (REINCIDÊNCIA, 2019). Derivada do latim recidere, a palavra reincidência, de forma geral, significa “recair” ou “repetir o ato”. “Reincidência é, em termos comuns, repetir a prática do crime.” (JESUS, 2013, p. 611)
Do ponto de vista jurídico, a “reincidência” é um instituto de direito criminal previsto no ordenamento jurídico brasileiro no art. 63 do Código Penal. Vejamos:
Art. 63 - Verifica-se a reincidência quando o agente comete novo crime, depois de transitar em julgado a sentença que, no País ou no estrangeiro, o tenha condenado por crime anterior.
A natureza jurídica da reincidência é de circunstância agravante genérica e a sua aplicação é, segundo o Código Penal (CP) brasileiro, obrigatória por parte do juiz, a ser sopesada na segunda etapa do critério trifásico de valoração da pena, consoante os artigos 61, inciso I e 68 do diploma repressivo, respectivamente:
Art. 61 - São circunstâncias que sempre [destacou-se] agravam a pena, quando não constituem ou qualificam o crime:
I - a reincidência;
Art. 68 - A pena-base será fixada atendendo-se ao critério do art. 59 deste Código; em seguida serão consideradas as circunstâncias atenuantes e agravantes; por último, as causas de diminuição e de aumento.
A doutrina costuma elencar os requisitos que caracterizam a reincidência da seguinte forma: 1) prática do primeiro crime; 2) trânsito em julgado da sentença condenatória; 3) cometimento de novo delito, após o trânsito em julgado da sentença penal condenatória.
Uma classificação doutrinária bastante comum acerca da recidiva é aquela que a subdivide em duas espécies: reincidência real e reincidência ficta. A primeira espécie, reincidência real, acontece quando o agente pratica um novo delito depois de ter cumprido total ou parcialmente a pena imposta em função do cometimento do crime anterior. A segunda espécie, reincidência ficta, ocorre quando o cidadão infrator pratica um novo crime após o trânsito em julgado da sentença que o condenou pela prática do primeiro delito, sendo totalmente irrelevante, para efeito desta classificação, se o criminoso cumpriu ou não a pena imposta ao primeiro crime. Portanto, depreende-se que o nosso código adotou a primeira modalidade (reincidência real), pois o art. 63 não faz nenhuma menção à necessidade de que o réu condenado tenha efetivamente cumprido a pena que lhe foi imposta diante da prática da primeira infração para caracterizar-se o instituto.
Além disso, a doutrina classifica a reincidência em: 1) genérica, quando os crimes praticados não são semelhantes, possuindo natureza diversa e previsão em dispositivos legais distintos; e 2) específica, quando os crimes praticados pelo agente são os mesmos ou, ainda que previstos em dispositivos legais diferentes, apresentam a mesma natureza e ofendem ao mesmo bem jurídico. Vimos que a norma geral da reincidência brasileira, prevista no art. 63, não exige a prática do mesmo delito para a sua configuração. Contudo, a reincidência específica encontra-se prevista em outros dispositivos do nosso ordenamento. Convém destacar a explicação de Greco sobre o tema:
Como regra geral, o Código Penal afastou a chamada reincidência específica, sendo suficiente a prática de crime anterior – independentemente das suas características -, que pode ou não ser idêntico ou ter o mesmo bem juridicamente protegido pelo crime posterior, praticado após o trânsito em julgado da sentença condenatória. Contudo, ao cuidar, por exemplo, do livramento condicional, exigiu, para a sua concessão, que fossem cumpridos mais de dois terços da pena, nos casos de condenação por crime hediondo, prática de tortura, tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, e terrorismo, se o apenado não for reincidente específico em crimes dessa natureza, excepcionando a regra geral. (2013, p. 178)
No que diz respeito ao quantum para agravar a pena do réu reincidente, é de caráter discricionário por parte do magistrado, pois não existe previsão expressa no CP. Porém, diversos doutrinadores asseveram que não se deve ultrapassar o limite de até um sexto da pena-base estabelecida:
[...] o Código não estabelece a quantidade de aumento ou de diminuição das agravantes e atenuantes legais genéricas, deixando-a à discricionariedade do juiz. No entanto, sustentamos que a variação dessas circunstâncias não deve ir muito além do limite mínimo das majorantes e minorantes, que é fixado em um sexto. (BITENCOURT, p. 219)
Na ausência de determinação legal, acreditamos que, no máximo, as atenuantes e agravantes poderão fazer com que a pena-base seja diminuída ou aumentada em até um sexto.” (GRECO, p. 172)
A discricionariedade judicial precisa atender às balizas do estado democrático de direito, sob pena de converter-se em arbitrariedade. A jurisprudência também é pacífica no sentido de que até um sexto da pena fixada na primeira fase da dosimetria atende ao princípio da razoabilidade, diretamente ligado a uma atuação discricionária coerente:
EMENTA: PENAL E PROCESSUAL PENAL. AGRAVO REGIMENTAL NO HABEAS CORPUS. CRIME DE AMEAÇA. REINCIDÊNCIA. AUMENTO ACIMA DE 1/6. AUSÊNCIA DE FUNDAMENTO. IMPOSSIBILIDADE. ILEGALIDADE FLAGRANTE. PRECEDENTES DO STJ. AGRAVO IMPROVIDO.
[…]
2. Apesar de a lei penal não fixar parâmetro específico para o aumento na segunda fase da dosimetria da pena, o magistrado deve se pautar pelo princípio da razoabilidade [destacou-se], não se podendo dar às circunstâncias agravantes maior expressão quantitativa que às próprias causas de aumentos, que variam de 1/6 (um sexto) a 2/3 (dois terços). Portanto, via de regra, deve-se respeitar o limite de 1/6 (um sexto) [destacou-se] (HC 282.593/RR, Rel. Ministro MARCO AURÉLIO BELLIZZE, QUINTA TURMA, julgado em 07/08/2014, DJe 15/08/2014).
3. Hipótese em que pena foi elevada em 100%, na segunda fase, em face de circunstância agravante, sem fundamentação, o que não se admite, devendo, pois, ser reduzida a 1/6, nos termos da jurisprudência desta Corte.
4. Agravo regimental improvido.
(AgRg no HC 373.429/RJ, Rel. Ministro NEFI CORDEIRO, SEXTA TURMA, julgado em 01/12/2016, DJe 13/12/2016)
Devido o Código Penal não ter estabelecido balizas para o agravamento e atenuação das penas, na segunda fase de sua aplicação, a doutrina tem entendido que esse aumento ou diminuição deve se dar em até 1/6 (um sexto) [destacou-se], atendendo a critérios de proporcionalidade (STJ, HC 158848/DF, Rel. Min. Og Fernandes, SEXTA TURMA, DJe 10/05/2010).
A Lei das Contravenções Penais, outro diploma normativo basilar do ordenamento jurídico-criminal patrício, traz em seu bojo a sua própria definição de reincidência:
Art. 7º Verifica-se a reincidência quando o agente pratica uma contravenção depois de passar em julgado a sentença que o tenha condenado, no Brasil ou no estrangeiro, por qualquer crime, ou, no Brasil, por motivo de contravenção.
A prática de contravenção penal é geradora de reincidência diante, tão somente, das seguintes situações: 1) já ter o agente praticado crime anterior cuja sentença condenatória transitou em julgado; 2) já haver o agente cometido contravenção penal anterior com sentença condenatória transitada em julgado. Daí concluímos que a contravenção penal praticada anteriormente por um determinado infrator não pode, em nenhuma hipótese, ser tomada como circunstância agravante quando da valoração da pena na prática de um crime, por ausência de previsão legal nesse sentido. Trata-se de lacuna legislativa que não pode ser preenchida pelo magistrado em desfavor do apenado - caso contrário, haveria violação ao princípio da reserva legal, gravado no inciso XXXIX do art. 5º da Carta Magna: “não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal”. Ainda sobre o tema, sintetiza a doutrina:
[...] admite-se, para efeito de reincidência, o seguinte quadro: a) crime (antes) – crime (depois); b) crime (antes) – contravenção penal (depois); c) contravenção (antes) – contravenção (depois). Não se admite: contravenção (antes) – crime (depois), por falta de previsão legal. [destacou-se] (NUCCI, 2015, p. 453)
[...] se a infração anterior for uma contravenção penal, teremos a seguinte situação: (a) Condenado definitivamente pela prática de contravenção penal, que venha a praticar crime, não é reincidente (CP, art. 63). [destacou-se] (b) Condenado definitivamente pela prática de contravenção, que venha a realizar nova contravenção, é reincidente, nos termos do art. 7º da LCP. Se, no entanto, for condenado definitivamente por crime e vem a praticar contravenção penal, é considerado reincidente, nos termos do art. 7º da LCP. (CAPEZ; PRADO, 2014, p. 155)
Podemos listar uma série de ruinosos efeitos contidos na parte geral do Código Penal para aquele que volta a incidir na prática delitiva após ter sido sancionado em última instância: 1) réu reincidente condenado à pena de reclusão deverá iniciar o cumprimento da pena em regime fechado, em interpretação drástica do art. 33, §2º, alíneas “a” e “b”, do Código Penal; 2) vedação à substituição da pena privativa de liberdade por pena restritiva de direitos, na hipótese de crimes dolosos, conforme art. 44, inciso III, do Código; 3) a reincidência é circunstância preponderante no caso de concurso com uma atenuante, de acordo com o art. 67; praticados dois crimes dolosos, a reincidência impede a concessão do sursis – suspensão condicional da pena prevista no art. 77 (inciso I); 4) para os reincidentes em crimes dolosos, o prazo de cumprimento da pena para a concessão do livramento condicional aumenta de 1/3 para metade da pena, previsão do art. 83, inciso II do CP; 5) em se tratando de crime hediondo, ou delito a ele equiparado, é vedado o livramento condicional pelo art. 83, inciso V; 6) revoga a reabilitação – art. 95 do código; 7) aumenta o prazo da prescrição da pretensão executória, se for anterior à sentença condenatória transitada em julgado – art. 110, caput. 8) é causa interruptiva do prazo da prescrição da pretensão executória, quando posterior à sentença condenatória transitada em julgado, consoante art. 117, inciso VI do CP.
A parte especial do código traz ainda mais prejuízos aos interesses do réu reincidente, como a vedação do perdão judicial ou apenas aplicação da pena de multa nos crimes previstos nos artigos 168-A e 337-A, além do óbice para a forma privilegiada nos crimes de furto, estelionato, fraude no comércio, receptação culposa, receptação dolosa, apropriação indébita, apropriação indébita previdenciária, apropriação de coisa havida por erro, caso fortuito ou força da natureza, apropriação de tesouro e apropriação de coisa achada.
Os efeitos da condenação anterior, contudo, não são perpétuos em nosso ordenamento jurídico-penal. Se entre a data de cumprimento ou extinção da pena e o novo crime tiver decorrido período de tempo superior a cinco anos – incluído o prazo de suspensão ou livramento condicional não revogados – a condenação pretérita não poderá ser considerada para efeito de reincidência, conforme redação do art. 64, inciso I do Código Penal – o inciso II assevera que são desconsiderados, para efeito de reincidência, os crimes militares próprios (definidos no Código Penal Militar) e os crimes políticos:
Art. 64 - Para efeito de reincidência:
I - não prevalece a condenação anterior, se entre a data do cumprimento ou extinção da pena e a infração posterior tiver decorrido período de tempo superior a 5 (cinco) anos, computado o período de prova da suspensão ou do livramento condicional, se não ocorrer revogação;
II - não se consideram os crimes militares próprios e políticos.
A reincidência é demonstrada nos autos do processo criminal por certidão de trânsito em julgado da condenação anterior:
Comprova-se a reincidência mediante certidão expedida pelo cartório criminal, que terá por finalidade verificar a data do trânsito em julgado da sentença penal condenatória anterior. (GRECO, p. 179)
Com esta breve análise do instituto da recidiva, sob a ótica do direito penal positivo brasileiro, conseguimos verificar que é bastante danosa na esfera do direito subjetivo do apenado a aplicação da referida agravante, razão pela qual a doutrina e a jurisprudência continuam a acirrar debates sobre a sua constitucionalidade.
3. O STF E A REINCIDÊNCIA
Neste capítulo iremos expor o posicionamento da Suprema Corte do nosso país acerca do instituto da reincidência criminal e sobre a situação precária a que são submetidos os cidadãos infratores que, após serem condenados, passam pelo circuito do sistema prisional na fase executória da pena.
Serão expostos os votos dos ministros do Supremo no julgamento em plenário do RE 453.000 e, em seguida, será apresentado o reconhecimento do Estado de Coisas Inconstitucional (ECI) do sistema prisional na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 347 como declaração estatal da falência da função ressocializadora do sistema de justiça criminal punitivista – devidamente comprovada pelos altos índices de reincidência real.
3.1 RE 453.000
No dia 04/04/2013 o Plenário do STF declarou, por unanimidade, a constitucionalidade da aplicação do instituto da reincidência como agravante da pena em processos criminais, com repercussão geral, o que significa que o mesmo entendimento será aplicado a todos os processos semelhantes em trâmite nos demais tribunais do País. A questão foi julgada no RE 453.000, interposto contra acórdão do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJRS) que entendeu como válida a incidência da agravante da reincidência na fixação da pena de um réu condenado.
EMENTA: AGRAVANTE – REINCIDÊNCIA – CONSTITUCIONALIDADE – Surge harmônico com a Constituição Federal o inciso I do artigo 61 do Código Penal, no que prevê, como agravante, a reincidência.
(RE 453000, Relator: Min. MARCO AURÉLIO, Tribunal Pleno, julgado em 04/04/2013, ACÓRDÃO ELETRÔNICO REPERCUSSÃO GERAL - MÉRITO DJe-194 DIVULG 02-10-2013 PUBLIC 03-10-2013).
A Defensoria Pública da União (DPU) foi a autora do recurso e assentou a tese da inconstitucionalidade na violação aos princípios constitucionais da intangibilidade da coisa julgada e da individualização da pena – art. 5º, incisos XXXVI e XLVI, respectivamente –, do ne bis in idem como base fundamental de toda a legislação criminal, e na ofensa ao garantismo penal acolhido pelo constituinte de 1988:
[...] além de contrariar o princípio constitucional da individualização da pena – estigmatiza, obstaculiza uma série de benefícios legais, afeta a coisa julgada e viola, flagrantemente, o non bis in idem [...] um mesmo fato é tomado em consideração duplamente, na medida em que o delito anterior produz efeitos jurídicos duas vezes.
Durante a sustentação oral em plenário, o Defensor Público Federal Afonso Carlos Roberto do Prado comparou a situação do réu reincidente com a de alguém que vem a cometer mais de uma infração de trânsito e não é punido como reincidente, ou de um devedor contumaz cuja dívida não acarreta, necessariamente, o aumento de outra subsequente:
A agravante da reincidência é uma das maiores máculas ao modelo penal proposto e adotado pela Constituição de 88. É preciso que a interpretação e a produção do direito, como estabeleceu a Carta de 88, seja realizada sob uma ótica de um estado social democrático de direito de cunho promovedor e transformador da sociedade, na visão garantista que está esposada pelo constituinte de 1988, a qual não se coaduna com o instituto da reincidência. [...] Para que se possa ter uma noção muito clara: o motorista multado, comete novamente a mesma infração, tem aumento nesta multa, ou não? O devedor, se não paga a conta, é tido, quando depois de uma nova dívida, um aumento em relação à dívida anterior? Excelências, cumprida a pena, esta é a essência: o indivíduo satisfaz a sanção estatal estabelecida. O agravamento pela reincidência traz a clara situação de penalizar outra vez o mesmo delito, a mesma situação, com a projeção de uma pena já cumprida sobre a outra. Com o agravamento da pena pela reincidência pune-se o autor do delito e não o fato típico por ele perpetrado. Projeta-se no futuro as consequências de um ato perfeitamente já integralizado. Trata-se na realidade de um estigma que vai acompanhar esta pessoa por causa do fato praticado e pelo qual já cumpriu a sua pena. É uma forma objetiva de desintegração social que descumpre a finalidade oficial da pena – que é punir, mas também ressocializar – eis que o reincidente é rotulado por uma situação em que já cumpriu os seus deveres perante o Estado. Quando se pretende punir o homem pelo que ele é não pelo que ele fez quebra-se o princípio fundamental do direito penal das garantias. Afirma-se a completa incapacidade reintegradora da pena, e a incapacidade do Estado, diante da insuficiência de cumprir com o seu papel ressocializador. [...] A seletividade penal e seus institutos intimidatórios, como reincidência e antecedência, tem ampla carga taxativa e trata de tornar os indivíduos elementos de vigiar e punir, notoriamente demonstram um posicionamento penal inconstitucionalmente desigual no processo de criminalização.
A DPU também apresentou em sua argumentação a favor da declaração de inconstitucionalidade uma visão bastante revolucionária sobre a recidiva penal proposta pelo doutrinador Juarez Cirino dos Santos, Professor Doutor Titular de Direito Penal da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná (UFPR) desde 2002, em sua obra Direito Penal Parte Geral o qual expomos e nos alinhamos neste trabalho por tratar-se de um posicionamento bastante vanguardista e ímpar na doutrina acerca do tema em análise. Trata-se de propor que a reincidência real, verificada, como já vimos, naqueles casos em que o indivíduo efetivamente cumpriu a pena que lhe foi imposta em razão do primeiro delito e voltou a praticar novo crime, deveria a elencar não o rol das circunstâncias agravantes, mas sim o das atenuantes.
O reconhecimento oficial da “ação criminógena” do cárcere (EM, n. 26), demonstrada pela pesquisa criminológica universal, exige redefinição do conceito de reincidência criminal, excluindo a hipótese formal irrelevante da reincidência ficta, incapaz de indicar a indefinível presunção de periculosidade, e definindo a situação concreta relevante da reincidência real como produto da ação criminógena da execução da pena (e do processo de criminalização) sobre o condenado, por falha do projeto técnico-corretivo da prisão. A questão é simples: se a prevenção especial positiva de correção do condenado é ineficaz, e se a prevenção especial negativa de neutralização do condenado funciona, realmente, como prisionalização deformadora da personalidade do condenado, então a reincidência real não pode constituir circunstância agravante.
É necessário reconhecer: a) se novo crime é cometido após a passagem do agente pelo sistema formal de controle social, com efetivo cumprimento da pena criminal, o processo de deformação e embrutecimento pessoal do sistema penitenciário deveria induzir o legislador a incluir a reincidência real entre as circunstâncias atenuantes, como produto específico da atuação deficiente e predatória do Estado sobre sujeitos criminalizados; b) se novo crime é cometido após simples formalidade do trânsito em julgado de condenação anterior, a reincidência ficta não indica qualquer presunção de periculosidade capaz de fundamentar circunstância agravante. Em conclusão, nenhuma das hipóteses de reincidência real ou de reincidência ficta indica situação de rebeldia contra a ordem social garantida pelo Direito Penal: a reincidência real deveria ser circunstância atenuante e a reincidência ficta é, de fato, um indiferente penal. (2012, p. 531-532)
O principal argumento utilizado por aqueles que defendem a constitucionalidade do instituto da reincidência é o princípio da individualização da pena. A velha máxima – consubstanciada em outro princípio geral do direito, o da isonomia – de que se deve tratar os iguais de maneira igual e os desiguais de maneira desigual na exata medida em que se diferenciam estaria albergada quando da aplicação do instituto da recidiva, porque impõe uma diferenciação necessária entre réus que já foram condenados e réus primários. Foi nesse sentido o voto do Ministro Marco Aurélio, relator do caso na Suprema Corte:
[...] a reincidência como agravante vem do Código Penal do Império – Lei de 16 de dezembro de 1830, artigo 16, 3º. Descabe dizer que há regência a contrariar a individualização da pena. Ao reverso, leva-se em conta, justamente, o perfil do condenado, o fato de haver claudicado novamente, distinguindo-o daqueles que cometem a primeira infração penal [...]. Afinal, o julgador há de ter em vista parâmetros para estabelecer a pena adequada ao caso concreto, individualizando-a, e, nesse contexto, surge a reincidência, o fato de o acusado haver cometido, em que pese a glosa anterior, novo desvio de conduta na vida em sociedade. [...] Ao contrário do que assevera o recorrente, o instituto constitucional da individualização da pena respalda a consideração da singularidade, da reincidência, evitando a colocação de situações desiguais na mesma vala – a do recalcitrante e a do agente episódico, que assim o é ao menos ao tempo da prática criminosa.
Saliento, então, a inviabilidade de dar-se o mesmo peso, em termos de gravame de ato de constrição a alcançar a liberdade de ir e vir, presentes os interesses da sociedade, a caso concreto em que envolvido réu primário e a outro em que o Estado se defronta com quem fora condenado antes e voltou a trilhar o caminho glosado penalmente, deixando de abraçar a almejada correção de rumos, de alcançar a ressocialização.
O Ministério Público Federal (MPF) manifestou-se pelo desprovimento do recurso ressaltando as funções retributiva e preventiva da pena, previstas no próprio Código Penal. Nos dizeres da então subprocuradora-geral da República Deborah Duprat:
No nosso sistema penal a pena tem dupla função: reprovação e prevenção do crime. Com esse espírito, há vários dispositivos no Código Penal que levam em conta as circunstâncias do fato, mas também as características do autor, sempre inspirado por essa dupla perspectiva de que é preciso reprimir, mas também prevenir. A reincidência foi pensada num espírito de censura mais grave àquele que, tendo respondido por um crime anterior, persiste na atividade criminosa. Há a presunção de que aquele momento anterior deveria ter servido de lição de ressocialização e que aquele que retorna ao crime ignorou de alguma maneira tudo aquilo a que se propunha o sistema penal.
Todos os demais ministros presentes – Presidência do Senhor Ministro Joaquim Barbosa. Presentes à sessão os Senhores Ministros Marco Aurélio (relator), Gilmar Mendes, Ricardo Lewandowski, Cármen Lúcia, Dias Toffoli, Luiz Fux e Rosa Weber. Ausentes justificadamente os Senhores Ministros Celso de Mello e Teori Zavascki. Plenário do STF em 04/04/2013. – acompanharam o voto do ministro relator, de maneira que a reincidência foi julgada constitucional pelo STF em consonância com o princípio da individualização da pena e seus corolários lógicos. A Ministra Rosa Weber rechaçou a tese de configuração de direito penal do autor quando da aplicação do instituto em análise:
Não se trata de Direito Penal do Autor. O reconhecimento da reincidência não representa a criminalização ou estigmatização do agente pelo que ele é. Aqui não se trata, como o repudiado Direito Penal do Autor, próprio de regimes totalitários ou autoritários, de punir alguém por ser judeu, negro, homossexual, comunista, cristão ou muçulmano, para ficar em alguns exemplos tristes da história mundial. Na reincidência, o que é valorado negativamente, para fins de exasperação da pena é uma conduta criminal pretérita, ou seja, o que o agente fez, e não uma condição pessoal dele.
O Ministro Gilmar Mendes ponderou que a declaração de constitucionalidade estaria obrigatoriamente vinculada à questão da preocupação da sociedade com a segurança pública e, sobretudo, da ineficiência do sistema carcerário para fins de ressocialização do apenado:
No nosso caso, que me parece que a discussão é importante, e suscita, diante dos índices que se indicam de reincidência, é a falência do próprio modelo penal prisional. Essa é a questão que eu acho que o debate suscita, destaca e chama atenção. Acho que é importante que se discuta e que se considere que, em princípio, as nossas instituições prisionais, elas não dispõem de condições minimamente adequadas de ressocialização. E, por isso, nós temos, em alguns Estados, segundo índices que talvez não sejam precisos, um grau de reincidência que chega até 80%, segundo dados que correm por aí. Certamente, há uma imprecisão em relação a isso, mas, de qualquer sorte, esse é um dado extremamente preocupante.
De modo que, eu acho que o debate é importante nessa quadra – uma quadra inclusive que o Ministro Marco Aurélio destacou – de preocupação imensa da comunidade com o quadro de insegurança pública. O debate é extremamente importante para chamar a atenção no que concerne à falência do modelo repressivo e da necessidade, talvez, de se repensar. Há medidas positivas nesse sentido, a questão da formação, escolarização, formação profissional, mas é necessário que isso seja, de fato, universalizado e que haja, também, programas – tanto quanto possível – amplos de reinserção social para afetar a reincidência.
O Tribunal, por unanimidade e nos termos do voto do Relator, negou provimento ao recurso extraordinário. Determinou, ainda, aplicar o regime da repercussão geral reconhecida no RE 591.563 – recurso que já havia tratado da mesma questão.
3.2 ADPF 347
A prisão é um “sistema de ressocialização” violento e ineficaz. Os índices de reincidência real atrelados à pena privativa de liberdade, ou seja, aquela situação em que o sujeito efetivamente cumpre a pena passando pelo sistema prisional e volta a delinquir, atestam a ineficácia do cárcere como medida apta a reinserir o indivíduo na convivência em comunidade. Tal assertiva pode ser embasada no reconhecimento pelo própria Suprema Corte da caracterização do ECI do sistema carcerário brasileiro, quando do julgamento de Medida Cautelar na ADPF 347, ante à superlotação e condições degradantes de custódia, admitindo a ocorrência de violação massiva de direitos fundamentais dos detentos, resultante de ações e omissões do Poder Público. Segue a ementa do julgado:
EMENTA: CUSTODIADO – INTEGRIDADE FÍSICA E MORAL – SISTEMA PENITENCIÁRIO – ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL – ADEQUAÇÃO. Cabível é a arguição de descumprimento de preceito fundamental considerada a situação degradante das penitenciárias no Brasil. SISTEMA PENITENCIÁRIO NACIONAL – SUPERLOTAÇÃO CARCERÁRIA – CONDIÇÕES DESUMANAS DE CUSTÓDIA – VIOLAÇÃO MASSIVA DE DIREITOS FUNDAMENTAIS – FALHAS ESTRUTURAIS – ESTADO DE COISAS INCONSTITUCIONAL – CONFIGURAÇÃO. Presente quadro de violação massiva e persistente de direitos fundamentais, decorrente de falhas estruturais e falência de políticas públicas e cuja modificação depende de medidas abrangentes de natureza normativa, administrativa e orçamentária, deve o sistema penitenciário nacional ser caraterizado como “estado de coisas inconstitucional”. FUNDO PENITENCIÁRIO NACIONAL – VERBAS – CONTINGENCIAMENTO. Ante a situação precária das penitenciárias, o interesse público direciona à liberação das verbas do Fundo Penitenciário Nacional. AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA – OBSERVÂNCIA OBRIGATÓRIA. Estão obrigados juízes e tribunais, observados os artigos 9.3 do Pacto dos Direitos Civis e Políticos e 7.5 da Convenção Interamericana de Direitos Humanos, a realizarem, em até noventa dias, audiências de custódia, viabilizando o comparecimento do preso perante a autoridade judiciária no prazo máximo de 24 horas, contado do momento da prisão.
No julgamento da cautelar – o mérito da ADPF 347 ainda não foi decidido pelo Supremo – o STF também relacionou as altas taxas de reincidência delitiva no nosso país às mazelas que comprometem o sistema penitenciário:
Os cárceres brasileiros não servem à ressocialização dos presos. É incontestável que implicam o aumento da criminalidade, transformando pequenos delinquentes em “monstros do crime”. A prova da ineficiência do sistema como política de segurança pública está nas altas taxas de reincidência. E o que é pior: o reincidente passa a cometer crimes ainda mais graves. Segundo dados do Conselho Nacional de Justiça – CNJ, essa taxa fica em torno de 70% e alcança, na maioria, presos provisórios que passaram, ante o contato com outros mais perigosos, a integrar alguma das facções criminosas.
A situação é, em síntese, assustadora: dentro dos presídios, violações sistemáticas de direitos humanos; fora deles, aumento da criminalidade e da insegurança social. [...] Tais dados revelam uma realidade assombrosa de um Estado que pretende efetivar direitos fundamentais. Os estabelecimentos prisionais funcionam como instituições segregacionistas de grupos em situação de vulnerabilidade social. Encontram-se separados da sociedade os negros, as pessoas com deficiência, os analfabetos. E não há mostras de que essa segregação objetive - um dia - reintegrá-los à sociedade, mas sim, mantê-los indefinidamente apartados, a partir da contribuição que a precariedade dos estabelecimentos oferece à reincidência.
A exordial da ADPF 347 foi proposta pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) no dia 27/05/2015 objetivando fosse reconhecido o ECI e, em razão disso, a adoção de uma série de providências com o intuito de sanar as massivas violações contra preceitos fundamentais da Constituição, em decorrência da ação e inação dos poderes públicos da União, dos Estados e do Distrito Federal cometidas no sistema prisional brasileiro e respaldar e garantir os direitos fundamentais dos presos. Para isso, a petição foi instruída com parecer emitido pelo Professor Doutor Juarez Tavares, Titular de Direito Penal da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), o qual também citou diretamente a reincidência como um instituto estatisticamente ligado à fase executória da pena:
61. O primeiro está relacionado à taxa de reincidência em processos concernentes a adolescentes submetidos a medidas socioeducativas de internação. Dados apresentados em 2012 pelo Conselho Nacional de Justiça indicaram um elevado valor de 56% nos processos analisados.
62. O segundo, relativo à dosimetria das penas, indica ‘que a reincidência é a circunstância agravante mais frequente, incidente em 97,37% dos casos’.
63. Por fim, o terceiro conjunto de dados, concernente especificamente ao município do Rio de Janeiro, apresenta uma elevada taxa de internos anteriormente condenados, qual seja, 39,13% entre os detentos do regime semiaberto e 48,67% entre os sentenciados em cumprimento de pena no regime fechado.
64. Fazendo, pois, uma análise congruente dos dados apresentados, pode-se conjecturar que o sistema carcerário, além de não apresentar as condições mínimas para a concretização do projeto de reinserção previsto nas normas nacionais e internacional, é ineficaz quanto a tal objetivo manifesto e, frise-se, apresenta uma atuação deformadora e estigmatizante sobre o condenado.”
Do julgamento da cautelar, provida parcialmente, realizado no dia 09/09/2015, foram deferidos, além do reconhecimento do ECI supracitado: 1) a liberação, sem qualquer tipo de limitação, do saldo acumulado do Fundo Penitenciário Nacional (FUNPEN), a fim de que as verbas fossem utilizadas para os fins para os quais foram criadas, proibindo-se a realização de novos contingenciamentos; 2) a obrigação dos juízes e Tribunais de realizarem audiências de custódia, viabilizando o comparecimento do preso perante a autoridade judiciária no prazo máximo de 24 horas, contadas do momento da prisão; 3) a determinação de encaminhamento à Suprema Corte de informações sobre a situação prisional por parte dos Estados-Membros em sua competência, e especificamente ao Estado de São Paulo, diante da omissão de informações sobre a sua massa carcerária, notoriamente a maior do país, com estimativas de tratar-se de mais de 1/3 (um terço) da população presidiária do país.
4. ANÁLISE ARGUMENTATIVA DO RE 453.000
A partir das orientações jurisprudenciais do STF apresentadas no capítulo anterior, iremos discorrer, neste capítulo, sobre os principais tópicos desfavoráveis à aplicação do instituto da reincidência. Será feita uma análise dialética dos princípios constitucionais que impõem a extirpação da recidiva do ordenamento jurídico penal vigente, a fim de explicitar os motivos pelos quais a declaração de constitucionalidade não se sustenta frente a uma análise rigorosa das consequências reais da aplicação da recidiva, evidenciando manifesta incompatibilidade com o Estado Democrático de Direito.
4.1 NE BIS IN IDEM
Um dos postulados do ordenamento jurídico criminal é o non bis in idem – expressão do Latim que pode ser traduzida como “sem repetição sobre o mesmo”. Na seara criminal, entende-se que ninguém pode ser punido duas vezes pelo mesmo fato. Se um infrator hipotético é condenado pelo poder judiciário por haver incorrido na prática de determinada conduta delitiva, após transitada em julgado a sua sentença restará esgotado o ius puniendi para aquele crime. O brocardo latino foi positivado no artigo 8°, inciso IV da Convenção Americana sobre Direitos Humanos: “O acusado absolvido por sentença passada em julgado não poderá ser submetido a novo processo pelos mesmos fatos”. Além disso, foi positivado em outros diplomas normativos ao redor do mundo:
Ninguém poderá ser processado ou punido por um delito pelo qual já foi absolvido ou condenado por sentença passada em julgado, em conformidade com a lei e os procedimentos penais de cada país. (Art. 14.7 do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos)
Ninguém pode ser punido mais de uma vez pelo mesmo fato, com base no direito penal comum. (Art. 103, III da Constituição Alemã)
Tema que suscita amplo debate doutrinário é se a agravante da reincidência fere ou não a vedação de dupla valoração do mesmo fato. No sistema jurídico de tradição romano-germânico (ou civil law) tal proibição nos remete-se ao brocardo do non bis in idem, enquanto na cultura anglo-saxônica (ou common law) prevalece a regra do double jeopardy, consagrada na Quinta Emenda à Constituição dos Estados Unidos: “Ninguém poderá ser por duas vezes ameaçado em sua vida ou saúde pelo mesmo crime”.
Discorrendo sobre o assunto, o doutrinador Suannes ensina que o sistema anglo-saxão alude à impossibilidade do double jeopardy, isto é, um mesmo fato típico somente pode dar origem a um único processo criminal contra o mesmo réu, garantia que provém das primeiras contemplações da due process clause (assemelha-se ao devido processo legal) da Quinta Emenda à Constituição Norte-Americana (2004, p. 245). O doutrinador manifesta-se desfavorável à reincidência enquanto circunstância agravante:
[...] impassível de levar ao agravamento da nova pena por força do ne bis in idem e da imutabilidade, como garantia dos réus, das decisões penais condenatórias. (2004, p. 240)
Por outro lado, conforme colocado pelo ministro relator do RE 453.000 em seu voto, há juristas de renome que advogam que o instituto da reincidência adequa-se à Constituição Federal. Foram citados Reale Júnior, Guilherme de Souza Nucci, Ivanir Nogueira Itajiba e Celso Delmanto. O Ministro Marco Aurélio, argumentou que a jurisprudência brasileira filia-se ao entendimento destes últimos, apresentando os seguintes julgados:
EMENTA: HABEAS CORPUS. PENAL. REINCIDÊNCIA. BIS IN IDEM. INOCORRÊNCIA. A pena agravada pela reincidência não configura bis in idem. O recrudescimento da pena imposta ao paciente resulta de sua opção por continuar a delinquir. Ordem denegada. (Segunda Turma, Habeas Corpus nº 91.688/RS, relator Ministro Eros Grau, Diário da Justiça eletrônico de 26 de outubro de 2007.)
EMENTA: "Habeas corpus". – A pena agravada em função da reincidência não representa "bis in idem". – A presunção de inocência não impede que a existência de inquéritos policiais e de processos penais possam ser levados à conta de maus antecedentes. "Habeas corpus" indeferido. (Primeira Turma, Habeas Corpus nº 73.394/SP, relator Ministro Moreira Alves, Diário da Justiça de 21 de março de 1997.)
EMENTA: PENAL. PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS. TRÁFICO DE ENTORPECENTES. REINCIDÊNCIA. AGRAVAMENTO DA PENA PELO TRIBUNAL A QUO. I. - Reconhecida a reincidência, à vista da certidão de antecedentes criminais constante dos autos, o Tribunal a quo, dando provimento ao recurso de apelação do Ministério Público, agravou corretamente a pena aplicada pelo juízo de primeiro grau. II. - H.C. indeferido. (Segunda Turma, Habeas Corpus nº 74.746/SP, relator Ministro Carlos Velloso, Diário da Justiça de 11 de abril de 1997.)
De fato, há juristas que se manifestam pela plena constitucionalidade do instituto:
[...] O fato do reincidente ser punido mais gravemente do que o primário é, a nosso ver, justificável, não havendo violação à Constituição da República e à garantia do ne bis in idem, isto é, de que ninguém pode ser punido duas vezes pelo mesmo fato.” (DELMANTO, Celso et al. Código Penal Comentado. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 295)
Dentre os doutrinadores que não vislumbram ofensa ao princípio basilar do ne bis in idem, destacamos a teoria do jurista alemão Armin Kaufmann que sustenta que em toda norma criminal estaria implícita a proibição de perpetrar o fato típico e, além desta, também a proibição de praticar um novo delito no futuro. Assim, o agravamento em face da reincidência não poderia figurar bis in idem, na medida em que a aplicação da agravante não decorreria de dupla valoração do mesmo fato, mas sim da lesão por parte do agente infrator de dois bens jurídicos que não se confundem: o bem jurídico tutelado pela norma criminal em si e o bem jurídico genérico da proibição de se desrespeitar o “império da ordem jurídica”.
Contudo, esta teoria também é afastada pelos críticos da reincidência, que alegam inexistência de um segundo bem jurídico afetado quando da violação da norma:
A tipicidade com duplo bem jurídico, um concreto e outro abstrato, desconhecido, seria de difícil compreensão, mas esta não seria a principal objeção. Esta estaria ligada à pergunta sobre qual seria esse outro bem jurídico, e a conclusão que se chegaria é de que não pode ser outro que não o geral sentimento de segurança jurídica, mas, o geral sentimento de segurança jurídica provém da efetiva segurança jurídica de todos os bens jurídicos, que não é nenhum bem jurídico independente e nem concreto, mas a somatória de todos os bens jurídicos.
Rejeitada, portanto, esta única tentativa teórica de fundamentar a agravação da pena pela reincidência, sem violar o non bis in idem e a consequente intangibilidade da coisa julgada, estabelece-se o corolário lógico de que a agravação pela reincidência não é compatível com os princípios de um direito penal de garantias, e a sua constitucional idade é sumamente discutível. Estas considerações são as que levaram o legislador colombiano, por exemplo, a eliminar a reincidência, e, muito embora no nosso País não se a tenha excluído, parece terem pesado considerações deste tipo para a limitação do seu alcance, numa comparação com o Código de 1940. Algo similar passou-se na Argentina, com a reforma de 1984, que restringiu consideravelmente os seus efeitos.
Quanto a esta colocação alusiva ao direito comparado (em destaque), vale ressaltar que em 2016 a Corte Constitucional colombiana declarou a constitucionalidade da readmissão da reincidência no seu Código Penal – acórdão C-118 da Corte Constitucional da Colômbia. A alteração se deu através da aprovação de uma lei que impunha o agravamento da pena de multa em dobro no caso de o sujeito já haver sido condenado por delito doloso ou preterdoloso dentro dos dez anos anteriores à prática do novo delito. Os magistrados da corte colombiana alegaram que não havia violação ao princípio do non bis in idem e nem ao principio de la prohibición de la doble punición, previsto no art. 29 da Constituição colombiana:
EMENTA: ESTABELECIMENTO DA REINCIDÊNCIA COMO CIRCUNSTÂNCIA AGRAVANTE PUNITIVA DA PENA DE MULTA – Não infringe a proibição de ser julgado duas vezes pelo mesmo feito, por ser um elemento de dosimetria da pena e não de culpabilidade. – CÓDIGO PENAL, CÓDIGO DE PROCESSO PENAL E CÓDIGO DE INFÂNCIA E ADOLESCÊNCIA – Pena de multa em processo penal.
CÓDIGO PENAL, CODIGO DE PROCESSO PENAL E CÓDIGO DE INFÂNCIA E ADOLESCÊNCIA – Duplicação da pena de unidade de multa quando a pessoa tenha sido condenada por delito doloso ou preterdoloso.
DUPLICAÇÃO DA PENA DE UNIDADE DE MULTA POR REINCIDENCIA EM DELITO DOLOSO OU PRETERINTENCIONAL – Exequibilidade ao não desconhecer o princípio do non bis in idem. – PENA – Fim preventivo e ressocializador.
O dispositivo jurídico não infringe o princípio do non bis in idem e constitui uma medida de agravação punitiva que não se torna irrazoável, já que faz parte do trabalho do juiz ao aplicar a norma que contém o gravame punitivo, examinar o novo delito, sem realizar valorações sobre a sentença precedente que dá conta da reincidência do sujeito ativo atual. É claro que o juiz penal não realiza um novo juízo sobre os feitos precedentes, ou sobre a suficiência da pena imposta anteriormente, pois, neste caso, a certeza legal está protegido pelo princípio da coisa julgada. Esta situação tem justificação constitucional, pois consulta o fim preventivo e ressocializador da pena, entendido este último como o estabelecimento de obrigações de via dupla. O meio utilizado não desconhece o princípio do non bis in idem, como restou demonstrado, pois a norma demandada é um gravame punitivo que não incide na culpabilidade, nem exige verificações de atos julgados para a sua aplicação, de tal sorte que existe correspondência constitucional entre o meio e o fim. DUPLICAÇÃO DA PENA DE UNIDADE DE MULTA POR REINCIDENCIA EM DELITO DOLOSO OU PRETERINTENCIONAL – Não ocorrem identidade de objeto e nem identidade de causa.
Não ocorre identidade de objeto e nem identidade de causa. Na verdade, a norma demandada não prevê um duplo julgamento sobre os mesmos fatos, nem a promoção de investigação penal a partir de motivos idênticos. O pressuposto de aplicação do dispositivo normativo é o cometimento de um fato novo distinto daqueles que já foram objeto de sanção penal. Na realidade, a aplicação da agravante punitiva se aplica a um novo delito que é atual e diferente, motivo pelo qual não existe identidade de objeto e nem de causa nos dois julgamentos. (Acórdão C-181 de 2016 da Corte Constitucional da Colômbia, tradução nossa)
Art. 29 O devido processo será aplicado em todas as instâncias administrativas e judiciais. [...] Quem for processado terá direito [...] de impugnar a sentença condenatória e a não ser julgado duas vezes pelo mesmo fato. (Art. 29 da Constituição da República da Colômbia)
Importante frisar que o STF, quando do julgamento do RE 453000, apesar de ter solidificado a posição de constitucionalidade da reincidência propriamente dita (art. 63, CP), também reafirmou a posição, que já vinha sido adotada no Brasil, de inconstitucionalidade na aplicação do instituto da reincidência quando uma mesma condenação é valorada em duas fases distintas da dosimetria da pena, consoante o Enunciado da Súmula 241 do Superior Tribunal de Justiça (STJ): “A reincidência penal não pode ser considerada como circunstância agravante e, simultaneamente, como circunstância judicial.”
O Ministro Ricardo Lewandowski destacou essa situação em plenário:
Eu penso que, se editarmos um verbete, precisa ficar claro, data venia, porque muitos de nós dissemos que não há bis in idem quando se aplica a agravante da reincidência. Mas há uma hipótese em que se dá, sim, a reincidência quando se considera a vita anteacta, no art. 59, e depois se toma a reincidência novamente como agravante. Aí me parece que há um bis in idem vedado.
Contudo, também é sabido que a jurisprudência majoritária é no sentido de que, caso haja mais de uma condenação transitada em julgado, existe a possibilidade de utilizar uma condenação para fins de fixação da pena-base e outra para a reincidência do réu.
Nada impede que havendo mais de uma condenação transitada em julgado, uma seja considerada para agravar a pena, como reincidência, e a outra, valorada como mau antecedente, é o que se verifica no caso em apreço. Segundo consta no édito condenatório, o paciente registra, em sua Folha de Antecedentes Criminais, além da sentença com trânsito em julgado, a qual foi considerada para fins de reincidência, outra condenação definitiva a macular os seus antecedentes. Desta forma, não há que se falar em bis in idem, uma vez que os fatos utilizados para a exacerbação de pena-base não são os mesmos caracterizadores da reincidência. (STJ, HC 91841/MG, Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, DJe 09/03/2009).
Só há violação ao princípio do ne bis in idem e à Súmula nº 241 do STJ quando a circunstância judicial (maus antecedentes) e a legal (reincidência) derivam do mesmo fato. (STJ, HC 108503/SP, Rel. Min. Jorge Mussi, QUINTA TURMA, DJe 23/03/2009)
Restando comprovada a reincidência, a sanção corporal deverá ser sempre agravada, nos termos do expressamente previsto no art. 61, I, do CP, que se encontra plenamente em vigor, importando sua exclusão em flagrante ofensa à lei federal e aos princípios da isonomia e da individualização da pena, constitucionalmente garantidos. O fato de o reincidente ser punido mais gravemente do que o primário não viola a Constituição Federal nem a garantia do ne bis in idem, isto é, de que ninguém pode ser punido duplamente pelos mesmos fatos, pois visa tão somente reconhecer maior reprovabilidade na conduta daquele que é contumaz violador da lei penal. (STJ, Ag.Rg. no REsp. 942981/RS, Rel. Min. Jorge Mussi, QUINTA TURMA, DJe 13/05/2011)
A aplicação da agravante da reincidência não significa bis in idem, mas, sim, maior reprovação àqueles que, mesmo após terem respondido por crime anterior, ousam novamente infringir nosso ordenamento. (TJMG, Processo 1.0024.03.146265-8/001[1], Rel. Des. Maria Celeste Porto, DJ 12/12/2006).
Nos parece razoável conceber que a agravante da reincidência fere o princípio do non bis in idem, na medida em que o agente delinquente volta a responder perante o poder punitivo do Estado por uma conduta que já foi sancionada em uma condenação anterior.
4.2 PRINCÍPIO DA COISA JULGADA
O princípio constitucional da coisa julgada encontra-se previsto expressamente no art. 5º, inciso XXXVI da Constituição: “a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”. Trata-se de um princípio consagrado tanto na jurisprudência quanto na doutrina.
A coisa julgada, sabe-se, não é um efeito, mas uma qualidade da decisão judicial da qual não caiba mais recurso. É a imutabilidade da sentença, de modo a impedir a reabertura de novas indagações acerca da matéria nela contida. [...] Normalmente, a autoridade da coisa julgada, ou a sua imutabilidade, é justificada em razão da necessidade de segurança jurídica decorrente da solução dos conflitos sociais resolvidos pela jurisdição estatal [...]. (OLIVEIRA, 2008, p. 501)
Para vários doutrinadores a agravante da reincidência, quando da sua aplicação, necessariamente viola a coisa julgada material porque elastifica os efeitos do primeiro decreto condenatório, fazendo com que surta efeitos sobre a sanção subsequente. Neste sentido, Maia Neto:
O instituto da reincidência é polêmico e incompatível com os princípios reitores do direito penal democrático e humanitário, uma vez que a reincidência na forma de agravante criminal configura um 'plus' para a condenação anterior já transitada em julgado. Quando o juiz agrava a pena na sentença posterior, está, em verdade, aumentando o quantum da pena do delito anterior, e não elevando a pena do segundo crime. (1998, p. 147)
Observamos que carecem contra-argumentos convincentes a esta violação. Tanto assim o é que no julgamento do RE 453.000 apenas a Ministra Rosa Weber procurou defender o posicionamento de não violação ao princípio da intangibilidade da coisa julgada:
Melhor sorte não merece a alegação de violação da proteção constitucional da coisa julgada (art. 5º, XXXVI, da Constituição Federal). A norma constitucional em questão veda a edição de leis retroativas que afetem a coisa julgada, o direito adquirido e o ato jurídico perfeito. O art. 61, I, e o art. 63 do Código Penal remontam a 1984, quando foi editada a Lei nº 7.209, de 11.7.1984, que reformulou a parte geral do Código Penal. O caso concreto refere-se à condenação criminal por fato havido em 2001, muito posterior a 1984. Não está em questão, portanto, qualquer lei retroativa que tenha alterado ou pretendido imprimir efeitos à coisa julgada.
Aparentemente a hipótese suscitada pela eminente ministra estaria limitada tão somente ao caso concreto em análise quando do julgamento do recurso em questão, pois a sua alegação foi a de que o crime praticado pelo sujeito reincidente, naquele caso específico, foi muito posterior à inclusão da previsão legal da reincidência no ordenamento jurídico-criminal pátrio.
É preciso ressaltar que, passados mais de cinco anos daquele julgamento, a análise da inconstitucionalidade do instituto da reincidência por violação ao princípio da coisa julgada deve levar em consideração, nos dias de hoje, também a questão da extensão dos efeitos nefastos ao réu agravado pela recidiva na fase de execução, tendo em vista que o STJ tem se posicionado no sentido da possibilidade do juiz da execução considerar a reincidência para fins de avaliação das condições de progressão de regime, ainda que tal agravante não tivesse sido aplicada quando da prolação sentença condenatória:
EMENTA: AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL. EXECUÇÃO PENAL. RECONHECIMENTO DA REINCIDÊNCIA PELO JUÍZO DA EXECUÇÃO CRIMINAL PARA FINS DE PROGRESSÃO DE REGIME. POSSIBILIDADE. AUSÊNCIA DE VIOLAÇÃO À COISA JULGADA. I - A reincidência do acusado constitui circunstância pessoal que acompanha o condenado durante toda a execução criminal, podendo ser reconhecida pelo Juízo da execução que supervisiona o cumprimento da pena, ainda que não reconhecida pelo Juízo que prolatou a sentença condenatória. Precedentes. II - Portanto, é firme a jurisprudência desta Corte Superior de Justiça no sentido de que "Não cabe ao Juiz da Execução rever a pena e o regime aplicados no título judicial a cumprir. Contudo, é de sua competência realizar o somatório das condenações (unificação das penas), analisar a natureza dos crimes (hediondo ou a ele equiparados) e a circustância pessoal do reeducando (primariedade ou reincidência) para fins de fruição de benefícios da LEP" (AgRg no AREsp n. 1.237.581/MS, Sexta Turma, Rel. Min. Rogério Schietti Cruz, DJe de 1º/8/2018). Agravo regimental desprovido.
(STJ - AgRg no REsp: 1744550 MT 2018/0129040-1, Relator: Ministro FELIX FISCHER, Data de Julgamento: 11/09/2018, T5 - QUINTA TURMA, Data de Publicação: DJe 17/09/2018)
AGRAVO REGIMENTAL NO HABEAS CORPUS. REINCIDÊNCIA NÃO RECONHECIDA NA SENTENÇA CONDENATÓRIA. CIRCUNSTÂNCIA CONSIDERADA PARA FINS DE PROGRESSÃO DE REGIME PELO JUÍZO DA EXECUÇÃO. AUSÊNCIA DE ILEGALIDADE. DECISÃO MANTIDA. AGRAVO REGIMENTAL NÃO PROVIDO. 1. O Juízo da execução penal não está adstrito ao emprego dado pelo Juízo do conhecimento aos registros criminais que ensejariam a reincidência do apenado, de modo que, a despeito do emprego de tais anotações somente na primeira fase da dosimetria da pena, nada impede seu uso para avaliação das condições pessoais do sentenciado no que tange à concessão de benefícios executórios. 2. Agravo regimental não provido." (AgRg no HC 402.824/MS, Sexta Turma, Rel. Min. Rogério Schietti Cruz, DJe 17/8/2017)
Consideramos que a partir deste novo entendimento resta caracterizada de forma ainda mais explícita a violação ao princípio constitucional da coisa julgada pela mera vigência da reincidência no nosso ordenamento jurídico, pois, ainda que não aplicada pelo juiz que condenou o réu, poderá esta agravante dificultar a progressão de regime, na fase executória da pena, daqueles que foram tidos como primários pelo juiz sentenciante.
4.3 PRINCÍPIO DA INDIVIDUALIZAÇÃO DA PENA
O princípio da individualização da pena encontra-se previsto no art. 5º, XLVI da Constituição Federal, que dispõe:
XLVI - a lei regulará a individualização da pena e adotará entre outros, as seguintes: a) a privação ou restrição de liberdade; b) perda de bens; c) multa; d) prestação social alternativa; e) suspensão ou interdição de direitos;
Aqueles que defendem a aplicação do instituto da reincidência fazem uma interpretação do princípio da individualização da pena como corolário do princípio da igualdade, previsto no art. 5º, caput, da Constituição da República: “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade [...]”. A lógica interpretativa é a de que, considerando haver duas categorias de delinquentes, os reincidentes e os primários, não poderia a pena imposta a estes últimos ser a mesma dos primeiros, devendo, necessariamente, réus primários ser punidos de forma mais branda, ao passo que reincidentes merecem ser punidos mais gravemente.
Contudo, esse argumento também poderia ser desconsiderado, sob uma ótica mais realista do sistema de cumprimento de pena em nosso país, tendo em vista que réus primários e reincidentes acabam compartilhando as mesmas celas, devido à superlotação e à quantidade de novas vagas ser menor do que o próprio crescimento do número de detentos, conforme apresentado na petição inicial da ADPF 347 da qual extraímos alguns trechos:
Além da gravíssima e generalizada ofensa aos direitos mais básicos dos presos, as mazelas do sistema carcerário brasileiro comprometem também a segurança da sociedade. Afinal, as condições degradantes em que são cumpridas as penas privativas de liberdade, e a “mistura” entre presos com graus muito diferentes de periculosidade, tornam uma quimera a perspectiva de ressocialização dos detentos, como demonstram as nossas elevadíssimas taxas de reincidência, que, segundo algumas estimativas, chegam a 70%.
Neste contexto, a prisão torna-se uma verdadeira “escola do crime”, e a perversidade do sistema ajuda a ferver o caldeirão em que vêm surgindo e prosperando as mais perigosas facções criminosas. O encarceramento em massa não gera a segurança que promete, mas, ao contrário, agrava os índices de criminalidade e de violência social, em detrimento de toda a população. Como consignou a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, “quando os cárceres não recebem a atenção e os recursos necessários, a sua função se distorce e, em vez de proporcionarem proteção, se convertem em escolas da delinquência e comportamento antissocial, que propiciam a reincidência em vez da reabilitação”.
4.4 GARANTISMO PENAL
O chamado “garantismo” é um modelo teórico proposto pelo jusfilósofo italiano Luigi Ferrajoli em sua obra aclamada no mundo todo “Direito e Razão: Teoria do Garantismo Penal” que tem como objeto o estado constitucional, a concretização dos direitos fundamentais e a efetivação dos regimes democráticos.
O garantismo está ligado a uma ideia de hierarquia normativa em que a Constituição seja a fonte de validade de toda a legislação infraconstitucional. Além disso, o sistema garantista busca enfatizar os direitos do homem em face às arbitrariedades e ao poder punitivo do Estado. No Brasil a teoria goza de ampla aceitação na aplicação do direito penal material e processual penal.
[...] ‘garantismo’ designa um modelo normativo de direito: precisamente, no que diz respeito ao direito penal, o modelo de ‘estrita legalidade’ SG, próprio do Estado de direito, que sob o plano epistemológico se caracteriza como um sistema cognitivo ou de poder mínimo, sob o plano político se caracteriza como uma técnica de tutela idônea a minimizar a violência e a maximizar a liberdade e, sob o plano jurídico, como um sistema de vínculos impostos à função punitiva do Estado em garantia dos direitos dos cidadãos. É, conseqüentemente, ‘garantista’ todo o sistema penal que se conforma normativamente com tal modelo e que o satisfaz efetivamente. (FERRAJOLI, 2010, p. 785-786).
A Constituição da República Federativa do Brasil elenca em seu art. 5º um extenso rol de direitos e garantias fundamentais do cidadão, razão pela qual entende-se que o modelo proposto pelo jurista italiano encontra respaldo em nossa norma fundamental.
Portanto, temos que sob a perspectiva garantista, a magistratura exerce especial relevância ao julgar e interpretar a lei conforme a Constituição. O juiz não pode ser visto como mero aplicador da lei penal, mas sim como guardião dos direitos fundamentais esposados na Carta de Outubro. Ao avaliarmos a agravante da reincidência ontológico, verificamos tratar-se de instituto que agrava a sanção com base na subjetividade do agente, o que é tido como “antigarantista”:
[...] no nosso Código Penal, a reincidência, além de agravar a pena do (novo) delito, constitui-se em fator obstaculizante de uma série de benefícios legais [...]. Esse duplo gravame da reincidência é antigarantista [destacou-se], sendo, à evidência, incompatível com o Estado Democrático de Direito [...]. (STRECK, 2010, p. 66).
Fere, portanto, os postulados do garantismo penal a aplicação do instituto da reincidência. A liberdade de escolha do indivíduo é oprimida sem, na medida em que apenas não pode o Estado querer adentrar a liberdade de consciência a fim de decidir ou não se o sujeito deve querer praticar novo crime, mas somente puni-lo no caso de cometimento de quebra da norma típica penal.
4.5 DIREITO PENAL DO AUTOR E DIREITO PENAL DO FATO
O Estado não possui legitimidade para punir um indivíduo em razão do que ele é (dogma do autor), mas sim em razão do ato (dogma do ato) que porventura tenha ele praticado. O Direito Penal do Autor criminaliza a personalidade do agente, e não a sua conduta. Porém, como preleciona o saudoso Professor Titular de Direito Penal da Universidade Federal do Amazonas (UFAM) Nasser Netto, “a personalidade, a forma de vida, as opções, as escolhas da pessoa não podem ser a causa da punição; a conduta, o comportamento, as atitudes, ação sim”. (2012, p. 64)
No mesmo sentido é que as circunstâncias judiciais previstas no caput do art 59 do Código Penal, as quais deverão ser analisadas pelo órgão julgador (art. 68 do CP) quando da fixação da pena-base, são igualmente questionáveis perante a ordem constitucional vigente em nosso país, posto que os “antecedentes”, a “conduta social” e a “personalidade” são reflexos dos desvios do estrito direito penal do ato.
Eugenio Raúl Zaffaroni, ex-Ministro da Corte Suprema de Justiça da Nação Argentina, e atual Ministro da Corte Interamericana de Direitos Humanos, é um dos críticos mais vorazes à aplicação instituto do instituto da reincidência e defensor da sua extirpação por completo dos códigos de direito criminal da América Latina:
[...] a vantagem de eliminar os antecedentes penais (que se tornaria desnecessário), com o que desapareceria a consagração legal da estigmatização. A recuperação de um direito penal de garantias pleno daria um passo extremamente significativo com a abolição da reincidência e dos conceitos que lhe são próximos, conceitos estes sempre evocativos dos desvios autoritários dos princípios fundamentais do direito penal liberal e, especialmente, do estrito direito penal do ato. (1990, p. 9)
Filiamo-nos à abordagem crítica formulada pelo penalista Zaffaroni por considerar que o famigerado direito penal do autor foi a base teleológica do poder de perseguição do Estado que culminou em alguns dos maiores genocídios da história do punitivismo.
Podemos situar o direito penal do autor como sendo àquele próprio à criminalização normativa imposta por regimes totalitários.
Na Idade Média, antes da consolidação do fundamento da secularização, ou seja, da separação entre o Estado e a religião, havia uma relação estreita entre os dois. Com fundamento num denominado “tipo normativo de autor” a Igreja Católica valeu-se do poder punitivo estatal para criar uma categoria de indivíduos, perseguir e assassinar milhares de mulheres: “as bruxas”. Este período ficou conhecido como a época da “caça às bruxas”, com início no século XV e atingindo seu apogeu nos séculos XVI e XVII, abrangendo principalmente Portugal, Espanha, França, Inglaterra e Alemanha.
Friedrich Spee foi um jesuíta alemão que se tornou célebre ao escrever um livro denominado “Cautio Criminalis” (em latim: “Precaução para os promotores”) em que se opôs aos métodos praticados pelos promotores da época que eram, na verdade, os inquisidores enviados pela Igreja para identificar as bruxas que seriam condenadas às chamadas fogueira sob a acusação de heresia.
Dentro dessa perspectiva, podemos dizer que Spee foi, ao seu modo, um criminólogo crítico, na medida em que buscou estudar a lógica do sistema normativo do poder estatal e, verificar, se ele estava adequado às reais condições humanas.
Apenas 350 anos depois, em meados do século XX, surgiria nos Estados Unidos da América a denominada “criminologia da reação social” (labelling approach), que também viria a transladar o estudo do delinquente e do delito para a crítica do sistema jurídico-penal em geral.
O direito penal de autor também foi utilizado pelo regime autoritário dos nazistas. Adolf Hitler, juntamente com seu teórico, Carl Schmitt, fundamentou um discurso de urgência em nome da proteção da segurança nacional, implicando a idéia de “periculosidade” para aqueles que não faziam parte da raça ariana. Ressurgiu, assim, mais uma vez, um “tipo normativo de autor” a ser perseguido pelo poder punitivo estatal: “os judeus”.
Podemos dizer que no direito penal de autor, cria-se uma figura a ser combatida diante da urgente ameaça – seja uma bruxa, um judeu ou alguém que é, por natureza, mais “perigoso”.
A periculosidade do agente, por diversas vezes colocada como ponto favorável por aqueles que querem justificar a exacerbação da pena do réu reincidente, baseia-se na crença de que existe um inimigo em comum, uma pessoa que tende a sempre ser o mal e que precisa ser combatida com urgência. Verificamos, entretanto, que o discurso da urgência foi responsável pela morte de milhares de pessoas ao longo da história. O sistema penal garantista não admite a periculosidade, conforme ensina Ferrajoli:
Num sistema garantista assim configurado não tem lugar nem a categoria periculosidade, nem qualquer outra tipologia subjetiva ou de autor elaboradas pela criminologia antropológica ou ética, tais como a capacidade criminal, a reincidência, a tendência para delinqüir, a imoralidade ou a falta de lealdade. (2010, p. 400)
É preciso que o juiz esteja atento às circunstâncias históricas e ao discurso político da sua época para que possa fazer uma precisa avalição da adequação, ou não, de um instituto repressivo como a reincidência à luz dos princípios constitucionais.
Hoje em dia, do ponto de vista teórico, temos o “direito penal do inimigo”, formulado pelo jusfilósofo alemão Günther Jakobs, na segunda metade da década de 1990, cuja teoria é muito bem elaborada:
Jakobs, por meio dessa denominação, procura traçar uma distinção entre um Direito Penal do Cidadão e um Direito Penal do Inimigo. O primeiro, em uma visão tradicional, garantista, com observância de todos os princípios fundamentais que lhe são pertinentes; o segundo, intitulado Direito Penal do Inimigo, seria um Direito Penal despreocupado com seus princípios fundamentais, pois que não estaríamos diante de cidadãos, mas sim de inimigos do Estado. (GRECO, 2012, online)
“Em muitos ordenamentos as pessoas são responsabilizadas pela sua forma de ser – bruxas, ébrios, anarquistas, subversivos, meliantes, inimigos do povo, perigosos, suspeitos, etc. – e não pela sua forma de agir.” (BRUNONI, 2007, online). Considera-se que tal mecanismo punitivo “choca-se com a garantia de culpabilidade e com o caráter regulativo que ela supõe”. (FERRAJOLI, 2010, p. 400)
Do ponto de vista social, verificamos que somos frequentemente bombardeados pelos meios de comunicação com histórias individuais de crimes a partir de um só ponto de vista: o ponto de vista das autoridades policiais. Programas televisivos como “Polícia24h”, “Brasil Urgente”, “Operação de Risco” e “Cidade Alerta”, apenas para citar alguns dos mais populares, perpetuam o mito de que a única função da polícia é de manter as ruas à salvo dos inimigos e que o juiz que “solta”, garantindo o ius ambulandi do sujeito, não está exercendo o seu papel com eficiência. Talvez daí decorram lugares-comuns decorrentes da mentalidade punitivista, como a colocação de que “bandido bom é bandido morto!”.
O que esses programas fazem questão de não mostrar é justamente o outro lado da moeda: detidos sem advogado; testemunhos baseados unicamente na palavra do policial – os quais tem real interesse em manter a legalidade do flagrantes, pois tratam-se de agentes públicos; flagrantes forjados; e a relativização de princípios processuais indispensáveis como presunção de inocência, contraditório e ampla defesa, devido processo legal, dentre outros. Esses programas perpetuam o discurso de ódio e a desobediência através do “fazer justiça com as próprias mãos”, além disso fazem exposição indevida de crianças, jovens e de famílias, incitando o racismo, o machismo, a homofobia e legitimando a violência policial. Em resumo, para esses interlocutores o crime é tudo o que interessa, pouco importando os desejos da vítima, as características do culpado ou as circunstâncias sociais em que se deu o fato delituoso. Tudo é simplificado ao extremo, crime e o castigo são colocados lado a lado no centro máximo da atenção e o que nos faria refletir e pensar criticamente é jogado fora, como por exemplo a criminalização da pobreza, a dinâmica da economia capitalista e as questões de raça, classe e gênero.
O juiz penal garantista deve avaliar a constitucionalidade de um instituto como a reincidência diante das condições em que efetivamente será realizado o cumprimento da pena. O princípio da culpabilidade pelo fato atende ao sistema de garantias previsto na Constituição de 1988, e é uma exigência civilizatória. No Estado Democrático de Direito a única fonte admissível é aquela que considera puníveis as condutas elencadas em um diploma normativo.
Aumentar a pena dos reincidentes para os punitivistas é viável e atende aos reclames da origem jurídica, pois é uma medida decorrente de maior periculosidade do agente em comparação aos réus primários. Para os garantistas, isso se deve às falhas do poder público em atingir a ressocialização. Nos parece inconcebível aceitar a colocação dos punitivistas, tendo em vista a já declarada falência do sistema de cumprimento de pena privativa de liberdade, diante do ECI declarado na ADPF 347.
Penalistas garantistas como Zaffaroni advogam uma função agnóstica da pena. Em síntese, para eles nenhuma teoria da pena funciona e tudo o que podemos fazer é limitar o poder punitivo e contê-lo, a fim de que provoquem menos prejuízo.
Juarez Cirino dos Santos também se coloca como um “anti-penalista”, diante da ideia de criminologia propagada pelos meios de comunicação, através do chamado populismo penal midiático (LEONE, 2018) que constrói uma realidade em que o que interessa é tipificar e não resolver problemas.
A proposta do garantismo penal é abraçar a idéia de culpabilidade pelo fato aliada ao princípio da lesividade efetiva bens jurídicos, a fim de resguardar o reincidente da estigmatização, escondida por detrás do discurso jurídico-criminal oficial.
5. CONCLUSÃO
O instituto da reincidência criminal encontra-se previsto no art. 63 do Código Penal Brasileiro e configura violação a uma série de princípios constitucionais que resguardam os direitos fundamentais do cidadão. Trata-se de instituto que reflete uma lógica normativa oriunda de um Direito Penal de autor, que visa punir o delinquente não pelo fato praticado, mas sim pela sua própria personalidade.
O operador do direito desavisado tentará encontrar subterfúgio para a justificação do instituto no princípio da isonomia, sob a alegação de que um réu primário não pode ser punido na mesma proporção que um suposto criminoso contumaz. Porém, diante da secularização e dos princípios esposados no art. 5º da Constituição Federal de 1988, evidencia-se que o papel do Estado Democrático de Direito deve ser pautado e pensado a partir da lógica da ressocialização, e não da punição. É certo que, mesmo diante de um indisfarçável Estado neoliberal no qual vivemos hoje, fomentado pelo populismo penal midiático, a função real da pena, ocultada pelo discurso jurídico oficial, qual seja, de tão somente estigmatizar o réu e encaminhá-lo para o depósito dos rejeitados, deve ser combatida.
A violação aos princípios constitucionais do ne bis in idem, da coisa julgada, da individualização da pena é evidente, ofendendo o garantismo penal adotado pela norma jurídica fundamental. Impõe-se uma necessária postura revolucionária de afirmação, a despeito do RE 453.000 e da declaração de constitucionalidade por parte do STF, de que o instituto da recidiva trata-se, em verdade, de um dispositivo que não se coaduna com a ordem constitucional vigente em nosso país.
A criminalização de condutas necessariamente parte de uma ideologia. Na sociedade capitalista em que vivemos nos dias de hoje, os apenados reincidentes são, em sua maioria, negros, jovens e provenientes da periferia. O discurso da ressocialização não passa de uma ilusão. O direito penal atende a um propósito que é a manutenção da desigualdade social. Verificamos, portanto, que a função do cárcere é reproduzir delinquência e se retroalimentar, produzindo clientela para si mesmo. A declaração do ECI do sistema penitenciário na ADPF 347 é prova inquestionável disso.
É preciso, portanto, que sejam colocados filtros ao poder punitivo ilimitado e violador de direitos humanos. O direito penal do ato criminaliza condutas com base no bem jurídico protegido. Um direito penal que tenha o princípio da lesividade enquadrado na antijuridicidade material é de suma importância – ou seja, para se punir alguém este deve ter provocado dano a algo concreto, como à integridade física, à integridade sexual, ou a algum bem jurídico valioso, consagrado na constituição e no Código Penal.
Para sancionar um ato é preciso que haja uma conduta. Conduta é a vontade dirigida a ocasionar uma ação ou uma omissão. Quando não há conduta não há “ato punível”. Ser reincidente por si só não é um “ato punível” que justifique a exacerbação da reprimenda. A culpabilidade é a base teórica do nosso ordenamento jurídico que designa o delito e, a partir dela, os juízes devem aplicar um sistema coerente de direito penal de garantias, repelindo institutos antigarantistas como a reincidência.
A questão da progressão de regime também é muito importante, na esteira dessa compreensão da falência do sistema penal em relação aos seus objetivos declarados, que não se confundem com os reais. Nós precisamos minorar as consequências negativas desse sistema criminogênico. Precisamos atenuar isso com substitutivos penais, livramento condicional, suspensão condicional da pena e com outros institutos mais generosos que visem “desinstitucionalizar” a pena, ampliando as hipóteses de cumprimento em liberdade, buscando outras formas para que o sujeito volte à comunidade. Em suma, devemos atingir a compreensão de que o direito penal, na verdade, não é a melhor forma de resolução de conflitos sociais, pois temos que resolver esses conflitos através de políticas públicas – e não através de mais punição.
A resposta neurótica do Estado de pena criminal está gerando uma série de consequências que envolvem violações massivas a direitos humanos e uma população carcerária de mais de 700 mil pessoas as quais vivem em condições subumanas. Então, é preciso superar a ideia de que precisamos de mais crimes, de mais penas, de mais polícia, e de mais justiça criminal, pois essa mentalidade também estimula a reincidência delitiva e é cotidianamente propagada pelos meios de comunicação, constituindo um verdadeiro processo de populismo penal midiático.
Não se discute a desigualdade social, que é o que na verdade o direito penal garante. A criminologia demonstra isso com clareza a todo momento. A reincidência, se prova alguma coisa, só pode ser contra o Estado, pois ela é a demonstração evidente do fracasso do suposto projeto de ressocialização. Após o cumprimento da pena, o cidadão infrator retorna à sociedade e não tem alternativa, pois não tem lugar no mercado legal de trabalho, sendo praticamente obrigado a procurar “alternativas” no mercado ilegal, pois precisa sobreviver.
Drasticamente, podemos afirmar que objetivamente nós estamos vivendo não apenas um período de encarceramento em massa da população pelo Estado, mas também um período de matança em massa da população pelo Estado, sobretudo do poder executivo, pois ele teria a obrigação de efetivar políticas públicas que protegessem os desfavorecidos. São nefastos os efeitos da ampliação do direito penal em que vivemos nos dias de hoje e a reincidência é apenas mais um de seus institutos taxativos.
Em uma sociedade includente, e não excludente, é necessário manter uma política criminal de molde abolicionista e reducionista, razão pela qual é bastante preocupante que nos últimos anos se tenha falado bastante no debate criminológico brasileiro sobre a expansão do poder punitivo. “Redução da maioridade penal”, “relativização da presunção de inocência”, “medidas de combate à corrupção”, são alguns dos temas correlatos frequentemente citados nas discussões.
No Estado do Amazonas, para se ater ao nosso Estado, este ano já ocorreram pelo menos mais dois massacres dentro de penitenciárias que levaram a 55 mortes em cadeias que já haviam sido palco de 56 mortes em 2017[1]. Empiricamente assustadora e violadora do princípio da dignidade da pessoa humana, portanto, a situação carcerária.
O juiz garantista deve zelar por um direito penal democrático e é neste contexto que se deve pensar o saber jurídico penal: sem a devida contenção a este leviatã desenfreado que é o poder punitivo, não poderemos concretizar nossos sonhos de alcançar a tão almejada paz social.
6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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[1] Notícia do jornal “O GLOBO” do dia 26/05/2019. Disponível em: <https://oglobo.globo.com/brasil/2019/05/27/3046-disputa-em-faccao-criminosa-deixa-55-mortos-em-presidios-no-amazonas.> Acesso em 06 jun 2019