CAPÍTULO III
RESPONSABILIDADE CONTRATUAL E EXTRACONTRATUAL
Segundo Roberto de Rugiero [17]
cumprimento é a exata execução da prestação por parte do devedor. Exata execução quer dizer prestação de tudo aquilo que se englobou no vínculo, pelo modo e no lugar preestabelecido, sem possibilidade de substituir uma coisa por outra ou de fazer prestações parciais, quando o interesse do credor em receber a prestação integral não ficasse tão plenamente satisfeito como uma solutio por partes; quer dizer, satisfazer completamente o interesse do credor e visto que toda relação é denominada pelo princípio da boa-fé, e isto implica que o devedor, se o vínculo surge do contrato, é obrigado não só ao que no mesmo é expresso, mas também a todas as conseqüências que segundo a equidade, o uso ou a lei dele derivam.
A responsabilidade civil pode ser contratual ou extracontratual. Aquela decorre do descumprimento de uma obrigação contratual, de modo a causar dano à outra parte. Nesta última, não há qualquer relação entre ofensor e vítima, mas verifica-se a prática de um ilícito que causa prejuízos àquela.
O Código Civil vigente regula a responsabilidade do devedor pelos danos causados ao credor, assim dispondo:
Art. 389. Não cumprida a obrigação, responde o devedor por perdas e danos, mais juros e atualização monetária segundo índices oficiais regularmente estabelecidos, e honorários de advogado.
A responsabilidade extracontratual ou aquiliana encontra-se prevista nos arts. 186 e 927, do Código Civil, os quais estabelecem a prática de ato ilícito para aquele que causa danos a outrem, e impõe o dever de reparar os prejuízos suportados.
Na responsabilidade extracontratual, inexiste vínculo entre o ofensor e a vítima e este liame só será estabelecido no momento em que o ofendido pleitear uma indenização pelos danos que lhe foram causados. Diferentemente é a responsabilidade civil decorrente de contrato, na qual se verifica uma relação direta entre credor e devedor.
Para que ocorra a responsabilidade civil contratual (obrigacional), é imperioso se verificar a presença de dois requisitos: a validade do contrato e o nexo de causalidade entre o dano e o descumprimento contratual.
Muitas vezes se torna difícil demonstrar se o dano realmente decorre da relação contratual, ou se decorre de ato que, embora tenha certa relação com a avença, seja um ato ilícito que não guarde qualquer relação direta com o acordado. A responsabilidade contratual, se levada a termo esta definição, pode surgir não apenas de um contrato, mas de qualquer outra fonte das obrigações, como dos atos unilaterais. É por tal razão que boa parte da doutrina considera imprecisa esta definição, sendo preferível a expressão adotada pela doutrina portuguesa: responsabilidade obrigacional.
Na responsabilidade aquiliana (ou extra-obrigacional), incumbe à vítima demonstrar o prejuízo, a violação da norma e o nexo de causalidade, enquanto na responsabilidade contratual há um contrato ou ato unilateral em que existe o comprometimento das partes ou daquele que unilateralmente pratica o ato. Há um dever de cumprir a obrigação prevista contratualmente, tornando simples a comprovação dos danos e o dever de indenizar daquele que descumpriu o acordado.
Com relação à prova do dano, diferem os dois tipos de responsabilidade. Enquanto na contratual, uma vez comprovadamente inadimplida pelo devedor a obrigação, a este caberá provar a ausência de culpa, ocorrência de caso fortuito, força maior, ou uma das excludentes de responsabilidade. Na responsabilidade extracontratual à vítima incumbe a prova tanto da culpa (quando exigida), quanto do dano e do nexo de causalidade.
Assevera José de Aguiar Dias [18] que "a responsabilidade civil contratual e extracontratual são reguladas pelo mesmo princípio, pois a idéia de responsabilidade é una". Contudo, resta necessária, a divisão entre tais espécies de responsabilidade, pois, embora reguladas pelos mesmos princípios, são diversas as causas, e diferentes quanto à matéria probatória e prazos prescricionais.
3.1. Responsabilidade pós-contratual
Menezes Cordeiro [19] é quem melhor enfatiza a questão da origem da responsabilidade pós-contratual. Para o ilustre autor português
(...) a culpa post factum finitum tem origem na jurisprudência alemã da década de 20. As primeiras manifestações teriam sido no sentido de recusar reconhecimento ao fenômeno. (...) Mas, em 26 de setembro de 1925, ao decidir que, depois de consumada uma cessão de créditos, o cedente continua obrigado a não tolher a condição de cessionário, o Reichsgericht dá a base à nova doutrina, reforçando-a a 3 de fevereiro de 1926, com nova sentença pela qual, expirado um contrato de edição, o titular do direito de publicação fica obrigado a não fazer concorrência com o editor, procedendo à feitura de novas edições, antes de esgotadas as anteriores.
No direito brasileiro, muito pouco se discutiu acerca do tema. Ressalvados alguns estudos pioneiros, somente na década de noventa, por influência do Código de Defesa do Consumidor, a doutrina passou a discutir mais amplamente a boa-fé, surgindo algumas decisões com referências à boa-fé e aos deveres de conduta.
Muito embora o art. 422 do nosso Código Civil tenha introduzido na lei a cláusula geral da boa-fé, não há referências à responsabilidade pós-contratual, ficando a incidência da boa-fé restrita à conclusão e execução do contrato.
Ao contrário da idéia de boa-fé contratual e dos deveres acessórios de conduta, que se encontram bastante difundidos, pouco se tem discutido a respeito da pós-eficácia das obrigações. Menezes Cordeiro [20] questiona se esta circunstância seria resultado de uma deficiente fundamentação da doutrina, ou, talvez, sua inutilidade diante de outros institutos. A resposta a esta questão, segundo o autor, está ligada à natureza jurídica da responsabilidade pós-contratual.
Sabe-se que a responsabilidade pré-contratual consiste numa manifestação da responsabilidade aquiliana, posto lhe faltar um pressuposto essencial para a verificação da responsabilidade contratual, qual seja: a existência de um contrato válido. A violação da boa-fé, na fase pré-negocial ensejaria, portanto, a responsabilidade aquiliana do agente.
Do mesmo modo que a boa-fé incide no momento anterior à formação do contrato, presidindo a denominada relação pré-negocial, também no momento posterior à extinção do contrato a boa-fé fonte de deveres de conduta a serem observados pelas partes. O comportamento incorreto seria sancionado não com base no contrato findo, mas devido à violação direta da boa-fé.
A responsabilidade pós-contratual, portanto, tem natureza aquiliana. A boa-fé atua como fonte do dever de conduta que a parte se obriga a observar e a violação deste dever de conduta caracteriza o ato ilícito, gerando o dever de indenizar.
O art. 421 do Código Civil estabelece uma concepção social do contrato, cujo escopo é o de limitar a autonomia privada, a liberdade de contratar, impondo um comportamento equilibrado aos contraentes, impedindo que fujam à idéia de comutatividade que deve pairar as relações contratuais. Tal regra representa mais um fundamento da responsabilidade pós-contratual.
A função social do contrato, conforme Eduardo Sens dos Santos [21], não se apresenta como uma inovação, uma criação do novo Código Civil Brasileiro, "mesmo porque a Constituição já a previa junto à função social da propriedade. Ao contrário, como princípio que é, existe independentemente de lei e dispensa referência expressa [...]".
Em verdade, após a Constituição Federal de 1988 é que o núcleo do contrato passa a residir "na solidariedade e a sua causa codivide espaço entre interesses patrimoniais inerentes ao contrato, enquanto instrumento de circulação de riquezas, e os interesses sociais". É no texto constitucional que se localiza o princípio da função social do contrato, ao conformar, no art. 170, caput, a livre iniciativa à justiça social.
A teoria geral dos contratos passou a ter como base a noção de eqüidade, boa-fé e segurança, que concretiza a chamada socialização da teoria contratual. Funcionalizar o contrato implica, sobretudo, em atribuir ao instituto jurídico uma utilidade ou impor-lhe um papel social, atinente à dignidade da pessoa humana e à redução das desigualdades culturais e materiais.
Essa função social do contrato trouxe às relações contratuais um procedimento justo. Qualquer cláusula excessiva, abusiva, vexatória, não se coaduna com a concepção social do contrato.
Na culpa post factum finitum, uma cláusula considerada abusiva que continua a produzir efeitos mesmo após a extinção do contrato, com o efetivo cumprimento daquilo que foi avençado, fere a concepção social do contrato, permitindo ao magistrado, ao abrigo da cláusula geral da boa-fé, responsabilizar o ex-contratante que injustamente tenha se beneficiado dos efeitos daquela cláusula.
Com o advento da Constituição Federal de 1988, com a constitucionalização do direito civil ou civilização do direito constitucional, a utilização dos preceitos constitucionais tornou-se mais simples, diante da gama enorme de preceitos de direito civil constantes do texto constitucional.
A dignidade da pessoa humana impõe um comportamento equânime na realização de qualquer negócio jurídico. Deste principio resultam as cláusulas gerais da boa-fé objetiva constantes do Código Civil (art. 422) e do Código de Defesa do Consumidor (art. 4º, III), que veda a prática de atos que firam a boa-fé e a função social do contrato.
A violação dos chamados deveres acessórios de conduta mesmo após a extinção da obrigação contratual viola a regra geral da boa-fé e, por conseguinte, o princípio da dignidade da pessoa humana, do qual decorre.
O princípio da igualdade, por sua vez, há que ser visto como um princípio de justiça social. Respeitando a igualdade entre as partes na relação, ou seja, tratando igualmente os iguais na medida de suas igualdades e desigualmente os desiguais na medida em que se desigualam, estar-se-á cumprindo a justiça social, tendo, como conseqüências, a construção da cidadania (artigo 1.º, II, Constituição Federal de 1988) e da dignidade da pessoa humana (artigo 1.º, III, CF/88). Somar-se-á a isso: a construção de uma sociedade livre, justa e solidária (artigo 3.ª, I, CF/88) e a garantia do desenvolvimento nacional (artigo 3.º, II, CF/88).
O princípio da solidariedade está previsto no art. 3º, I, da Constituição Federal, que estabelece como objetivo fundamental da República Federativa do Brasil a construção de uma sociedade solidária, e também no art. 195, caput, que trata especificamente de seguridade social, da qual faz parte a saúde.
Os princípios da solidariedade e igualdade têm por fim o desenvolvimento e o respeito à pessoa humana. Não há justiça social quando não respeitados os deveres acessórios, laterais ou anexos.
A cláusula geral da boa-fé objetiva, inserta em nosso Código Civil em vigor impõe um comportamento honesto, ético, correto, equilibrado, nas relações contratuais, assim como em qualquer outra relação jurídica. O mesmo ocorre com o Código de Defesa do Consumidor, o qual prevê a boa-fé objetiva em seu art. 4º, III. Esta cláusula geral da boa-fé impõe um comportamento probo não somente nas relações contratuais, mas em todas as relações jurídicas.
Desta forma, o principal fundamento para a aplicação da responsabilidade pós-contratual ampara-se na cláusula geral da boa-fé, que propicia a flexibilização do sistema jurídico, pois, como lembra Enéas Costa Garcia [22], a solução para situações relacionadas ao contrato que continua a produzir efeitos mesmo após o seu cumprimento e, conseqüente extinção seria inviável ou, no mínimo, de difícil aplicação num sistema jurídico sem mobilidade, inflexível, rígido, sem a existência de uma cláusula geral de boa-fé.
Embora o art. 422, como já apontado neste trabalho, tenha uma redação pouco precisa, indiscutivelmente em todas as fases (pré-contratual, contratual propriamente dita e pós-contratual), está implícito o dever de boa fé e probidade, mesmo porque se trata de cláusula geral, que se impõe em qualquer outra relação jurídica e por se tratar de dispositivo de ordem pública, consoante o disposto no parágrafo único do art. 2.035 do Código Civil. Tais dispositivos abarcam situações como a culpa in contrahendo, assim como a culpa post factum finitum.
A boa-fé é um princípio inerente aos contratos e a sua consagração positiva apenas declara um princípio subjacente ao regime obrigacional. A infeliz redação da norma não constitui uma opção do legislador no sentido de excluir os fenômenos da pós-eficácia. Fazendo uma interpretação do art. 422 do Código Civil com base na boa-fé objetiva, concluímos que este princípio deve ser reconhecido como fundamento legal da pós-eficácia das obrigações, da existência de deveres de conduta para além do final do contrato.
3.2. A responsabilidade pós-contratual no direito comparado
3.2.1. Alemanha
O direito germânico foi o criador da teoria da responsabilidade pós-contratual. Ali surgiu a teoria da culpa post factum finitum, de modo que é neste país que se encontram o maior numero de julgados. Sobre o tema continuam seus doutrinadores a elaborar estudos no sentido de aperfeiçoá-la. Na legislação alemã, o fundamento da responsabilidade pós-contratual vem consagrado no §242 do BGB, que fixa para todas as relações jurídicas o dever de agir com boa-fé, inclusive na fase posterior à celebração do contrato, cujos efeitos não foram determinados pelos contraentes.
Para a doutrina e jurisprudência alemã que seguem esta teoria, mesmo após a extinção dos contratos, persistem os deveres acessórios que, caso transgredidos, geram a responsabilidade pós-contratual.
3.2.2. Portugal
Os lusitanos foram, a exceção dos alemães, os que mais se interessaram pelo estudo da responsabilidade pós-contratual. Em Portugal surgiu o maior número de obras sobre a culpa post factum finitum, buscando o maior desenvolvimento do tema.
A maior parte da doutrina portuguesa acolhe o que costumam chamar de pós-eficácia das obrigações, expressão mais precisa e abrangente.
O código civil português prevê a pós-eficácia das obrigações em seu art. 239º, segundo o qual:
ARTIGO 239º
(Integração)
Na falta de disposição especial, a declaração negocial deve ser integrada de harmonia com a vontade que as partes teriam tido se houvessem previsto o ponto omisso, ou de acordo com os ditames da boa fé, quando outra seja a solução por eles imposta.
Em que pesem seus avanços na área doutrinária e legislativa, o mesmo não se pode dizer quanto às decisões dos tribunais lusitanos. As poucas decisões atinentes ao tema tem sido tratadas como casos de responsabilidade delitual (aquiliana), sem o devido enfrentamento da teoria da culpa post factum finitum.
3.3.3. Argentina
A doutrina argentina enfrenta o tema da responsabilidade pós-contratual, sustentando a existência de uma responsabilidad postcontractual calcada na boa-fé. Esta deve pautar as relações entre as partes mesmo após o cumprimento das relações principais do contrato.
Os argentinos distinguem as obrigações em principais e secundárias ou acessórias e o fundamento destas últimas reside no fato de que o contrato não se extingue em um único ato. O contrato deixa vestígios após o seu término, como se ainda estivesse a viger os entre os contraentes.
A legislação civil, assim como a consumerista da Argentina tem na boa-fé o fundamento para a existência de uma responsabilidade após a extinção do contrato, assim dispondo:
Código Civil Argentino, Art.1.198, 1ª Parte:
Los contratos deben celebrarse, interpretarse y ejecutarse de buena fe y de acuerdo con lo que verosímilmente las partes entendieron o pudieron entender, obrando con cuidado y previsión.
Ley de Defensa del Consumidor, art. 37:
En caso en que el oferente viole el deber de buena fe en la etapa previa a la conclusión del contrato o en su celebración o transgreda el deber de información o la legislación de defensa de la competencia o de lealtad comercial, el consumidor tendrá derecho a demandar la nulidad del contrato o la de una o más cláusulas. Cuando el juez declare la nulidad parcial, simultáneamente integrará el contrato, si ello fuera necesario.
Há que se ressaltar que, embora a doutrina argentina reconheça a existência da responsabilidade pós-contratual, não menciona qualquer decisão que a tenha acolhido.
3.2.4. Itália
Embora de forma pioneira tenha sido feita expressão atinente à responsabilidade pré-contratual no art. 1.337 do Código Civil italiano, nenhuma menção foi feita sobre a responsabilidade pós-contratual.
Trattative e responsabilità precontrattualeArt. 1.337.
Le parti, nello svolgimento delle trattative e nella formazione del contratto, devono comportarsi secondo buona fede (1366,1375, 2208).
O artigo 1.175 introduz a cláusula geral da boa-fé, obrigando o comportamento das partes com correção (corretezza), servindo para responsabilizar àquele que viola deveres laterais, anexos ou acessórios, dispondo:
Comportamento secondo correttezzaArt. 1.175
Il debitore e il creditore devono comportarsi secondo le regole della correttezza (1337, 1358).
Apesar de adotar nestes e numa série de outros dispositivos do código a boa-fé objetiva (por exemplo, os arts. 1.366, 1.375 e 1.460), construindo um terreno favorável à aplicação da teoria da culpa post factum finitum, não se observa na doutrina e jurisprudência italianas estudos ou decisões que a contemplem.
3.2.5. França
Embora o Code Napoleón não preveja proteção aos chamados deveres laterais, seja na fase pré ou pós-contratual, a doutrina e jurisprudência francesas, com base no art.1134 [23], adotaram a teoria da culpa in contrahendo.
Article 1134
Les conventions légalement formées tiennent lieu de loi à ceux qui les ont faites.
Elles ne peuvent être révoquées que de leur consentement mutuel, ou pour les causes que la loi autorise. Elles doivent être exécutées de bonne foi.
Com relação à teoria da culpa in factum finitum, nenhuma menção é feita pelo legislador ou mesmo pela doutrina e jurisprudência francesas. Tal fato se torna ainda menos compreensível ao observarmos que a imposição de um comportamento segundo a boa-fé, honestidade e lealdade mesmo após a extinção do pacto abre um fértil campo para aplicação da responsabilidade pós-contratual no direito francês.