9. INTERCEPTAÇÃO DE CORRESPONDÊNCIA
O direito à intimidade, à privacidade, à honra e todas as suas formas de manifestação, ou seja, a inviolabilidade de domicílio, das comunicações e da correspondência, que se constituem em apenas algumas das várias modalidades de exercícios dos aludidos direitos, podem, como regra, ser limitados, por não configurarem nenhum direito absoluto.
É o que ocorre, v.g., com relação ao sigilo de correspondência, cuja inviolabilidade é até prevista como crime. Desde que presente autorização judicial, poderá haver quebra do mencionado sigilo porque devidamente prevista em lei, justificada por necessidade cautelar, no curso da investigação ou instrução criminal, tal como ocorre em relação às comunicações telefônicas. As cartas particulares, interceptadas ou obtidas por meios criminosos, não serão admitidas em juízo, salvo para defesa de direito de seu destinatário.
A doutrina tem entendido que a interceptação de correspondência constitui prova ilícita mesmo quando a apreensão de cartas ocorre em busca e apreensão, ainda que judicialmente autorizada, entendendo que o art. 240, § 1º, f, do CPP não foi recepcionado pela CF, que garante, sem exceções, a inviolabilidade da correspondência em seu artigo 5º, XII.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O tema por nós abordado é dos mais polêmicos na seara processualista, sendo certo que a jurisprudência e a doutrina não são unânimes sobre o assunto, e, passadas quase duas décadas de vigência do texto constitucional, ainda há resistências à proibição absoluta do ingresso no processo, de provas obtidas com violação de direito material.
A par de todas as conclusões que se dirigem no sentido da proteção da intimidade e da liberdade dos acusados, não se pode perder de vista a aplicação justa e eficaz da lei penal no combate à criminalidade, especialmente aquela organizada, e é por isso que a doutrina e a jurisprudência, no Brasil e no mundo, vêm preconizando a regulamentação precisa das interceptações telefônicas, como eficiente instrumento de investigação policial, e contundente meio de prova processual, à altura da sofisticada tecnologia empregada pelos criminosos.
Há uma crise da Justiça, caracterizada pela impunidade, que, evidentemente, não se resume à falta de eficientes meios de prova.
Foge à lógica do razoável permitir, hoje, em pleno ano de 2007, que a preservação da intimidade de criminosos impeça a sua punição, dependendo do caso. Há que se ter mais critérios objetivos e bom senso com boa-fé em razão de quem necessita da prova para demonstrar a veracidade do direito material, como a boa-fé do captador da prova, o modo de obtenção necessário, o motivo relevante, o valor proeminente e a unicidade da prova.
Em não havendo quaisquer atividades contrarias à lei ou mesmo à moral e bons costumes, o direito à intimidade assumiria um caráter absoluto, mas, se houvesse qualquer atividade ilícita, lato sensu, que permitisse a contraposição de valores em conflitos, estaria o juiz autorizado a admitir tais provas e valorá-las utilizando-se para isso, da razoabilidade e proporcionalidade.
Dessa forma, os limites da licitude probatória, diante da análise da problemática das provas ilícitas deverão ser analisados de acordo com tais critérios objetivos.
Por ora, entendemos que a regulamentação da matéria, como já preconizava a ilustre Professora Ada Pellegrini Grinover há mais de duas décadas, tornou-se uma necessidade impostergável. Essa é a condição para um processo justo, que enseje mais adequada tutela das liberdades fundamentais.
Não devemos em regra admitir no processo as provas obtidas por meios ilícitos, mas, por outro lado, se a prova ilicitamente obtida favorecer a defesa, o próprio direito de defesa pode ser usado para limitar o direito à intimidade ou correlato. Por exemplo: não podemos admitir que um inocente seja condenado só porque a única prova que ele possui de sua inocência foi obtida ilicitamente.
Entendemos não ser razoável a postura inflexível de se desprezar toda e qualquer prova ilícita. A prova é a alma do processo e visa a demonstrar ao Julgador uma verdade histórica ocorrida de modo a formar sua convicção para que possa bem julgar a causa e sabemos que os meios de prova elencados no Código de Processo Penal não são taxativos. Qualquer meio de prova estará apto a demonstrar um fato, desde que legal e moral.
As provas obtidas por meios ilícitos são inadmissíveis, em regra, porém, a teoria da proporcionalidade permite a utilização de provas ilicitamente obtidas em casos excepcionais e graves, tanto em favor quanto em desfavor do réu, vez que nenhuma norma constitucional tem caráter absoluto.
O que se pode seguramente afirmar é que, embora a vedação constitucional às provas ilícitas esteja a serviço da proteção de direitos fundamentais do cidadão contra arbítrios do Estado, casos há em que essa vedação, tomada de forma absoluta, levará a situações conflitantes, protegendo-se um direito fundamental de alguém que ameaça solapar os fundamentos basilares da sociedade constituída.
Ainda que não se possa estabelecer uma graduação entre os direitos fundamentais, é possível e até necessário que sejam relativizados para atender à necessidade de convivência desses direitos dentro do sistema jurídico, possibilitando a defesa da sociedade em situações extremas, sempre tendo na idéia de proporcionalidade o vetor a orientar a flexibilização.
É nessa esteira de raciocínio que, à luz de Günter Jakobs, se alude a um direito penal de terceira velocidade, no qual se poderia flexibilizar as garantias individuais em situações extremas, mas sempre de forma temporária e emergencial, como um direito penal de guerra, necessário para defender a manutenção do próprio Estado Democrático de Direito, em função de ameaças como a delinqüência patrimonial profissional, a delinqüência sexual violenta e reiterada, a criminalidade organizada e o terrorismo.
Em relação às conseqüências da decretação da ilicitude da prova, os tribunais têm entendido que a presença de uma prova ilícita no inquérito policial ou no processo não enseja sua anulação, desde que existam outros elementos de prova suficiente para justificar a continuidade das investigações ou do processo. Da mesma forma, existindo provas suficientes fundamentando a sentença, esta será válida, ainda que no processo exista uma prova ilícita.
Finalmente, ainda que o processo ou o inquérito possa ter seguimento, mesmo sendo verificada a existência de uma prova ilícita em seu bojo, no nosso modesto entender, o mais adequado seria que essa prova fosse desentranhada dos autos, já que sua permanência poderia contaminar o espírito do julgador, sobretudo quando se tratar do tribunal do júri, composto por juízes leigos.
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Notas
01
CARNELUTTI, 2002, p.46-47.02
SILVA, 1997.03
SANTOS, s/d, p. 327.04
CARNELUTTI, 1936, p. 674.05
TUCCI, s/d, p. 336.06
PRADO, 2006, p. 5.07
RT, 824511.08
CPP, art. 157. O juiz formará sua convicção pela livre apreciação da prova.09
CF/88, art. 5º, LVI: São inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos.10
CPP, art. 156. A prova da alegação incumbirá a quem a fizer, mas o juiz poderá, no curso da instrução ou antes de proferir sentença, determinar, de oficio, diligências para dirimir dúvidas sobre ponto relevante.11
PEDROSO, 1994, p. 163; e 1996.12
GRINOVER; FERNANDES; GOMES FILHO, s/d.13
A Gravação de conversa telefônica como meio de prova. Disponível em: www.oab-mg.org.br>.14
Vide, GARLAND; STUCKEY, 2000, p. 295.15
STF, 1ª T., HC 83921/RJ, Rel. Min. Eros Grau, DJ 27.8.2004, p. 70.16
Nesse sentido TJSP, 3ª Cam., Ap. 32.305, Rel. Cláudio Marques, j. 2.2.1995.17
Prova emprestada. Revista Brasileira de Ciências Criminais, n. 4, p. 6-069. No STF, a prova emprestada já foi considerada admissível, embora questionável sua eficácia jurídica é precária o seu valor probatório, quando produzida sem a observância do princípio constitucional do contraditório (STF – 1ª T. – HC n. 67.707-0-RS, Rel. Min. Celso de Mello, DJU 14.8.1992, p. 12225).18
FIDALGO GALLARDO, 2003.19
FIDALGO GALLARDO, 2003, p. 36.20
GRINOVER, 1991.21
22
STF, 1ª T., RE 212.08/RO, Rel. Min. Octavio Galotti, DJ 27.3.1998, p. 23.23
GRINOVER, 1991.24
Idem.25
GRINOVER, 2006.26
STJ. Rel. originário Min. Cláudio Santos, Rel. designado Min. Nilson Naves, j. 24.12.1997. RDR n. 8, p. 255-264.27
GARLAND; STUCKEY, 2000.