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Violência e crime, sociedade e Estado

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23/12/1998 às 00:00
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COMPREENDENDO O PROBLEMA

É de se fugir do lugar comum e não menos verdadeiro de que a violência (inclusive a institucional) marca indelevelmente nossa formação social. O mesmo se diga quanto à seletividade de nosso sistema penal que alcança melhor e mais depressa pobres, negros e nordestinos (migrantes depauperados) e quanto à arrogância e descaso de boa parte de nossas elites e governantes para com os direitos em geral e especialmente os direitos humanos das classes subalternas. Os nossos negros, nordestinos (sobretudo fora do nordeste), índios, homossexuais, população de rua, estão, todos, de fato (e não de direito, é claro) à margem da cidadania e sofrem a violência da discriminação social, mais ou menos ostensiva, que vai desde a mera suspeita até julgamentos/condenações/execuções penais bastante influenciadas por preconceitos e injustiças sociais. As cidades faveladas, quilombadas ou mocambadas que hoje se defrontam com nossas ‘cidades européias’ (em potencial guerrilha urbana) é realidade gêmea daqueloutra que tem relegado, não é de agora, a segurança pública, em todo país, a uma atuação autofágica (porque pobre em prevenção e seriedade política, mas rica em autodestruição) e portanto socialmente explosiva (porque ao descomprometer até o mero soldado PM, profissionalmente subutilizado, sub-remunerado, compromete com o crime novos contingentes de excluídos e exploradores...).

A violência e o crime (violência reprimida formalmente pela lei), todavia, são comportamentos sociais inerentes à natureza humana; cada sociedade estabelece até que ponto há de tolera a violência. Assim o limite à violência não é apenas legal, mas sobretudo social. A existência do crime é fato social normal (Durkheim), embora sempre abominável e logo punível seu autor; anormal e patologia social é o crime em taxas altas. O crime para a sociedade é como a célula doente para o organismo humano, sempre há e haverá a célula maligna que é controlada e contida pela defesa orgânica, a doença estará caracterizada com a alta taxa destas unidades mórbidas, porém cada célula doente merece, por si só, tratamento. Dir-se-ia, com precisão, que a violência, quando guiada por valores éticos-sociais, não pode ser descartada, é pois um mal necessário e ainda inerente ao nosso estágio evolucional.

Bem mais útil à reflexão é estarmos atentos ao vácuo de padrões positivos, a anomia crônica que tem prevalecido no Brasil (falta-nos, como nação, padrão moral), sobretudo com a república. Com efeito, do presidentes a vereadores e até em eleições de clubes e diretórios estudantis a nossa democracia é mais indireta que outras, eis que perpassadas de odiosas interferências: "é dando que se recebe", a regra do jogo eleitoral muda em meio o jogo e para aviar interesse imediatos (os biônicos, as retóricas de puro marketing, as sublegendas, só para eleger desavindo poderoso), "o Brasil não é um pais sério!", tudo isto são, quiçá, traduções desta situação nacional de ausência de normas e referenciais, de padrões e sentido. Enfim não há perspectivas de comportamento socialmente compensadores, antes pelo contrário, a equação custo-benefício tem sido conselheira do mal. A consciência, primeira instância preventiva do crime, já não permite a nítida distinção entre o bem e o mal. Todos nós temos muita facilidade em explicar desrespeitos às leis e aos direitos, em alguns casos parece até que as normas foram feitas só para os outros. Neste quadro geral (altamente criminogênico) o efeito disciplinador dos padrões individuais/coletivos é por demais enfraquecido, gerando o fenômeno comportamental da adaptação, do conformismo (já que não tem jeito o melhor aproveitar também) e logo dos desvios de condutas de muitos.

A onda crescente de violência, inclusive criminal, é um complicado enigma do mundo moderno que não será bem decifrado se não nos afastarmos da mera retórica, das rivalidades corporativas ou cientificas ("cientistas sociais e juristas"), do emocionalismo. Tanto quanto o mal da Aids, o do crime exige, para seu eficaz enfrentamento, consciência de que o problema é multidisciplinar, de responsabilidade profissional de muitos (policiais, promotores, juízes, peritos) e responsabilidade social de todos, eis que os fatores do crime (melhor que "causas do crime", segundo as últimas tendências da Criminologia) são múltiplos e de variada etiologia. Só a repressão não terá força, nem mesmo com maiores e bem armadas legiões de policiais, para conter o crime. Conquanto indispensável e preventivo (em certos casos) a punição é, no entanto, enfrentamento apenas do efeito do problema. E disto já percebera Beccaria, lá em 1775, quando proclamou ser "mais fácil, mais útil, prevenir que reprimir"; tal inexcedível verdade, parece, longe de nossas consciências.

Neste tema talvez o único determinismo plausível seja o fato de que o crime é produção sociocultural, ou seja, seus elementos condicionantes têm esta etiologia. Com efeito, o comportamento agressivo gerador da criminalidade, deriva de fatores inerentes à personalidade e de fatores situacionais, tais como: frustrações, influência de modelos agressivos, o efeito modelador da permissividade sobretudo nos meios de comunicações e na família, o relativismo moral e o declínio da normatividade intima (independente de juízos valorativos) da religião, tudo isto se não é determinante, por certo, é fortemente condicionante. Com tais fatores presentes, a convivência social já estará potencialmente ameaçada. A situação se agrava quando as estruturas sociais e éticas são abaladas por políticas injustas (apesar dos "marketeiros" que tudo doiram), por atos da elite social e política contrários ao padrão comportamental exigido (ostentação agressiva de poder e opulência, variadas fraudes e corrupção de tantos valores sociais, crimes/impunidades de ricos e poderosos) que quando não "dignificados", restam livres de reprimenda modeladora e preventiva daquelas potencialidades ameaçadoras do convívio social.

Assim a relação que pode haver entre estes comportamentos da elite (inclusive das estruturas sociais iníquas) e a violência e criminalidade que grassam (individual ou organizadamente) nas camadas sociais inferiores é que a primeira, se não provoca, estimula e encoraja e muito a segunda (e para alguns, até a "justifica" (?): delinqüência Hobin Hoodiana). Não bastassem as nossas velhas mazelas sociais: fome, miséria, falta de educação e de saúde - indigência sócio-econômica - já por si suficientes para desencadear a violência, há ainda todo este caldo de subcultura criminógena a encorajar atitudes anti-sociais dos que já perderam a esperança. Contudo, um só crime do colarinho branco acarreta à sociedade danos (materiais e psicossociais) mais sérios que centenas de furtos e roubos...

Atualmente tem se classificado os crimes em três tipos básicos : crimes patológicos (derivam de doenças do corpo ou da mente, ou de ambos); crimes passionais (forte e violenta tensão que pressiona o agir do criminoso); crimes por opção (decorrem da franca falência do poder intimidatório do Direito Penal, eis que o agente elege a alternativa da infringência das regras penais). É nesta última classe de crimes se encontra a grande maioria dos delitos que nos assustam nos dias correntes.



SOLUÇÃO OU ALIENAÇÃO

Há no contexto geral desta discussão alguns de "buracos negros" que atraem e consomem a clarividência. Assim é de destaque, neste aspecto, por exemplo, a chamada ideologia da lei ordem e já agora seu insurgente movimento de opinião pública, que busca solucionar a crise da criminalidade a partir senão exclusivamente, pelos menos precipuamente do Direito Penal e daí a esquizofrenia legislativa penal, com edição de leis com penas severas e duradouras, desorganizando a dosimetria penal e até mesmo flexibilizando-se garantias individuais de natureza político-jurídicas, tais como o princípio da legalidade e da tipicidade penal.

Conquanto o Direito Penal, de fato, careça de cuidadosa modernização, seria ingenuidade danosa pensarmos (fazermos pensar) que a lei, a polícia e o Estado enfim, possam, ainda que com a melhor das técnicas, impor ordem numa sociedade que em boa parte dela cultua valores incompatíveis com o baixo índice de violência e criminalidade (1). Por outro lado, pouco adiantaria uma legislação penal avançada (crimes econômicos complexos, de informática...) se a polícia não estiver também apta a tal modernidade. Enquanto todo o espectro criminal apresenta hoje uma dinâmica modernizante a polícia em geral está perdendo e muito em tecnologia, recursos humanos e financeiros para a criminalidade atual. O abrandamento das penas como "solução" dos anos 70 para o problema da superpopulação prisional, por exemplo, precisa ser revisto porque enfraquece poder intimidatório e não reduz aquele problema.

O Direito Penal que sempre foi forte na intimidação enquanto remédio derradeiro, agora é, e por questões "mercadológicas", panacéia de nossa endemia nacional : a criminalidade.É que o mercado aceita mais facilmente, desde que bem promovido, um remédio (ilusório) de ação imediata apenas sobre os efeitos, a um de eficácia causal, mas não-imediata. É a solução da realidade virtual, só que de problemas concretos!

Outro lugar comum que turva a boa compreensão do problema é o argumento, ahistórico, de que nossa violência tem explicação nos governos militares. Com efeito, bem avaliava já Machado de Assis, em Memórias Póstumas de Brás Cubas (2), o quão enraizado em nossa cultura a violência. Veja-se, também, a excelente interpretação da obra machadiana feita por Roberto Schwarz ("O sentido histórico da crueldade", in Novos Estudos/Cebrae, nº17,1987,SP). Não é de se descartar, por certo, que a violência política daquela recente quadra de nossa história acrescentou fortes temperos ao caldeirão da violência e criminalidade que nossa sociedade cozinha há longos anos.Temos, pois, um extenso histórico de violência (física, econômica, social, moral, psicológica e até religiosa...) e violentados que conseqüentemente são violentos.

Por outro lado, a síndrome da vitimização e da violência como resposta ao crime (o discurso sensacionalistas e cientificamente ingênuo da "lei e da ordem" e/ou da truculência em torno de crimes hediondos) engendrada por uma predileção, socialmente mórbida, de certo setores da imprensa e da polícia só fomenta aquela esquizofrenia legislativa e a belicosidade geral e recíproca (grupos dos maus contra grupos "bons", sociedade contra sociedade, incluídos contra excluídos).Nada disto tem sequer produzido menor efeito positivo na questão.

Vale dizer, nenhuma das leis (mais simbólicas e promocionais que eficazes) eflúvio daquela mentalidade logrou reduzir a criminalidade, assim, por exemplo, a chamada lei dos crimes hediondos e outras do gênero); antes ao contrário, as prisões e delegacias de policias estão abarrotadas destas "soluções", como também os fóruns. E haja construções de enormes e caros complexos prisionais (verdadeiros barris de pólvora a ameaçar a vizinhança) que exigem profissionais qualificados, reciclados e bem pagos na razão direta daquela enormidade; eis aí o ponto crítico de nossas grandes obras públicas (CEPAIGO dos anos 70, em Goiânia; CIEPs no RJ...), ou seja, construir não é tão difícil quanto manter qualidade do serviço à altura da obra festivamente inaugurada. Teremos Bangu e Papuda I, II, III, VI... ad infinitum (para depois termos de enfrentar o problema da desativação, como o Carandiru/SP, o Frei Caneca/RJ...) ??

Temos no Brasil, segundo as últimas estatísticas, 70 mil vagas onde se amontoam 150 mil presos e 200 mil mandados de prisão a serem cumpridos. Providencias eficazes ou não, como baixar a idade de imputabilidade criminal, prolongar as penas e acrescer novos e necessários crimes, tudo isto agravará ainda mais a questão prisional; que já esta a exigir a intervenção direta do governo federal, quiçá, construindo e mantendo dois ou três complexos prisionais (com hospital inclusive psiquiátrico) em ilhas (navios adaptados) para presos de alta periculosidade (lideres do crime organizado, reincidentes...).Porem nada será suficiente se não enfrentarmos, com eficácia e seriedade, as causas e fatores da violência e da criminalidade. Isto, aliás, é obrigação de toda a sociedade, liderada pelo governo e meios de comunicação de massa. O imobilismo aqui é outro fator favorável ao crime. Cumpre registrar que a consciência revoltada (e reforçada muitas vezes pela irresponsabilidade do noticiário) com a insegurança cotidiana, amiúde, é cega para as verdadeiras causas do mal e complacente com os atos e omissões dos responsáveis pelo imobilismo político-econômico que reina no assunto.

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O QUE É POLÍCIA

Originariamente polícia era conjunto de funções necessárias ao funcionamento e à conservação da cidade-Estado (polis grega, daí a etimologia de polícia e civita romana, daí civil, isto é, inerente à civita). Civil era, pois, derivação de cidade (conceito político e não urbanístico) e logo Direito Civil (o Direito dos nascidos na civita romana) e cidadão - aquele a quem é dado o direito de influir na gestão da coisa pública, da civita (daí república: res (coisa) + publica). Militar era (e é) antítese conceitual de civil, no sentido primitivo os que se domiciliavam na cidade (os civis) e os que estavam fixados fora da civita (os militares). Assim, os corpos militares (as legiões romanas) eram sediadas fora dos limites da cidade para defendê-la dos invasores (os bárbaros) e não podiam adentrá-la sem permissão do governo. Dentro das civitas, só bem depois (já final do império romano) é que vai ocorrer o fenômeno do pretorianismo, militarização transitória de determinadas funções estatais ligadas à segurança pública (cessada a excepcionalidade retornava-se à normalidade civil) e amiúde usado como instrumento de conquista, manutenção e exercício forçado do poder (que já perdera muito de sua força sobrenatural que tanto fortaleceu as cidades-Estados). Isto vem de explicar o fenômeno político, já histórico, denominado militarismo (degeneração profissional que culmina com o controle da vida civil pelos especialistas da defesa externa (e hoje, também, interna, mas neste caso apenas por exceção e requisição do supremo magistrado civil).

Como se vê a expressão polícia civil é pleonástica e polícia militar, pior ainda, é contraditória.Vale dizer que polícia do exército, p.ex., não passa, tecnicamente, de organização militar de guarda, de vigilância ou correição interna corporis (como há nas igrejas e demais corporações) sem, entretanto, qualquer função atinente ao binômio individual-grupal versus público-social (este no sentido de civita/Estado) que é a essência da polícia.Policia é, então, a organização administrativa (vale dizer da polis, da civita, do Estado = sociedade politicamente organizada) que tem por atribuição impor limitações à liberdade (individual ou de grupo) na exata (mais será abuso) medida necessária à salvaguarda e manutenção da ordem pública. Assim há polícia sanitária, de posturas urbanas, aérea, rodo/ferroviária, marítima, ambiental, de diversões públicas, de segurança e etc.Todas estas atividade (policiais) administrativas atuam no dificílimo e exíguo espaço existente entre os direitos e interesses individuais ou grupais e o interesse público, social, ou seja, o interesse senão de todos, pelo menos da maioria, que jamais pode ser confundido com o dos governantes ou poderosos.

No entanto, a polícia mais visível a todos é a de segurança pública (a força - do Direito - armada interna, municipal/local, não fosse a debilidade de nossos municípios) e por isso mesmo, metonimicamente, todos tendemos a confundi-la, enquanto parte, com o todo. Confunde-se, também, polícia-função (sentido original) com polícia-corporação (sentido usual).Modernamente e na medida em que os tradicionais meios de controles do homem (o freio mítico da antigüidade politeísta, o do cristianismo medieval...) desapareceram ou perderam força e novos fatores anti-sociais surgiram, a polícia se especializa e, hoje se apresenta com duas funções: a tradicional polícia preventiva (administrativa, p/alguns), de proteção individual e coletiva e a moderna polícia judiciária, ou seja, atividade policial repressiva (judicial) ao crime e de auxílio à justiça penal (investigação cientifica do crimes).Confunde-se também a necessidade de polícia fardada (e até de disciplina e hierarquia) com a necessidade de ser militar a sua formação (cultura) profissional.



A POLÍCIA CIVIL OU MILITAR?!

É naquela função-polícia (a preventiva) que o mundo moderno vem impondo uma segmentação (jamais divisão, duplicidade), ou seja, a polícia fardada, ostensiva (policiamento modular, de controle de tumultos...). Este segmento policial fardado, existente no mundo inteiro, tal sua necessidade hodierna, contudo nada tem a ver com as Forças Armadas (forças armadas p/a defesa externa), salvo o controle do quantitativo de armas e homens, por motivos obvio (não de natureza policial).Os militares são por destinação histórica, profissional e legalmente, voltados para a guerra (ruptura da convivência pacifica entre nações), daí porque o vocábulo militar (do latim militare =combatente na guerra) é incompatível com a com o conceito de polícia (função ou corporação) e mais que isto, a vocação e o adestramento (máxime o psicossocial) profissionais de um policial hão de ser antíteses das do militar.

A violência bélica (não há guerra sem violência, nem as ditas "santas"), o tipo de confronto, essencialmente de muita mortandade, eis que o extermínio do inimigo é o meio da vitória militar (daí seu treinamento para estas situações limites), tudo isto distancia a árdua missão profissional do militar do ofício policial, cujo mister é prevenir e reprimir (não o homem, mas o crime do homem), exatamente por estar inserido em contexto diametralmente oposto ao do militar, violências em geral e o crime em especial, atuando necessariamente e por princípio profissional entre dois parâmetros: o máximo respeito aos direitos humanos de todos do espectro social e menor taxa de conturbação (descrição operacional) ao derredor e de risco a sua própria segurança (a bravura aqui não é a mesma do militar, simplesmente porque não há guerra, sequer por força de expressão).

É bem por isso que a polícia só esta autorizada a usar da violência como último recurso dos muitos que a habilidade profissional pode lhe garantir. Nem mesmo em regimes onde a pena de morte é legalizada, pode-se imaginar o policial (cuja opção profissional é de enfrentar o crime, tanto quanto o médico a doença com todos os riscos a isto inerente) como agente exterminador do criminoso, senão do crime; este sim o alvo imediato e principal do policial, de vez que o criminoso só o é subseqüente e derivadamente. Mesmo nos regimes penais mais cruéis, menos civilizados, sempre se abandonou a violência, quando se alcançou a convicção de que a criminalidade não se reduzia por tais meios. É urgente, pois, acabar-se com a cultura militar da polícia, eis que todos os chamados atributos militares que devem estar no policial não são exclusividades do militar: hierarquia/denominação dos posto, disciplina, vigor físico, fardamento, mobilidade operacional/ordem unida...).Assim, o escoteiro, a guarda noturna de antanho, a polícia rodoviária, entre outras instituições, sempre usaram fardas e buscaram, mais ou menos, aquelas demais características organizacionais, sem jamais se confundirem com militar.

O policial é um profissional do Direito, tanto quanto o juiz, o advogado, o promotor de justiça, jamais um profissional da guerra. Não se trata de extinguir, senão as impropriedades que vão desde as denominações até a cultura corporativa; mas eliminar a causa (e não o mero efeito) da incompatibilidade, da divisão redutora de potencial. Não é, pois, simples caso de comando único (o governador é hoje o comandante único), trata-se de reforma mais técnica e eficiente, ainda que menos cômoda.

Bem se vê, que tanto a atual Constituição Federal como as leis regentes da matéria carecem de firme decisão política de caráter técnico-reorganizacional, que não pode se deixar influir por interesses corporativos (neste caso sempre muito fortes). Não há razão (sensata razão), senão argumentos só aparentemente úteis, para a estratégia militar interferir no âmago da estratégia policial, a ponto de determinar a existência de uma "polícia" militar. Em regime democrático, sob o império do Estado de Direto, não há espaço para este desvio profissional, ainda tão sedimentado entre nós, agora já mais por incúria administrativa que por razões políticas.

O despropósito gerencial é tão grande quanto a entrega do comando de um batalhão de infantaria (Batalhão de Policia do Exército, p.ex.) a um delegado de polícia, como o é também a entrega da secretária da segurança pública não a um profissional do ramo (um delegado). A confusão (con+fusão) entre segurança pública e a segurança nacional (menos da nação ou do Estado e mais de governos insustentáveis politicamente) gerou uma polícia sem vocação policial e perigosamente deturpada (porque desvinculada de suas razões jurídico-sociais).Uma polícia mais bélica (mesmo a civil) que técnica, mais afeita à "ciência" militar que à ciência criminológica; daí as chacinas policiais, os enfrentamentos bélicos (extermínio não do crime, mas do criminoso cujo recrutamento é mais rápido e farto do ocorre com a polícia ceifada nesta "guerra" insana e ineficaz e estupidamente explorada pela TV) que emergiram somente agora (e basicamente em SP e RJ) e graças a um trabalho de extrema relevância pública da TV brasileira, mas que sempre existiram, mais ou menos, como subcultura, por todo o país (é a insegurança nacional direcionada p/ certos segmentos da sociedade brasileira).

Por outro lado, o Dec-Lei nº 667, de 02/07/69 e o Decreto nº 88.777, de 30/09/83, ao que parece recepcionados pela nova ordem constitucional, apresentam, no mínimo, duvidosa orientação técnica especifica quando estabelecem que a PM é "responsável pelo policiamento ostensivo, fardado, planejado pelas autoridades policiais competentes..." e quando neste último Decreto especifica estes tipos de policiamento: "ostensivo geral, urbano ou rural; de trânsito, florestal e de mananciais, rodoviário e ferroviário, nas estradas estaduais; portuário; fluvial e lacustre; de radiopatrulha terrestre e aérea; de segurança externa dos estabelecimentos penais do Estado...", ora não há qualquer eivo de atividade militar neste rol de segmentos da polícia.

Com efeito, temos policias rodoviárias e ferroviárias (estaduais e federais, art.144, §§ 2º e 3º CF/88), fardadas e de atuação ostensiva e que são organizadas a partir da disciplina e da hierarquia (traços marcantes tambem de muitas organizações absolutamente civis) e, por certo, modeladas a partir das Forças Armadas e que, inobstante, não são corporações militares. Ademais, exigem revisão os §§ 4º e 5º, do art. 144, da CF/88, também resultado da maternal acolhida de todos e tudo na gestação da nossa Carta Magna. Misturou-se, ali, afazeres institucionais do segmento fardado da polícia, o policiamento ostensivo e de preservação da ordem pública - funções estas eminentemente civis, porque policiais por natureza - com afazeres excepcionais (excedentes da função policial) das tropas militares.

Vale dizer, convivemos com o conflitos quando impossível a unidade e onde isto é possível acabamos por gerá-los porque dividimos. É sintomático a concorrência, os conflitos (até no DF, reconhecidamente com boas ‘policias’, já tivemos há anos atrás tiroteio entre polícia militar e civil) ou quando menos uma subliminar malquerença entre as "policias" (civil e militar).Todavia o controle de grandes distúrbios e tumultos que superem a capacidade operacional da polícia local (em seu segmento fardado especializado), inclusive e sobretudo os que envolvam a própria polícia (corpo armado) serão afazeres, manu militari, excepcionais e sempre por solicitação dos governos locais, das forças federais (guarda nacional/federal, brigada federal, a partir da federalização das PMs, ou partes delas) vinculadas à Ministério militar (ou mais adequadamente ao da Defesa).Todavia a conveniência geral recomenda que tais forças federais não sejam direta e imediatamente as Forças Armadas, mas sim tropas de choques (quiçá a PM de choque de hoje, como alternativa àquela federalização total), que assim são mais militares que policiais (como a Gendarmerie/Min.Defesa francês; os Carabineiros, arma pertencente ao Exército italiano, ambas com núcleos nas grandes províncias).Esta missão já é militar, como vimos, desde Roma (pretorianismo) e ultrapassa o conceito preciso de polícia (restrição de direitos...) e é bem a caráter das tropas de segurança das Forças Armadas.

O tênue equilíbrio entre ambas corporações policiais (civil e militar), cujas atribuições não são cindíveis, é, na melhor das hipótese, eterno exercício de delicada tolerância mutua e de sublimação de conflitos. Um PM em sua missão "exclusiva" de policiamento ostensivo e de preservação da ordem pública (função policial e não militar) terá quase sempre que encerrar tal missão não no seu batalhão, mas na delegacia policial, onde encontrará um civil (de formação profissional bem diversa) que como autoridade policial (na processualística penal) poderá não satisfazer aos anseios deste militar condutor do preso (muitas vezes às duras penas); formalizar ou não o flagrante; tipificar ou não um fato como este ou aquele crime; ou o que é mais belicoso dar voz de prisão a um PM (e até o inverso é perigoso). Numa academia de polícia é bem sensível, sobretudo para o professor de fora destas corporações, a deletéria concorrência (quem é mais autoridade?; Quem é mais polícia?) entre "as policias".

Só a duplicidade de recursos gastos já seria forte argumento à unidade de serviço público tão sensível à paz social. Teríamos, assim, uma só polícia estadual, suprimindo-se os impróprios adjetivos civil e militar, gerando no povo e nos policiais nova mentalidade de eficiência profissional. É patético constatarmos, em meio a nossa penúria de recursos em geral, que temos, em cada Estado, três academias (da PM, da Policia Civil e do Bombeiro), dois hospitais (quase sempre deficitários), dois comandos da mesma segurança pública (o chefe/diretor de polícia civil e o Comandante geral da PM e até já vimos dois secretários de Estado) idem quanto ao armamento, às viaturas e aos helicópteros; enquanto isso falta, até na capital paulista, material de escritório nas delegacias.

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Sobre o autor
Luiz Otavio O. Amaral

advogado, professor de Direito da Universidade Católica de Brasília, autor de obras e ensaios jurídicos

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

AMARAL, Luiz Otavio O.. Violência e crime, sociedade e Estado. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 3, n. 27, 23 dez. 1998. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/945. Acesso em: 22 nov. 2024.

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