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Para o direito civil, o que é responsabilizar?

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Apesar de se ter como evidente a insuficiência da função de reparação de danos em uma sociedade de riscos, os juristas ainda relutam em assumir a prevenção como um de seus escopos.

Na etimologia do termo responsabilizar, buscada por Michel Villey, está o vocábulo respondere, que por sua vez nos remete a spondere e responsor. Isto é, com spondere, eu prometo. Com responsor, eu respondo a essa promessa. Para o filósofo francês, em seu sentido mais ético trata-se de um verbo essencialmente vocacionado ao futuro. Isso porque,lidée de se tenir garant du cours dévénements, indica, sobretudo, a necessidade de evitar a produção de danos ao Outro[1].

Segundo a definição corriqueira dos mais tradicionais verbetes brasileiros, responsabilizar pode se referir a dois momentos, significando designar responsabilidade a (futuro), e pôr a responsabilidade em (passado). Exemplificando com a lição do dicionário Aurélio, responsável é quem está obrigado a justificar (a outras pessoas, à sociedade) suas próprias ações vindouras, e ainda, quem foi apontado como causa de algo[2].

Tanto na filosofia de Villey quanto nos glossários de nossa língua o termo tem um sentido norteado ao futuro ser responsável pela conduta que adotaremos , e um desdobramento dirigido ao passado ser apontado como causa de um dano em virtude daquela responsabilidade.

A resposta (responsor) à promessa (spondere) pode se dar, assim, de duas maneiras: a) agindo de forma prudente, de modo a evitar os danos (la responsabilité pour ce qui est à faire, a resposta em seu sentido mais ético, segundo Villey); b) reparando as consequências danosas de nossos atos (la responsabilité pour ce qui a éte fait, comme imputation causale des actes commis[3]).

Natural seria conjugá-las. É dizer, fazer incidir a coerção da norma para direcionar os indivíduos ao comportamento esperado e, caso descumprido esse mandamento, fazê-los arcar com as consequências advindas de sua falta. Ter-se-ia, assim, uma responsabilidade pela ação e outra pelo dano daquela consequente.

No entanto, quando se vai aos manuais de direito civil, o sentido dirigido ao porvir é decotado, e o vocábulo de que se trata recebe acepção estrita. O termo é definido pela doutrina com referência ao pretérito, significando unicamente a imputação causal do dever de reparar o dano (b). Responsabilidade civil, dirá o jurista quase automaticamente, é obrigação de indenizar[4].

E se o indagarmos acerca dessa decalagem entre o pleno sentido do verbo e sua concepção jurídica, se lhe perguntarmos o motivo pelo qual a responsabilidade civil não age diante da conduta ilícita e antes que o dano se produza, ele dirá, não sem certo constrangimento: porque assim o é há muito tempo; porque a evolução histórica do direito civil condenou a culpa e sua punição à abolição constante; porque o progresso civilizacional engessou o controle de comportamentos no âmbito do direito penal[5].

Esses são fortes condicionamentos que acometem a disciplina. Inobstante a percepção da fratura entre a realidade danosa da sociedade pós-moderna[6] e o texto positivado que consagra o instituto sob bases reparatórias, tais preconceitos ainda põem névoa sobre uma mudança de paradigma, já em curso. Trata-se do movimento que busca devolver à responsabilidade civil sua aptidão normatizadora.

O instituto, hoje, vê-se em crise justamente porque, apesar de se ter como evidente a insuficiência da função de reparação de danos em uma sociedade de riscos[7], os juristas ainda relutam em assumir a prevenção como um de seus escopos, aquela que hoje talvez deveria ser sua função protagonista. Tem havido uma nítida opção por incorporar de forma velada os necessários instrumentais voltados à repressão de ilícitos.

Faz-se urgente, por isso, em nome da eficácia da disciplina, bem como da segurança jurídica, pôr-se às claras os princípios velhos (garantia da vítima) e novos (prevenção de danos) que hoje devem guiá-la, debatendo, minuciosamente, as críticas à assunção da tarefa de contenção dos comportamentos antissociais pela responsabilidade civil. Só assim se pode demonstrar que estas amarras não têm razão de ser. Consequência natural será a necessidade de discutir o campo que deve restar iluminado por cada um desses princípios, bem como os impactos da revisão dos fundamentos do instituto nos pressupostos que o acionam.


  1. VILLEY, Michel. La responsabilité à travers les âges. Paris: Economica, 1989, p. 75-77.
  2. HOLANDA FERREIRA, Aurélio Buarque de. Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa. 5ª ed., 2014, e-book.
  3. VILLEY, Michel, op. cit., p. 75.
  4. Assim definem o instituto, hoje, Rodolfo Pamplona e Pablo Stolze; Maria Helena Diniz; Sílvio de Salvo Venosa; Carlos Roberto Gonçalves, dentre muitos outros. Todos estes autores têm suas respectivas obras citadas ao final deste trabalho. Não à toa, José Aguiar Dias, com alguma resignação, há muito aponta que já não é de responsabilidade civil que se trata, se bem que haja conveniência em se conservar o nomen juris, imposto pela semântica: o problema transbordou desses limites. Trata-se, com efeito, de reparação de dano. DIAS, José de Aguiar. Da responsabilidade civil. 11. ed. rev., atual. e aum. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p.18.
  5. Catherine Thibierge, em interessantíssima introdução acerca do tema, simula uma conversa entre um leigo e um jurista na tentativa de livrar a análise vindoura dos condicionamentos jurídicos sobre o assunto. No diálogo concebido pela autora, Cândido, o leigo, começa indagando ao jurista: o que significa ser responsável? E o jurista define: significa responder pelos danos causados, é um dever de reparação. E Cândido replica: mas se tu és responsável pelo dano causado, por que é necessário deixar que o dano se produza para então falar em responsabilidade? Não somos responsáveis pelas nossas ações? Não somos responsáveis pelos interesses de que depende a vida humana, pela incolumidade das paisagens, pela pureza do ar e da água, pela saúde coletiva e por tantos outros bens? E o jurista reage: tu falas de uma responsabilidade muito abrangente, filosófica, política, ecológica, sanitária...o que seja. A responsabilidade civil não é assim tão larga, ela tende notadamente a versar sobre a compensação dos danos. E Cândido intervém, já um tanto inquieto: tu te satisfazes com uma noção tão estrita do termo? E o jurista, agora já um tanto constrangido, objeta: mas é assim que os juristas entendem faz dois séculos. E Cândido retruca: bom, mas desde então as coisas não mudaram? Não temos conhecimento hoje de que certos danos são demasiadamente graves para esperar a reparação? Não é essa uma questão que nos interroga de maneira cotidiana? Não achas tu que os juristas deveriam contribuir para restituir o pleno significado à noção de responsabilidade? E o jurista, acanhado, contesta: mas isso vai contra o texto do código civil. E Cândido assevera: não é hora de mudá-lo? Não achas que o jurista tem razões hoje para olhar no sentido da etimologia do termo? E o jurista retorque: mas isso é grandioso, seria uma revolução. E Cândido finaliza: eis uma revolução que parece necessária à qualidade de nossas vidas, ao respeito ao meio-ambiente e à saúde coletiva (THIBIERGE, Catherine. Libres propos sur lévolution du droit de la responsabilité: vers un élargissement de la fonction de la responsabilité civile? Paris: Revue trimestrielle de droit civil, 1999, p. 561). Essas objeções opostas pelo jurista de Catherine Thibierge, bem como as demais citadas no corpo deste texto, merecerão abordagem aprofundada no tópico 2.2 do presente trabalho.

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Sobre o autor
Marcos Augusto Bernardes Bonfim

Pós-graduado em Direito das Famílias e Sucessões pela Academia Brasileira de Direito Constitucional. Mestre em Direito das Relações Sociais pela Universidade Federal do Paraná.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BONFIM, Marcos Augusto Bernardes. Para o direito civil, o que é responsabilizar?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 26, n. 6717, 21 nov. 2021. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/94521. Acesso em: 2 nov. 2024.

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