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Reflexões sobre a prescrição civil à luz da Lei nº 11.280/2006

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04/02/2007 às 00:00
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6. PRESCRIÇÃO, RENÚNCIA DO DEVEDOR E REVELIA

Antes da entrada em vigor da Lei 11.280/2006 era defeso ao juiz declarar ex officio a prescrição, exceto quando para socorrer incapaz e em feitos de natureza não patrimonial. Dessa forma, a perseguição da declaração da prescrição ficava a cargo do demandado que, dentre outros argumentos de defesa, poderia lançar mão dessa exceção substancial tendente a abreviar o curso do feito.

Contudo, salvaguardava-se ao demandado, com fulcro no art. 191 do Código Civil [22], a possibilidade de renunciar ao instituto da prescrição já consumada em sede de defesa, de forma tácita ou expressa, na hipótese de se desejar realizar o direito do autor, mediante composição ou ainda, poderia rechaçar a tese por este edificada, provando, em análise meritória, que a tese inicial não merecia guarida por parte do judiciário.

Ressalte-se que a lei antiga previa a possibilidade do demandado alegar em sua defesa matérias que entendesse pertinentes e facultava a este a possibilidade de não lançar mão deste instituto, caso sua intenção fosse perseguir o julgamento de mérito por quaisquer outros fundamentos trazidos pelo artigo 269 do Código de Processo Civil.

Podemos afirmar, pois, que a renúncia da prescrição por parte do demandado abre caminho para que ele conquiste um julgamento que aclare o não acolhimento do pedido do autor da demanda, o que indubitavelmente lhe proporciona maior conforto moral, haja vista que a chancela estatal seria lançada sobre a inviabilidade daquela pretensão reclamada e não sobre um aspecto que reúne condições – única e exclusivamente – no campo técnico, muito embora ambas as situações recebam a prestação jurisdicional com análise de mérito.

A nosso ver, a Lei 11.280/06 ao prever a possibilidade do juiz conhecer de ofício a prescrição, em verdade retira do demandado a possibilidade de trazer à lume a rejeição do pedido do autor, de modo que sob este prisma nosso entendimento envereda pela negativa que se dá ao réu de lhe distribuir a justiça de forma a alcançar a pacificação social, finalidade precípua do processo.

Ousamos, pois, nesta linha de raciocínio, interpretar a nova lei como retrocesso no campo de defesa vez que ao autor da demanda é facultado o direito de alegar em desfavor do demandado toda sorte de argumentos relativos a situações que, em tese, reclamam amparo judicial, e mesmo que totalmente desprovidas de fundamento jamais seriam dirimidas, posto que qualquer alegação por parte do demandado sucumbiria ao instituto da prescrição e sua declaração ex officio.

Não buscamos com a presente argumentação fincar nosso entendimento em posição diametralmente oposta à evolução do direito, ao contrário, entendemos salutar todo vanguardismo legislativo tendente a acelerar o curso dos feitos, pois entendemos que a justiça célere reconquista, junto ao destinatário do provimento jurisdicional, a crença que há muito deu lugar à insegurança, contribuindo para a falência do sistema judiciário de nosso país.

Mas da mesma forma que somos fortes no sentimento de renovação e modernização legislativa, não podemos coadunar com a reforma que tolhe do demandado seu poder dispositivo ou o direito à ampla defesa, impedindo que o réu esgote as vias probatórias com a finalidade de clarificar a inexistência do direito vindicado pelo autor, vez que somos do entender que a distribuição da justiça não se afina com abreviação do curso do feito de ofício e envolvendo matéria puramente técnica.

Conquanto pareça restar como inócua a alteração legislativa no que tange à renúncia da prescrição, consoante alguns possam argumentar, evidente que de nada ela adiantará na hipótese de reconhecimento ex officio no início do processo. De igual forma, mesmo que se aguarde a regular triangulação da relação processual para oportunizar a eventual prática de tal ato, poderemos nos deparar com outra situação inusitada, a inércia do réu.

Imagine-se a situação em que o juiz, ao despachar a inicial, relegue a declaração de prescrição a um segundo plano e busque a triangulação da relação processual com vistas à participação do réu em contraditório, assinalando prazo para a resposta e possível renúncia à prescrição.

Regularmente citado o réu e assim integrado à relação processual, sua inércia ante o ônus de se defender poderá acarretar a aplicação dos efeitos da revelia, mormente quando tratar-se de direitos patrimoniais. Entretanto, poderá ocorrer situação onde o réu, ciente de sua obrigação para com o autor, entenda por bem deixar transcorrer in albis o prazo para resposta para, posteriormente, honrar a obrigação mediante depósito judicial. Conclusos os autos, o juiz reconhece a prescrição e profere sentença resolvendo o mérito.

Nesta hipótese, muito embora tenha o réu ficado desobrigado de cumprir a obrigação, tal desobrigação se deu em virtude não de seu interesse ou aspiração, mas pelo fato do Estado ter se substituído na sua vontade, abreviando o curso do feito e impedindo a satisfação, por parte do réu, do direito vindicado pelo autor, naquele processo.

Em que pese competir ao juiz o conhecimento de ofício de preliminares relativas aos pressupostos processuais e condições da ação (CPC, art. 301, § 4º) [23], sob o argumento de tratar-se de matéria de ordem pública, se o Estado se substitui na vontade do réu em matéria e cunho eminentemente patrimonial, de forma a impedir o cumprimento voluntário de sua obrigação legal em meio à relação jurídica processual, em verdade vem a fomentar o sentimento de injustiça tanto no autor quanto no réu que, inclinado a cumprir a obrigação não pode fazê-lo por óbice oposto pelo Estado-juiz.


7. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Faz-se mister uma análise contextual da Lei 11.280/2006 ante a celeuma que se instaurou acerca da ofensa aos preceitos científicos que regem a matéria da prescrição e a inovação legislativa. Muito embora pareça que à luz do direito material o instituto da prescrição substancialmente pareça o mesmo, visto que jamais fora modo de extinção de obrigações, evidentemente que os reflexos processuais decorrentes do reconhecimento ex officio poderão resultar em efeito similar.

Mesmo que não se altere o conceito de prescrição civil, o novo texto do § 5º do artigo 219 do Código de Processo Civil, de acordo com o entendimento e conveniência do magistrado quanto ao momento de pronunciamento, poderá afetar sua natureza de exceção substancial, retirando do devedor a possibilidade de utilizá-la como defesa. Como já argumentado, a razão de ser a prescrição caracterizada como exceção tem fundamento na jus.com.br/revista/texto/8455">segurança jurídica e na estabilidade social, de forma a proteger o devedor dos efeitos lesivos que o tempo impõe à viabilidade de provar a inexistência ou a satisfação do débito.

Por conseqüência, se por um lado se diz ser inócua a alteração legislativa, por outro indubitavelmente retira o caráter de exceção substancial da prescrição, em especial face a possibilidade de seu pronunciamento de ofício no início do processo, antes que este se constitua em contraditório, tornando ineficaz o disposto no artigo 191 do Código Civil, uma vez que, no respectivo processo, não será possibilitado ao devedor renunciar à prescrição, restando-lhe a alternativa de fazê-lo extrajudicialmente.

De igual forma, a não ser que a entendamos que prescrição e decadência se equipararam, mesmo ante regular citação e inércia processual do réu, impossível será a aplicação dos efeitos da revelia, o que demonstra ser um grande contra senso, face restrição ao poder dispositivo do réu, bem como à disponibilidade inerente aos direitos patrimoniais.

Compete, assim, aos juristas, e em especial aos magistrados quando pronunciarem de ofício da prescrição, a tomada de posicionamentos claros quanto à interpretação e abrangência da norma, bem como a exploração das possibilidades hermenêuticas que possam contribuir para minorar seus eventuais efeitos lesivos. Nesse contexto, valemo-nos dos ensinamentos do saudoso mestre Miguel Reale, que com magnitude lecionava: "Nada mais errôneo do que, tão logo promulgada uma lei, pinçarmos um de seus artigos para aplicá-lo isoladamente, sem nos darmos conta de seu papel ou função no contexto do diploma legislativo. Seria tão precipitado e ingênuo como dissertarmos sobre uma lei, sem estudo de seus preceitos, baseando-se apenas em sua ementa..." [24]


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.

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VENOSA, Silvio de Sálvio. Direito Civil Parte Geral, 4ª ed., São Paulo: Atlas, 2004.


Notas

01 Prescreve o texto do § 5º do artigo 219 do Código de Processo Civil alterado pela Lei 11.280/2006: O juiz pronunciará, de ofício, a prescrição.

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02 O artigo 194 do Código Civil revogado pela Lei 11.280/2006 assim expressava: O juiz não pode suprir, de ofício, a alegação de prescrição, salvo se favorecer absolutamente incapaz.

03 MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de Direito Civil. São Paulo: Saraiva, 1994, v. I., p. 286.

04 GAGLIANO, Pablo Stolze. PAMPLONA FILHO, Rodolfo, Novo Curso de Direito Civil, 8ª ed., São Paulo: Saraiva, 2007, v. I, p. 476.

05 VENOSA, Silvio de Sálvio. Direito Civil Parte Geral, 4ª ed., São Paulo: Atlas, 2004, p. 636

06 AMORIM FILHO, Agnelo. Critério Científico para Distinguir a Prescrição da Decadência e para Identificar as Ações Imprescritíveis. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 836, p. 733/763, 2005.

07Op. cit., p. 475.

08Op. cit., p.629.

09 O texto original do § 5º do art. 219 CPC: Não se tratando de direitos patrimoniais, o juiz poderá, de ofício, conhecer da prescrição e decretá-la de imediato.

10 SILVA, Ovídio A. Batista da Silva; GOMES, Fábio Luiz Gomes. Teoria Geral do Processo Civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p.133.

11 TEIXEIRA, Silvia Maria Benedetti, O Instituto Jurídico da Prescrição com a Vigência da Lei 13.280/2006. Revista IOB de Direito Civil e Processual Civil, São Paulo, v. 44, p. 18, nov/dez. 2006.

12 CARREIRA ALVIM, José Eduardo. Teoria Geral do Processo, Rio de Janeiro: Forense, 8ª ed., 2.003, p. 8.

13 DINAMARCO, Candido Rangel. Instituições de Processo Civil. 3ª ed. São Paulo: Malheiros, 2003, v. I, p. 300.

14 THEODORO JR., Humberto. Distinção Científica entre Prescrição e Decadência. Um Tributo à obra de Agnelo Amorim Filho. Revista dos Tribunais, Sâo Paulo, v. 836, p. 57, jun. 2005.

15Op. cit., p. 189.

16Op. cit., p. 190.

17 CINTRA, Antonio Carlos de; GRINOVER, Ada Pelegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria Geral do Processo, 19ª ed. São Paulo: Malheiros, 2.003, p. 274.

18 Art. 193 do Código Civil: A prescrição pode ser alegada em qualquer grau de jurisdição, pela parte a quem aproveita.

19 Os pareceres dos relatores na Câmara dos Deputados e no Senado foram favoráveis ao projeto de lei, invocando razões de economia e celeridade processual.

20 CÂMARA, Alexandre Freitas. Reconhecimento de Ofício da Prescrição: Uma Reforma Descabeçada e Inócua. Revista IOB de Direito Civil e Processual Civil, São Paulo, v. 43, p. 116, set/out. 2006.

21 THEODORO JÚNIOR, Humberto. Prescrição – liberdade e dignidade da pessoa humana. Revista Dialética de Direito Processual, São Paulo, n. 40, p. 69, jul. 2006.

22 Art. 191 do Código Civil: A renúncia da prescrição poderá ser expressa ou tácita, e só valerá, sendo feita, sem prejuízo de terceiro, depois que a prescrição se consumar; tácita é a renúncia quando se presume de fatos do interessado, incompatíveis com a prescrição.

23 § 4º do art. 301 do CPC: Com exceção do compromisso arbitral, o juiz conhecerá de ofício da matéria enunciada neste artigo.

24 REALE, Miguel. Lições Preliminares de Direito. 21ª ed. São Paulo: Saraiva, 1994, p.286.

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Sobre o autor
André Luis Camargo Mello

pós-graduando em Direito Processual Civil pelas Faculdades Integradas de Ourinhos (FIO), professor de Teoria Geral do Processo, Direito Processual Civil e Prática Processual Civil das Faculdades Integradas de Ourinhos (FIO), advogado, coordenador de Assuntos Jurídicos da Prefeitura Municipal de Ourinhos (SP)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MELLO, André Luis Camargo. Reflexões sobre a prescrição civil à luz da Lei nº 11.280/2006. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1313, 4 fev. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/9465. Acesso em: 16 abr. 2024.

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