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"Na forma da lei", compete à Justiça do Trabalho processar e julgar outras controvérsias decorrentes da relação de trabalho

13/02/2007 às 00:00
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Está tramitando pela Câmara dos Deputados o Projeto de Lei n° 6.542/2005, que regulamenta o inciso IX do artigo 114 da Constituição Federal, para dispor sobre competências da Justiça do Trabalho referentes à relação de trabalho.

          Está tramitando pela Câmara dos Deputados o Projeto de Lei n° 6.542/2005, cuja ementa expressa: "regulamenta o inciso IX do artigo 114 da Constituição Federal, para dispor sobre competências da Justiça do Trabalho referentes à relação de trabalho, e dá outras providências". (grifei)

          O inciso IX do artigo 114 da Constituição Federal diz que compete à Justiça do Trabalho processar e julgar outras controvérsias decorrentes da relação de trabalho, na forma da lei, mas isso não quer dizer que a expressão "na forma da lei" está se referindo às "outras controvérsias", nem à "relação de trabalho" e, se houver limites para o exercício da competência da Justiça do Trabalho, eles estarão no próprio Texto Constitucional, não estarão em leis ordinárias.

          A expressão "na forma da lei" merece ser interpretada, considerando-se a possibilidade de alguma lei infraconstitucional ser capaz de restringir a eficácia e a aplicabilidade do inciso IX do artigo 114 da Constituição Federal.

          PEDRO LENZA[1] apresenta lição sobre a eficácia das normas constitucionais de eficácia contida e das normas constitucionais de eficácia limitada (in verbis e com os grifos no original):

          "As normas constitucionais de eficácia contida ou prospectiva têm aplicabilidade direta e imediata, mas possivelmente não integral. Embora tenham condições de, quando da promulgação da nova Constituição, produzir todos os seus efeitos, poderá a norma infraconstitucional reduzir a sua abrangência.

          Ao contrário do que ocorre com as normas constitucionais de eficácia limitada, como será visto no item seguinte, em relação às quais o legislador infraconstitucional amplia o âmbito de sua eficácia e aplicabilidade, no tocante às normas constitucionais de eficácia contida, ao contrário, percebemos verdadeira limitação (restrição) à eficácia e à aplicabilidade.

          A restrição de referidas normas constitucionais pode se concretizar, não só através de lei infraconstitucional, mas, também, em outras situações, pela incidência de normas da própria constituição, desde que ocorram certos pressupostos de fato, como, por exemplo, a decretação do estado de defesa ou de sítio, limitando diversos direitos (arts. 136, §1º, e 139 da CF/88).

          Além da restrição da eficácia das referidas normas de eficácia contida tanto por lei, como por outras normas constitucionais, conforme visto acima, a restrição poderá se implementar, em outras situações, por motivo de ordem pública, bons costumes e paz social, conceitos vagos cuja redução se efetiva pela Administração Pública.

          Enquanto não materializado o fator de restrição, a norma tem eficácia plena.

          Como exemplo lembramos o art. 5º, XIII, da CF/88, que assegura ser livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer. Ou seja, garante-se o direito ao livre exercício profissional, mas uma lei, como exemplo, o Estatuto da OAB, pode exigir que para nos tornarmos advogados deveremos ser aprovados em um exame de ordem. Sem esta aprovação, infelizmente, não poderemos exercer a profissão de advogado, sendo apenas bacharéis em direito. O que a lei infraconstitucional fez foi reduzir a amplitude do direito constitucionalmente assegurado. Outros exemplos, ainda, podem ser constatados nos incisos VII, VIII, XV, XXIV, XXVII, XXXIII do art. 5º; 15, IV; 37, I; 170, parágrafo único, etc. Uma dica: normalmente, assegura-se um direito, garante-se algo, podendo haver a sua restrição "nos termos da lei". Esta formulação, quase sempre (mas não é uma regra absoluta: CUIDADO) indica estarmos diante de norma de eficácia contida. Como vimos, outras formas de restrição podem ocorrer, não só fixadas em lei infraconstitucional!"

          "Normas constitucionais de eficácia limitada são aquelas normas que, no momento em que a Constituição é promulgada, não têm o condão de produzir todos os efeitos, precisando de uma lei integrativa infraconstitucional. São, portanto, de aplicabilidade mediata e reduzida, ou, segundo alguns autores, aplicabilidade diferida.

          Devemos salientar que, ao contrário da doutrina norte-americana, José Afonso da Silva, no mesmo sentido de Vezio Crisafulli, observa que as normas constitucionais de eficácia limitada produzem um mínimo efeito, ou, ao menos, o efeito de vincular o legislador infraconstitucional aos seus vetores.

          Nesse sentido, José Afonso da Silva, em sede conclusiva observa que referidas normas têm, ao menos, eficácia jurídica imediata, direta e vinculante já que: a) estabelecem um dever para o legislador ordinário; b) condicionam a legislação futura, com a conseqüência de serem inconstitucionais as leis ou atos que as ferirem; c) informam a concepção do Estado e da sociedade e inspiram sua coordenação jurídica, mediante as atribuições de fins sociais, 7proteção dos valores da justiça social e revelação dos componentes do bem comum; d) constituem sentido teleológico para a interpretação, integração e aplicação das normas jurídicas, e) condicionam a atividade discricionária da Administração e do Judiário; f) criam situações jurídicas subjetivas de vantagem ou desvantagem. Todas elas, em momento seguinte concluiu o mestre (op. cit. p. 262), possuem eficácia ab-rogativa da legislação precedente incompatível (Geraldo Ataliba diria "paralisante da eficácia destas leis", sem ab-rogá-las – nosso acréscimo) e criam situações subjetivas e simples e de interesse legítimo, bem como direito subjetivo negativo. Todas, enfim, geram situações subjetivas de vínculo".

          O mestre do Largo São Francisco divide-as em dois grandes grupos: normas constitucionais de princípio institutivo (ou organizativo) e normas de princípio programático.

          As normas de eficácia limitada, declaratórias de princípios institutivos ou organizativos (ou orgânicos) contêm esquemas gerais (iniciais) de estruturação de instituições, órgãos, ou entidades. Como exemplos podemos citar os arts. 18, §2º; 22, parágrafo único; 25, §3º; 33; 37, XI; 88; 90, §2º; 91, §2º; 102, §1º; 107, parágrafo único; 109, VI; 109, §3º; 113; 121; 125, §3º; 128, §5º; 131; 146; 161, I; 224...

          Já normas de eficácia limitada, declaratórias de princípios programáticos veiculam programas a serem implementados pelo Estado, visando a realização de fins sociais (art. 196 –direito à saúde; 205 – direito à educação; 215 – cultura; 218, caput – ciência e tecnologia; 227 – proteção da criança.....)."

          No caso do inciso IX do artigo 114, a expressão "na forma da lei" aparece para preservar a competência de outros órgãos do Judiciário, o que acaba por restringir a eficácia e aplicabilidade do quanto disposto pelo inciso em comento, não se podendo falar que tal expressão está a reclamar normatividade ordinária futura.

          Há dispositivos capazes de restringir a eficácia e a aplicabilidade do inciso IX do artigo 114, mas eles terão de ser normas materialmente constitucionais e de eficácia plena, que sofrem aplicação direta e imediata, pois o inciso IX do artigo 114 se sobrepõe às disposições de leis formalmente constitucionais. Vejamos:

          PEDRO LENZA (op. cit. p.81 e 82) informa sobre normas constitucionais de eficácia plena:

          Normas constitucionais de eficácia plena e aplicabilidade direta, imediata e integral são aquelas normas da Constituição que, no momento em que esta entra em vigor, estão aptas a produzir todos os seus efeitos, independentemente de norma integrativa infraconstitucional. Como regra geral criam órgãos ou atribuem aos entes federativos competências. Não têm necessidade de ser integradas. Aproximam-se do que a doutrina clássica norte-americana chamou de normas auto-aplicáveis (self-executing, self-enforcing ou self-acting).

          José Afonso da Silva destaca que as normas constitucionais de eficácia plena "...são as que receberam do constituinte normatividade suficiente à sua incidência imediata. Situam-se predominantemente entre os elementos orgânicos da Constituição. Não necessitam de providência normativa ulterior para sua aplicação. Criam situações subjetivas de vantagem ou de vínculo, desde logo exigíveis".

          Como exemplo, lembramos os arts. 2º; 14, §2º; 17, §4º; 19; 20; 21; 22; 24; 28, caput; 30; 37, III; 44, parágrafo único; 45, caput; 46, §1º; 51; 52; 60, §3º; 69; 70; 76; 145, §2º; 155; 156; 226, §1º, todos da CF/88."

          Citando MARIA HELENA DINIZ, PEDRO LENZA (op. cit. p.87) traz o pensamento da doutrinadora sobre as normas constitucionais de eficácia plena:

          normas constitucionais de eficácia plena

: contêm "...todos os elementos imprescindíveis para que haja a possibilidade da produção imediata dos efeitos previstos, já que, apesar de suscetíveis de emendas, não requerem normação subconstitucional subseqüente. Podem ser imediatamente aplicadas. Consistem, por exemplo, nos preceitos que contenham proibições, confiram isenções, prerrogativas e que não indiquem órgãos ou processos especiais para sua execução". Exemplos: arts. 1º, parágrafo único; 14, § 2º; 17, §4º; 21; 22; 37, III; 44, parágrafo único; 69; 153; 155; 156 etc." (grifei)

          Para efeitos de aplicabilidade e eficácia, a norma esculpida no inciso IX do artigo 114 da CF/88 apenas encontrará restrição na competência que o próprio Texto Constitucional atribuiu para outros órgãos do Poder Judiciário, sem exigência de atividade legislativa futura que defina "as outras controvérsias" ou que determine qual "relação de trabalho" está contemplada na competência da Justiça do Trabalho.

          Observamos que ao invés de o Texto Constitucional dizer que a Justiça do Trabalho é competente para processar e julgar outras controvérsias decorrentes da relação de trabalho, ressalvado o disposto nos artigos 102, 105, 108 e 109, a Carta Magna preferiu usar a expressão "na forma da lei" em substituição a tais ressalvas, exceto quando se referiu expressamente ao artigo 102, I, "o", no inciso V do artigo 114.

          Quando ocorre exigência de atividade legislativa infraconstitucional futura e que diga respeito à competência atribuída aos órgãos do Judiciário, a Constituição Federal parece ser clara e precisa, informando e vinculando o legislador, como nos seguintes casos (com meus grifos):

          Art. 121. Lei complementar disporá sobre a organização e competência dos tribunais, dos juízes de direito e das juntas eleitorais.

          Art. 124. À Justiça Militar compete processar e julgar os crimes militares definidos em lei.

          Parágrafo único. A lei disporá sobre a organização, o funcionamento e a competência da Justiça Militar.

          Art. 125. Os Estados organizarão sua Justiça, observados os princípios estabelecidos nesta Constituição.

          § 1º - A competência dos tribunais será definida na Constituição do Estado, sendo a lei de organização judiciária de iniciativa do Tribunal de Justiça.

          Assim é que, atendendo ao comando Constitucional esculpido no artigo 125, §1°, e sem se distanciar do quanto disposto pelos demais artigos da Lei Maior que tratam da competência dos órgãos do Poder Judiciário, a Constituição Mineira, por exemplo, expressa em seu artigo 106, I, que compete ao Tribunal de Justiça, além das atribuições previstas nesta Constituição: I - processar e julgar originariamente, ressalvada a competência das justiças especializadas, trazendo nas alíneas "a" a "i" as matérias atribuídas ao Tribunal de Justiça de Minas Gerais.

          Para processar e julgar quaisquer outras controvérsias decorrentes de qualquer relação de trabalho, independentemente de regulamentação ordinária ulterior, a Justiça do Trabalho é a competente, competência cuja eficácia e aplicabilidade serão restringidas pela simples observância da competência atribuída por lei materialmente constitucional a um outro órgão do Poder Judiciário.

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          Os oito primeiro incisos do artigo 114, desde a entrada em vigor da Emenda Constitucional nº 45, produzem todos os efeitos essenciais, relativamente aos interesses, comportamentos e situações, que o legislador constituinte, direta e normativamente, quis regular, e o IX, quando sofrer restrição quanto à aplicabilidade e à eficácia, será pela incidência de normas que já se encontram no Texto Constitucional, não fora dele, e, simultaneamente, que digam respeito à competência que a própria Carta Magna atribuiu a esses outros órgãos.

          Tomemos o inciso V do artigo 114, que diz ser a Justiça do Trabalho competente para processar e julgar os conflitos de competência entre órgãos com jurisdição trabalhista, ressalvado o disposto no art. 102, I, "o", para que percebamos que tal ressalva não lhe tirará a eficácia plena, enquanto não materializado o fator de restrição disposto na ressalva, uma vez que não se faz expressa remissão a alguma legislação futura, apenas se resguardando a já existente competência originária do STF, tal e qual a expressão "na forma da lei" do inciso IX do mesmo artigo, que não reclama atividade legislativa ordinária futura, apenas põe a salvo a competência de outros órgãos do Judiciário, sentindo-se restringido em sua eficácia pelas normas materialmente constitucionais, que lhe servirão de fator de restrição no momento em que materializado.

          A expressão "na forma da lei" faz referência a uma situação presente, pois não está expresso na Lei Fundamental que compete à Justiça do Trabalho processar e julgar outras controvérsias decorrentes da relação de trabalho, que a lei estabelecer, ou que a lei regular, ou que a lei permitir, ou que a lei fixar, ou que a lei dispuser, etc.

          Por exemplo, controvérsia outra, decorrente da relação de trabalho e não citada nos incisos I a VIII do artigo 114, como quer o inciso IX, surgirá entre trabalhador e tomador de serviços, certamente, quando aquele tiver conhecimento de que este descontava seus vencimentos, mas não repassava os valores descontados para a Previdência. No entanto, esse trabalhador não poderá ver o tomador de serviços condenado pelo ilícito na Justiça do Trabalho.

          Ricardo Antonio Andreucci[2] nos explica o porquê (são meus os grifos):

          "Como bem ressalta Alberto Silva Franco (Código Penal e sua interpretação jurisprudencial; parte especial, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, v. 2, p. 2780), "na hipótese da denominada apropriação indébita previdenciária, o empresário não recebe do trabalhador a contribuição social destinada à previdência, posto que o empresário, quando paga o salário, já desconta aquela contribuição, dela não tendo o trabalhador disponibilidade. Isso significa que o importe dessa contribuição social permanece sempre em poder do empresário e, portanto, quando efetua sua transferência para a previdência, o valor da contribuição sai do próprio ativo da empresa. Destarte, se o empresário não perde a propriedade do dinheiro destinado à contribuição previdenciária, não há cogitar da aplicabilidade, no caso, de um delito patrimonial clássico, como a apropriação indébita. Quem efetivamente desconta do salário a contribuição social tem, a partir desse momento, a obrigação, imposta por lei, de transferi-la à previdência e, se não a repassar ou não a recolher, descumpre esse dever legal (...)"

          E, mais adiante, ANDREUCCI esclarece acerca de a quem compete, "na forma da lei", processar e julgar a controvérsia suscitada:

          "A competência para o processo e julgamento dos crimes de apropriação indébita previdenciária é da Justiça Federal (art. 109, IV, da CF). Nesse sentido:

          "Processual Penal. Conflito negativo de competência. Apropriação indébita de contribuição previdenciária. Se o delito cometido, em tese, lesa interesse ou bem de autarquia federal, competente para o processamento do feito é a Justiça Federal. Conflito conhecido, competente a Justiça Federal, o suscitante" (STJ, CComp.32036/MG, Rel. Min. Felix Fisher, DJ 18.12.2002, p.234).

          Entretanto, inexistindo lesão ao INSS, como no caso de falsificação das guias de recolhimento, a competência é da Justiça Estadual. Nesse sentido a Súmula 107 do STJ: "Compete à Justiça Comum Estadual processar e julgar crime de estelionato praticado mediante falsificação das guias de recolhimento das contribuições previdenciárias, quanto não ocorrente lesão à autarquia federal".

          Vem à balha, então, que, uma lei materialmente constitucional atribuiu a competência para a Justiça Federal Comum, materializando-se o fator de restrição disposto na expressão "na forma da lei", embora a controvérsia decorra de uma relação de trabalho, isto é, passe por uma relação de trabalho, transcorra no curso de uma relação de trabalho, aconteça em meio a uma relação de trabalho, afastando a competência da Justiça Obreira e, para isso, não se precisou de lei ordinária futura.

          De fato, na controvérsia acima suscitada, a relação de trabalho serve apenas como meio para a prática do delito, mas não há relação de direito entre o tomador de serviços e o trabalhador, isto é, vínculo jurídico entre trabalhador e tomador de serviços, posto que, conforme visto alhures, "na forma da lei" a relação de direito, o vínculo obrigacional, o vínculo jurídico, se estabelece entre o tomador de serviços e o INSS.

          Agora, tomando-se o mesmo fato, se tal trabalhador pleitear na Justiça do Trabalho uma indenização por dano moral, em razão dos descontos e do não repasse à autarquia federal, argüindo afronta ao Princípio da Boa-Fé, que rege qualquer contrato, e alegando, por isso, lesão aos seus direitos da personalidade, poderá exercitar o direito de ação com supedâneo, quer dizer, "na forma da lei", no inciso VI do artigo 114 da CF, levando sua pretensão a julgamento, até obter final decisão, porque, neste caso, embora o dano moral seja apenas decorrente da relação de trabalho, haverá, quanto a ele, vínculo jurídico ex lege entre o trabalhador e o tomador de serviços, afastando-se a competência fixada por lei infraconstitucional da Justiça Estadual (Varas Cíveis).

          A expressão "na forma da lei" serve apenas para por a salvo a competência que a própria Constituição Federal tenha atribuído aos outros órgãos e não para atribuir competência à própria Justiça do Trabalho, posto que, se a relação de direito for a própria relação de trabalho, nos termos dos incisos I a IX do artigo 114, a Justiça do Trabalho será sempre competente.

          Ademais, embora diga que regulamenta o inciso IX do artigo 114 da CF, o Projeto de Lei 6.542/2005 trata das ações que estão inseridas nos incisos I e VI daquele artigo, como a cobrança de comissões por representantes comerciais, cobrança de honorários oriundos de mandatos onerosos, assédio moral, etc.

          Não se diga, por exemplo, que o disposto pelo artigo 39 da Lei 4.886/65, que atribui competência à Justiça Comum para processar e julgar as controvérsias envolvendo representantes comerciais e representadas, ainda é vigente, sobrepondo-se ao artigo 114 da Constituição Federal.

          O Projeto de Lei nº 6.542/2005, está-se a ver, comete uma impropriedade ao dizer que regulamenta algo que não carece de regulamentação.

          Nomes de peso do Direito Brasileiro, como Sergio Pinto Martins[3], por exemplo, pensam o contrário, sustentando a necessidade de lei ordinária para atribuir competência à Justiça do Trabalho e assim nos ensinando o consagrado doutrinador:

          "Os incisos I e IX do art. 114 da Constituição são contraditórios. Se a Justiça do Trabalho é competente para analisar questões relativas a relações de trabalho, não há necessidade de lei para estabelecer a competência para outras controvérsias decorrentes da relação de trabalho (art. 114, IX, da Constituição). Se a situação representa relação de trabalho, novos fatos não precisam ter previsão em lei, pois já estariam enquadrados no inciso I do art. 114 da Lei Maior. Não haveria outras controvérsias a serem reguladas pela lei, Seria, assim, desnecessário, inútil ou ocioso o inciso IX.

          A repetição no inciso IX do art. 114 da Constituição da expressão relação de trabalho pode parecer redundante, mas precisa ser interpretada. Cabe ao intérprete buscar a interpretação que venha a compatibilizar os incisos I e IX do art. 114 da Lei Maior.

          O fato de o inciso I do art. 114 da Constituição ter feito referência a relação de trabalho e o inciso IX do mesmo artigo mencionar outras controvérsia decorrentes da relação de trabalho, na forma da lei é sinal que a disposição do inciso I não é tão ampla assim e tem de ser interpretada conjuntamente com seus incisos. Se toda relação de trabalho está inserida no inciso I não há sentido para a existência do inciso IX.

          Não se interpreta a Constituição aos pedaços, mas no seu conjunto.

          O inciso I do art. 7° da Lei Maior faz referência à expressão relação de emprego. O inciso XXIX do mesmo artigo usa a expressão relação de trabalho para dizer respeito a trabalhadores urbanos e rurais, mas também aos avulsos (art. 7°, XXXIV).

          O constituinte sabe que há diferença entre relação de emprego e de trabalho.

          O verbo abranger contido no inciso I do art. 114 da Lei Maior indica que essa abrangência é o que está nos incisos do art. 114 da Constituição. O que não está nos incisos do art. 114 da Constituição não está abrangido na competência da Justiça do Trabalho. Depende de lei para estabelecê-la."

          Com todas as vênias devidas, não concordo plenamente com tal entendimento, pois o grande mestre parece ter se influenciado pelo conhecimento de que, no texto original da Emenda Constitucional nº 45, a expressão usada no inciso I do artigo 114 era "relação de emprego" e não "relação de trabalho", sendo que essa última expressão só aparecia na redação original do inciso IX do mesmo artigo.

          Não se consegue compatibilizar o inciso I com o inciso IX, ausente a cabeça do artigo, mas sim, para que se busque tal "compatibilidade", presente o caput do artigo 114 em face de todos os seus nove incisos.

          É que, se tomados sozinhos, isoladamente, sem a presença do caput do artigo 114 e dos demais sete incisos, o inciso I e o IX já terão nascido completamente incompatíveis entre si para o mundo jurídico, pois, no inciso I, o legislador se referiu a "ações oriundas da relação de trabalho" e, no inciso IX, fez referência a "outras controvérsias decorrentes da relação de trabalho", e, eis que, o conceito jurídico de "ação" não se confunde com o conceito de "controvérsia".

          "Ação" e "controvérsia", juridicamente falando, são coisas diferentes e, portanto, confrontados de maneira isolada, para sempre os dois incisos serão incompatíveis entre si.

          Exsurge dos incisos I a VIII que a Constituição Federal fez questão de indicar "ações" e fê-lo, ou por meio do uso da expressão "as ações", ou mencionando o nome jurídico das "ações" (mandado de segurança, conflito de competência, execução, etc).

          A Lei Maior parece saber que há diferença jurídica entre "ação" e "controvérsia" e não quis usar a expressão as controvérsias oriundas da relação de trabalho, no inciso I, para que este pudesse ser tomado sozinho e comparado ao inciso IX, nem utilizou a expressão outras ações decorrentes da relação de trabalho, na forma da lei, para que o inciso IX pudesse ser tomado sozinho e comparado ao inciso I, ambos incisos do artigo 114.

          HUMBERTO THEODORO JÚNIOR[4] discorre acerca do conceito de ação (verbis):

          "Daí por que, modernamente, prevalece a conceituação da ação como um direito público subjetivo exercitável pela parte para exigir do Estado a obrigação da tutela jurisdicional, pouco importando seja esta de amparo ou desamparo à pretensão de quem o exerce. É, por isso, abstrato.

          E, ainda, é autônomo, porque pode ser exercitado sem sequer relacionar-se com a existência de um direito subjetivo material, em casos como o da ação declaratória negativa.

          É, finalmente, instrumental, porque se refere sempre a decisão a uma pretensão ligada ao direito material (positiva ou negativa)."

          PAULO LÚCIO NOGUEIRA[5] conceitua ação nos seguintes termos:

          "A ação é um direito público subjetivo dirigido contra o Estado (e não contra o réu) para obter um julgamento. Trata-se de um direito autônomo, abstrato, uma vez que nele se contém pedido que pode ficar sem atendimento, ou sem ser satisfeito, pois independe do resultado.

          O titular da ação é um dos sujeitos da relação processual, que age por interesse, enquanto o órgão jurisdicional (ou juiz) também o é, mas age desinteressadamente.

          (...omissis...)

          É um direito público, porque tem como destinatário o Estado-Juiz, perante o qual é deduzido; subjetivo, porque depende da provocação do interessado; abstrato, porque existe em si mesmo, tenha o autor razão ou não; autônomo, porque possui objeto próprio, que é a tutela jurisdicional, e instrumental, porque visa levar sua pretensão a julgamento."

          DEOCLECIANO TORRIERI GUIMARÃES[6] nos informa o conceito de "controvérsia":

          Controvérsia

– Demanda. Debate sobre questão ou opinião divergentes, ou assunto sujeito a contestação. Polêmica.

          O que deve ter motivado o legislador a fazer referência a "ações oriundas", no inciso I, e não a "controvérsias oriundas", foi a certeza de o Direito Processual brasileiro ter adotado a Teoria da Substanciação quanto a causa de pedir, isto é, exige-se a descrição dos fatos dos quais decorre a relação de direito para a propositura da ação (CPC - Art. 282. A petição inicial indicará: III - o fato e os fundamentos jurídicos do pedido), fatos estes que constituem e fazem nascer a relação de que decorre o pedido.

          Como a Carta Magna já impôs, no inciso I, que o vínculo jurídico, isto é, a relação de direito, deve ser, obrigatoriamente, a "relação de trabalho", pois, caso contrário, não teria utilizado a palavra "ações", teria utilizado qualquer outra, será a Justiça do Trabalho competente para as causas "oriundas", isto é, para as originárias natas, para as inerentes, para as naturais, para as que nunca se descolam de uma relação de trabalho (art. 7° da CF, CLT, Código Civil e Legislação Especial Trabalhista), tais como direito à contraprestação (salários, comissões, honorários, cachês, gorjetas, etc...), declaração do vínculo de emprego, direito à segurança e à saúde no ambiente de trabalho, direito à jornada de trabalho prevista em convenções de trabalho, enfim, pedidos oriundos da relação de direito imposta, os de índole trabalhista, e, ainda, será competente para as causas que foram expressas nos incisos II a VIII do mesmo dispositivo legal, sejam elas "oriundas" ou apenas "decorrentes" da relação de trabalho.

          JOSÉ AFONSO DA SILVA[7] comenta sobre o instituto da "ação" trazido pelo inciso I do artigo 114 e a sua importância para o atual Processo do Trabalho:

          "Ações oriundas da relação de trabalho. Aqui está, como dissemos, o fulcro da competência da Justiça do Trabalho. E, para melhor compreendê-la, pode-se recorrer à terminologia da Consolidação das Leis do Trabalho (art. 643): "Os dissídios, oriundos das relações entre empregados e empregadores, bem como de trabalhadores avulsos e seus tomadores de serviços, em atividades reguladas na legislação social, serão dirimidos pela Justiça do Trabalho, de acordo com o presente Título e na forma estabelecida pelo processo judiciário do trabalho". Dissídio oriundo das relações de trabalho é o mesmo que lide trabalhista: uma pretensão resistida. No fundo, essa concepção é melhor, porque as ações trabalhistas não se originam da relação de trabalho, mas dos conflitos de interesse (= dissídios = lides) que surgirem nas relações de trabalho. Mas a utilização do termo "ação" põe abaixo a velha "reclamação trabalhista", aproximando o processo judiciário do trabalho do processo civil. A ação é o instituto mediante o qual se invoca a atividade jurisdicional (aqui, trabalhista) para a solução de uma lesão ou ameaça a direito (art. 5º XXXV)."

          Já no inciso IX, a Constituição Federal fez questão de utilizar a expressão outras controvérsias decorrentes da relação de trabalho, isto é, controvérsias que não são oriundas, naturais da relação de trabalho, mas que passam pela relação de trabalho, com a finalidade de informar o Juiz do Trabalho que, presente a relação de trabalho, a relação de direito pode não ser a própria relação de trabalho, e, assim, "na forma da lei" materialmente constitucional, pode-se ter atribuído a um outro órgão do Poder Judiciário a competência para se processar e julgar tais controvérsias, o que inviabiliza o exercício do direito de ação perante a Justiça do Trabalho, razão pela qual se deve ter usado a expressão "outras controvérsias", afastando-se a expressão "outras ações".

          Disso não se depreende que só o inciso I do artigo 114 da CF/88 tem aplicabilidade e eficácia, sendo desnecessário o inciso IX. Existirão casos em que ele deverá ser aplicado e mostrará sua eficácia, como, por exemplo, num caso em que a mercadoria vendida por um representado se perder nas mãos de seu distribuidor:

          art. 710 do Código Civil - Pelo contrato de agência, uma pessoa assume, em caráter não eventual e sem vínculos de dependência, a obrigação de promover, à conta de outra, mediante retribuição, a realização de certos negócios, em zona determinada, caracterizando-se a distribuição quando o agente tiver à sua disposição a coisa a ser negociada.

          Devedor da mercadoria ao cliente será o representado, mas, não ocorrendo a tradição e perdendo-se a mercadoria nas mãos do distribuidor, poderá surgir uma controvérsia entre este e o seu representado sobre a quem caberá o dever de responder pelo equivalente e mais perdas e danos sofridos pelo cliente (arts. 234 e 237 do Código Civil).

          Estaremos, então, em face de uma relação de trabalho, envolvendo uma controvérsia que não é oriunda de uma relação de trabalho, apenas decorrente de uma relação de trabalho, e que encontrará no inciso IX do artigo 114, e não no inciso I, amparo na Justiça do Trabalho.

          Toda e qualquer ação oriunda da relação de direito que seja a própria "relação de trabalho", é de competência da Justiça de Trabalho, mas nem todas as controvérsias que passarem pela relação de trabalho, que transcorrerem em uma relação de trabalho, que decorrerem da relação de trabalho, serão, e, isso, "na forma da lei", que não está a exigir atividade legislativa ordinária futura para se estabelecer tal competência.

          Quanto à interpretação dada ao verbo abranger, inserto no inciso I do artigo 114 da Constituição Federal, penso que tal verbo não se refere aos incisos do artigo, apenas faz a ligação entre o objeto "as ações" e os possíveis sujeitos do vínculo jurídico "relação de trabalho", quais sejam: entes de direito público externo e da administração pública direta e indireta da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, a significar que tais sujeitos poderão, "na forma da lei", e considerando-se a ADI 3.395/DF, compor um dos pólos de tais "ações".

          Assim, se não encontramos necessidade de lei ordinária para se atribuir competência à Justiça do Trabalho que decorra de mandamento constitucional e, ainda, havendo distinção jurídica entre o termo "ações" e o termo "controvérsias", com as conseqüências que da falta de identidade resultam, creio que o inciso IX do artigo 114 também não reclama atividade legislativa para definir o que venha a ser uma "relação de trabalho".

          O assunto já foi por demais debatido, mas sempre é bom lembrar as diferenças entre relação de trabalho e relação de consumo.

          Paulo Gustavo de Amarante Merçon[7] apresenta as diferenças existentes:

          "Quando um trabalhador, ainda que autônomo, presta serviços a uma empresa, o proveito econômico principal segue na mesma direção do serviço prestado, beneficiando o tomador dos serviços. O trabalho é agregado à atividade produtiva do tomador.

          No fornecimento de serviços de consumo, o proveito econômico relevante segue na direção contrária, favorecendo o prestador dos serviços.

          Tome-se o exemplo da relação jurídica entre o paciente e seu médico, dentista ou terapeuta: como o cliente consome o serviço contratado, o único proveito econômico é auferido pelo prestador; o patrimônio material do consumidor dos serviços não apenas não aumenta, como diminui após o fornecimento do serviço e o pagamento respectivo. O mesmo ocorre quando uma pessoa física vai ao salão de beleza, ou contrata um advogado para representá-la numa causa individual, ou ainda quando entra num táxi e pede ao motorista que a conduza ao aeroporto.

          O inverso se verifica, por exemplo, quando aquele mesmo médico, o dentista ou o terapeuta prestam serviços a uma clínica, ainda que de forma autônoma: tal prestação beneficia economicamente o tomador dos serviços - no caso, a clínica.

          Passemos à análise legal. Quem é, juridicamente, o consumidor de um serviço? O Código de Defesa do Consumidor (Lei n. 8078/90) o define como toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza aquele serviço como destinatário final (art. 2o). E o que vem a ser o serviço objeto de consumo?

          Pelo § 2o do art. 3o, qualquer atividade fornecida no mercado de consumo, mediante remuneração, salvo as decorrentes das relações de caráter trabalhista.

          A dedução é singela: nosso ordenamento jurídico distingue a relação de trabalho da relação de consumo. Para o nosso direito, a relação de consumo não é espécie do gênero relação de trabalho. E nem poderia ser diferente."

          E, de fato, parece já ter se assentado que, na relação de trabalho, o tomador dos serviços explora a mão-de-obra do prestador, ao passo que, na relação de consumo, é o prestador de serviços quem explora uma necessidade do tomador, sendo a Justiça do Trabalho competente apenas para aquela.

          Daí que, como todos os institutos foram bem definidos e bem delimitados pelo inciso IX do artigo 114 da Lei Maior, é forçoso se concluir que inexiste exigência Constitucional de atividade legislativa ordinária para se atribuir competência à Justiça do Trabalho, além de não se poder falar em normatividade futura que defina as expressões "outras controvérsias" e "relação de trabalho".


Bibliografia:

          [1] LENZA. Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. São Paulo: Editora Método, 2006, p. 82 a 84.

          [2] ANDREUCCI, Ricardo Antonio. Direito Penal do Trabalho. São Paulo: Editora Saraiva, 2006, p. 177 e p.179 a 180.

          [3] MARTINS, Sergio Pinto. Direito Processual do Trabalho. São Paulo: Editora Atlas, 2006, p. 105.

          [4] THEODORO JÚNIOR. Humberto. Curso de Direito Processual Civil. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2000, volume I, p. 45 e 46.

          [5] NOGUEIRA, Paulo Lúcio. Curso Completo de Processo Civil. São Paulo: Editora Saraiva, 1995, p. 17.

          [6] GUIMARÃES, Delcleciano Torriei. Dicionário Técnico Jurídico. São Paulo: Editora Rideel Ltda, 1999, p. 217.

          [7] DA SILVA, José Afonso. Comentário Contextual à Constituição. São Paulo: Malheiros Editores, 2006, p. 560.

          [8] MERÇON, Paulo Gustavo de Amarante. Relação de trabalho – contramão dos serviços de consumo. site da ANAMATRA – Associação Nacional dos Magistrados do Trabalho. http://www.anamatra.org.br/opiniao/artigos/ler_artigos.cfm?cod_conteudo=6546&descricao=artigo

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Sobre o autor
Alcio Antonio Vieira

advogado em Barueri (SP), pós-graduando em Direto do Trabalho e Direito Processual do Trabalho pela Escola Superior de Advocacia da OAB/SP

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

VIEIRA, Alcio Antonio. "Na forma da lei", compete à Justiça do Trabalho processar e julgar outras controvérsias decorrentes da relação de trabalho. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1322, 13 fev. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/9489. Acesso em: 22 dez. 2024.

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