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Aspectos culturais do compliance nas organizações empresariais multinacionais

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4 ASPECTOS CULTURAIS NECESSÁRIOS AO EFETIVO COMPLIANCE

É pela ausência de uniformização entre Estados soberanos que se faz necessário, nas multinacionais, que o programa de compliance adeque-se ao país anfitrião, até mesmo para não prejudicar a eficiência operacional da empresa. Ao se instalar em ambientes estrangeiros com os quais possui pouca familiaridade, os riscos são indefinidos, pois passa a lidar com um governo e com uma cultura distinta de sua nação de origem (VAGTS, 1975, p. 69).

A cultura é o conjunto de conhecimentos adquiridos através do convívio social, assim como as manifestações intelectuais e artísticas, que caracterizam determinada sociedade e que resultam em normas, tradições e valores. A partir dessa característica histórica e educacional, é possível identificar o modo como determinada nação vê o mundo e como seus indivíduos se portam em grupo.

Já a cultura de uma empresa, é o que lhe atribui singularidade no ambiente concorrencial e o que define seu modus operandi, pois afeta diretamente o comportamento de seus agentes. Essa cultura organizacional, trata-se do conjunto de hábitos e crenças estabelecidos através de normas, valores, atitudes e expectativas compartilhadas por todos os membros da organização (ÁVILA, 2006, p. 4).

A essência da cultura de uma empresa é expressa pela maneira como ela faz seus negócios, a maneira como ela trata seus clientes e funcionários e o grau de autonomia ou liberdade que existe em suas unidades ou escritórios e o grau de lealdade expresso por seus funcionários em relação à empresa. A cultura organizacional representa as percepções dos dirigentes e funcionários da organização e reflete a mentalidade que predomina na organização. Por esta razão ela condiciona a administração das pessoas (ÁVILA, 2006, p. 4).

Por serem as multinacionais estruturas de poder com história, tradição e cultura própria, seu funcionamento e objetivos nem sempre coincidem com os valores da sociedade em que está inserida (KUCINSKI, 1981, p.19). Porquanto, a subsidiária precisa de liberdade para lidar com a diversidade cultural e não pode ficar à mercê do nacionalismo impositivo, a fim de que os ideias políticos, econômicos, ambientais, morais e demais aspectos ligados à cultura de um povo, não se tornem uma barreira ao eficiente desenvolvimento da empresa.

Inclusive, atrair executivos nacionais do país anfitrião pode ser uma boa opção para driblar a resistência do governo ou da própria população. Aproveitando-se, inclusive, do fato de que não apenas a tecnologia, mas a mão de obra capacitada também está dispersa pelo mundo (ÁVILA, 2006, p. 64).

A importância de incorporar a cultura nacional à cultura organizacional dá-se pelo fato que aquela possui uma influência naturalmente muito maior sob os funcionários do país anfitrião. O impacto da cultura nacional no comportamento dos membros da empresa é muito mais concreto, eis que o desenvolvimento histórico de uma nação, torna a cultura nacional singular dentre as demais (FERRAZ, 2011, p. 4).

Evidente, pois, que a efetividade do compliance em multinacionais depende de uma ponderação de valores culturais que chegue a um denominador comum. Por mais que a matriz queira impor seus valores às suas subsidiárias, a força da cultura nacional sob os colaboradores é predominante, motivo pelo qual é tão importante incorporá-la à cultura ética organizacional para fins de efetividade do programa.

Assim como há resistência no setor empresarial em aceitar o compliance, há também resistência em acolher os traços de outra cultura. Razão pela qual, o programa precisa de autonomia para utilizar tais características culturais em prol do melhor funcionamento de seus mecanismos. Até mesmo para aflorar nos funcionários da subsidiária um sentimento de cultura acolhida, ou até mesmo priorizada (FERRAZ, 2011, p. 4).

Por mais que a cultura seja extremamente dinâmica, sua transformação é complexa porque, naturalmente, varia de acordo com os acontecimentos sociais, econômicos e políticos. Em vista disso, o programa de compliance precisa ser capaz de acompanhar sua dinamicidade com o decorrer do tempo (FERRAZ, 2011, p. 9).

Porém, em multinacionais com uma cultura ética verdadeiramente enraizada, há um conjunto de princípios e valores que são invioláveis independente da cultura a que venha se inserir. Esses valores fundamentais surgem de um ponto em comum necessário à toda organização multinacional e de caráter obrigatório, tornando-se, assim, uma característica inerente à cultura da integridade empresarial.

Isto ocorre justamente pela importância mundial que tais princípios atingem, ou deveriam atingir, haja vista que servem para garantir a sobrevivência empresarial em observância ao mínimo atrelado aos valores morais, aos direitos humanos e ao desenvolvimento de uma sociedade sustentável em Estados soberanos. É em respeito à própria realidade global que se faz necessário a existência de tais valores invioláveis, os quais dificilmente irão intervir de maneira negativa na sociedade anfitriã.

Por mais abstrato e idealizador que possa parecer, esses valores supremos e invioláveis são mais fáceis de vislumbrar quando existe um efetivo programa de compliance na matriz. Quando a ética faz parte da cultura empresarial a ponto de fazer parte de sua história, não importará onde a empresa se instale ou com quem venha a ter relações, pois se manterá íntegra mesmo diante de situações que coloque em xeque seus valores éticos.

A conformidade normativa pode ser considerada um desses valores, pois na atual configuração dos Estados-Nações, os países anfitriões possuem legislação nacional obrigatória, mesmo que não esteja integralmente nos moldes do sistema do civil law. Portanto, em respeito ao Estado soberano, a subsidiária da multinacional deverá se organizar e funcionar em consonância com a legislação interna, agindo dentro dos limites que lhe são impostos.

O cumprimento normativo no Brasil não limita-se à observância das leis desenvolvidas pelo Poder Legislativo, mas também ao cumprimento: (i) das normas morais;[15] (ii) dos regulamentos atinentes às pessoas jurídicas ou suas atividades como é o caso das normas de competência do CADE (Conselho Administrativo de Defesa Econômica); (iii) das regulamentações da Organização Mundial do Comércio (OMC)[16] a que o Brasil é membro; (iv) demais tratados e acordos que é signatário.

A boa reputação também pode ser apontada como um valor inviolável de uma multinacional íntegra. Quando a empresa desenvolve mecanismos de compliance efetivos, a prevenção de riscos garante que os negócios aconteçam de maneira segura e transparente, reafirmando, assim, sua responsabilidade social.

O desenvolvimento empresarial sustentável, através do máximo respeito ao meio ambiente, pode ser considerado um valor que está se tornando inviolável no novo cenário mundial da escassez. Mesmo que em cada país anfitrião os mencionados valores sejam exercidos de modo distinto, não perdem sua importância. 

Porém, do mesmo modo, faz-se necessário que alguns valores e princípios da multinacional sejam flexíveis e passíveis de abdicação, para fins de adequação à realidade nacional e de garantia de um desenvolvimento lucrativo em outros países.

É o caso do princípio da irredutibilidade salarial, que pode se chocar com a busca por mão de obra barata em países periféricos. Logo, a quantia paga aos funcionários da matriz, não interfere no valor pago aos funcionários das subsidiárias, até mesmo para que haja adequação ao mercado concorrencial do país anfitrião:

Um trabalhador da Ford nos Estados Unidos recebe 11 dólares por hora de trabalho, duas vezes mais do que recebe um trabalhador da mesma empresa no México ou na Espanha, e dez vezes o que recebe em média um trabalhador da Ford em São Paulo. Ou seja, o trabalhador paulista da fábrica Ford, em média, precisa trabalhar dez horas para ganhar aquilo que em uma hora ganha seu companheiro norte-americano. Em graus variados, essa discrepncia se repete em todos os estudos comparativos de salários de trabalhadores de unidades diferentes de uma mesma empresa sediada em países diversos. E essa está sendo cada vez mais a razão pela qual as multinacionais procuram instalar unidades produtivas em países periféricos - ao passo que nos primórdios da multinacionalização era a disputa por matérias-primas, principalmente, que levava empresas a criar subsidiárias. (KUCINSKI, 1981, p. 40)

Mesmo que a multinacional não concorde, deve prevalecer o respeito e a soberania à determinados aspectos culturais, é o caso da opção religiosa e das vestimentas comumente utilizadas na região, como a burca para as mulçumanas e o kilt para os escoceses.

Sejam próximos ou distantes geograficamente, o país da matriz e o país anfitrião tendem a ser diferentes culturalmente, mesmo que coincidam em alguns pontos. E é nessa distinção que o programa de compliance da subsidiária irá focar.

O respeito às diversas culturas deve se materializar no dia a dia da empresa, com respaldo em expressa previsão no regulamento, para garantir a efetividade do programa em qualquer contexto social e para tratar a diversidade cultural de forma adequada de modo a potencializar os benefícios que ela pode trazer (ANDRADE et al., 2016, p. 3625).

Logo, o desenvolvimento da cultura ética de prevenção de riscos deve ocorrer em consonância à cultura local. A fim de não proibir condutas que aquela sociedade sequer pratica, ou deixar de penalizar práticas ilegais frequentes naquele meio. Sempre em consonância, porém, com os valores invioláveis da multinacional.

No caso do Brasil, por exemplo, é importante que o programa exclua o costume tradicional gerencial, que centraliza decisões até níveis hierárquicos elevados, com clara incompatibilidade entre responsabilidade e autoridade (VIDEIRA, 2017, p.3), pois a função social da empresa é muita maior que a vontade individual da administração.

Mesmo que independente e autônomo, o programa de compliance mantém-se como membro integrante de uma atividade econômica com interesses próprios, ou seja, no âmbito da multinacional deve trabalhar em prol da conformidade de seus interesses econômicos às regras e aos valores do país anfitrião.

4.1 ANÁLISE DOS CÓDIGOS DE CONDUTA DE MULTINACIONAIS

A fim de tornar perceptível a diferença cultural entre organizações empresariais de países distintos, é oportuno a análise dos Códigos de Conduta das seguintes empresas: (i) VOTORANTIM S.A fundada em 1933, a empresa multinacional brasileira opera no setor de materiais de construção e possui sede em São Paulo/SP, Brasil; (ii) TYSON FOODS, INC fundada em 1931, a multinacional estadunidense opera no setor da indústria alimentícia e possui sede em Springdale, Arkansas, EUA.

No que se refere ao tema dos presentes, cortesias ou hospitalidades oferecidas aos fornecedores, clientes ou terceiros, geralmente o Código de Conduta limita tais práticas através de expressas previsões permissivas e proibitivas. A limitação varia de acordo com a cultura do local em que os negócios se desenvolvem, a fim de evitar o recebimento de vantagem indevida ou práticas de corrupção.

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Quanto ao Código de Conduta da empresa Votorantim, aborda a temática de maneira clara e incapaz de permitir diferentes interpretações. Primeiramente, proíbe expressamente o recebimento de brindes, hospitalidade e entretenimento, com exceção apenas aos brindes institucionais de valor insignificante, como canetas, cadernos e semelhantes (VOTORANTIM, 2017, p. 52). Inclusive, limita o próprio conceito de brindes institucionais, assim considerados aqueles que exibem logotipos da empresa (VOTORANTIM, 2017, p. 52).

Frisa-se, que a única ressalva no referido tema ocorre com relação aos convites para participação em cursos, os quais somente poderão ser aceitos mediante a aprovação formal do gestor/diretor (VOTORANTIM, 2017, p. 52) e após o devido conhecimento do setor de compliance.

Já o Código de Conduta da empresa Tyson Foods, deixa claro o que deve existir por detrás das possíveis trocas de presentes e hospitalidade: fins legitimamente comerciais (TYSON FOODS, 2013, p. 15). E enquanto representante da empresa, o colaborador: (i) não pode receber quaisquer valores monetários ou equivalentes; (ii) não pode receber ou dar presentes ou itens de hospitalidade à funcionário público; (iii) e pode receber ou dar presente ou itens de hospitalidade, desde de que não extravagante, para partido não governamental apenas quando existir finalidade unicamente comercial (TYSON FOODS, 2013, p. 15).

O Código da Tyson também prevê perguntas e respostas para prováveis dúvidas dos funcionários, colaboradores ou quaisquer interessados. Dentre as quais, explica a diferença entre presente e hospitalidade; quem é funcionário público; como e quando é necessário divulgar a troca de presentes ou itens de hospitalidade.

Por mais que haja previsão de situações permissivas e proibitivas, o Código da Tyson mantém como premissa a construção de uma forte integridade no meio empresarial, ao mesmo tempo que exige reiteradamente respeito e observância ao regulamento, a fim de evitar atos de corrupção pública e/ou privada:

Presentes e hospitalidade não são apropriados se criarem uma obrigação, colocarem-no em uma situação em que você parece tendencioso ou quando houve a intenção de influencia em uma decisão de negócio. Devemos evitar o aparecimento de decisões de negócio tomadas com base em presentes ao invés de basearem-se na qualidade e valor dos produtos e serviços (TYSON FOODS, 2013, p. 15).

É notável, pois, quão didático é o Código de Conduta da Tyson, que possui linguagem simples e detalhada, a fim de que todos realmente compreendam como agir em determinadas situações. Inclusive, caso persistam as dúvidas após a leitura do Código, o leitor encontra informações sobre quem contatar, acrescido de um pequeno fluxograma resumo que orienta quem são os responsáveis por responder as perguntas sobre políticas da empresa, seja na falta de um gestor imediato, seja pela preferência por outro responsável.

Por fim, no desenrolar do Código a Tyson deixa clara a existência de subordinação do programa de compliance ao setor jurídico. Uma característica que não é, necessariamente, obrigatória ao seu funcionamento. Porém, sem dúvidas um auxílio jurídico aos mecanismos de compliance pode garantir efeitos satisfatórios, eis que se entrelaçam em sua finalidade de conformidade legislativa.

É possível presumir que, havendo observância aos princípios e valores impostos, na Tyson o assunto pode ser flexibilizado. Ao passo que, o Código da Votorantim proíbe incisivamente a aceitação de quaisquer brindes, hospitalidades ou entretenimentos que não se enquadrem em sua única hipótese de aceitação. Resta evidente, assim, que as previsões de ambos os Códigos se distinguem em limitação.

 Essas distinções decorrem do cenário cultural em que cada empresa está inserida. No caso da empresa brasileira, optou-se por limitar de tal maneira a troca de cortesias, que sequer deixou brechas para interpretações outras, a fim de garantir a inocorrência de práticas de corrupção ou recebimento de vantagem indevida.

Mais que as diferenças culturais, importa frisar as semelhanças, ou seja, os princípios invioláveis ligados à própria essência do programa de compliance, dentre os quais, o mais evidente e perceptível é o cumprimento normativo/legislativo. No desenvolver de ambos os Códigos analisados, a exigência pelo cumprimento da lei se firma como uma norma necessária e obrigatória em qualquer país que a empresa atue, assim como em qualquer situação que envolva a pessoa jurídica.

O Código da Tyson bem desenvolveu o cumprimento legislativo em consonância ao país anfitrião como um valor inviolável, veja-se:

Atuamos em vários países do mundo. Respeitamos as diferentes culturas e cumprimos as leis locais naqueles países. Como as leis e regulamentações alteram-se, o nosso Código será revisado para cumprir as alterações quando possível. Quando há diferenças entre o Código e a lei ou costume local, você deverá aplicar o que estabelece o mais alto padrão. Uma situação poderá ocorrer quando as leis de um país entrarem em conflito com o nosso Código. Se você encontrar tal conflito, consulte o site das políticas internacionais para revisar a política aplica ao seu país ou entre em contato com o Departamento Legal (TYSON FOODS, 2013, p. 5).

Bem como as empresas analisadas, qualquer outra organização empresarial que expanda seus negócios pelo mundo, não possui apenas o dever de sujeitar-se às leis e regulamentos do país anfitrião. É necessário efetuar um real comprometimento e aprimoramento aos termos de padrões e práticas internacionais, como os princípios do Pacto Global das Nações Unidas, a Declaração Universal de Direitos Humanos das Nações Unidas, entre outras melhores práticas de governança (VOTORANTIM, 2017, p. 13).

Agir em conformidade com os preceitos éticos pode, inclusive, significar a saída de uma empresa de determinado país. Por exemplo, uma multinacional instala uma subsidiária em determinado país em que a corrupção faz parte da cultura das empresas, que praticam atos como a sonegação de impostos. Se a multinacional possui uma verdadeira cultura íntegra, não poderá agir do mesmo modo que as demais empresas. Nesse caso hipotético, caso não consiga se firmar no mercado concorrencial, ante a desvantagem financeira perante as demais que não pagam todos os impostos, mais vale a empresa se retirar desse país, do que se corromper para permanecer no mercado.

Portanto, é essencial que haja observância às particularidades culturais do país anfitrião para efetivamente evitar danos passíveis de ocorrer àquela empresa. A multinacional deve desenvolver um programa de compliance específico para a subsidiária, em consonância com suas peculiaridades, características e riscos próprios, a fim de evitar possíveis conflitos normativos ou culturais.

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Sobre as autoras
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

WISTUBA, Fernanda Bueno ; CZELUSNIAK, Vivian Amaro. Aspectos culturais do compliance nas organizações empresariais multinacionais. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 27, n. 6778, 21 jan. 2022. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/95345. Acesso em: 5 mai. 2024.

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