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Análise jurídica sobre o fenômeno do arquivamento indireto no processo penal brasileiro

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4. O FENÔMENO JURÍDICO DO ARQUIVAMENTO INDIRETO E SEUS CONCEITOS

O arquivamento indireto é um fenômeno jurídico, que surgiu por uma criação jurisprudencial do Supremo Tribunal Federal.80

Tal fenômeno manifesta-se quando o Ministério Público, após o recebimento do relatório do inquérito policial e não vislumbrando indícios mínimos de autoria e materialidade para os ilícitos citados na peça inquisitorial, percebe-se sem competência para atuar na ação penal proposta pela polícia judiciária, tornando-se uma busca pelo arquivamento dos atos investigativos e, consequentemente, obstruindo a ação penal em uma seara definida.81

Eugênio Pacelli ensina, de forma a não restar dúvidas:

Também merece registro a hipótese em que o órgão do Ministério Público, em vez de requerer o arquivamento ou o retorno dos autos à polícia para novas diligências, ou, ainda, de não oferecer a denúncia, manifesta-se no sentido da incompetência do juízo perante o qual oficia, recusando, por isso, atribuição para a apreciação do fato investigado.82

A teoria construída pelo STF vem no sentido de buscar um maior controle (em sede de 2ª instância) das possíveis divergências ocorridas entre o Ministério Público e o Magistrado, onde, na ausência do oferecimento da denúncia por parte do titular da ação penal, ao não encontrar indícios mínimos de materialidade e autoria dos ilícitos apontados, fundamenta sua decisão de não requerer a abertura da ação penal por razões de incompetência jurisdicional.83

O juízo, nesse momento, deve “receber tal manifestação como se de arquivamento se tratasse”84. A consequência de tal ato é que “o juiz estaria e estará subordinado à decisão da última instância do Parquet, tal como ocorre em relação ao arquivamento propriamente dito, ou o arquivamento direto”. 85

Nessa ocasião, porém, podem surgir duas situações distintas: 1. Acaso o magistrado concorde com a fundamentação do Ministério Público, deverá declinar de sua competência, enviando os autos à Vara competente, se a ocorrência de qualquer questão a ser solucionada86; 2. Se o juízo discordar do posicionamento do Ministério Público, entendendo pela sua competência jurisdicional “para a apreciação do fato e reconhecendo, assim, a existência de crime (..), a solução da questão apresenta certa complexidade”.87

Isso porque, não podendo o juiz obrigar o Ministério Público a oferecer denúncia, não se apresenta a possibilidade de incidente de exceção de incompetência, o que poderia permitir a solução do dissenso no âmbito do próprio Judiciário. Estabelece-se, como se vê, um conflito entre órgão do Ministério Público e o órgão da jurisdição, não havendo norma legal específica prevendo qualquer solução para o problema.88

Exatamente por ausência de normatização legal que viesse a dirimir a questão acima suscitada, foi que o STF se manifestou, no sentido de balizar minimamente o fenômeno do arquivamento indireto.89

Diante do não oferecimento da denúncia, Eugênio Pacelli nos lembra o que se segue:

Cabe objetar, porém, o seguinte: como o não oferecimento da peça acusatória não constitui provocação da jurisdição, que somente surge com a denúncia ou com queixa, na ação privada, não deveria o juiz, nessa fase, discutir questões ligadas às atribuições ministeriais. Deveria ele deixar a solução da questão ao âmbito do Ministério Público, seja pela concordância entre aqueles envolvidos, seja por meio do conflito de atribuições, que veremos a seguir.90

Sendo assim, fica claro que o juízo deve apenas homologar a ordem advinda do Parquet, não se imiscuindo em questões próprias do Ministério Público, sob pena de quebrar o sistema acusatório.91

4.1. CONCEITO DE ARQUIVAMENTO IMPLÍCITO E AS DIFERENÇAS DO ARQUIVAMENTO INDIRETO

O Arquivamento implícito é outro fenômeno jurídico (que não se confunde com o arquivamento indireto) emergindo no momento que o Ministério Público, de forma imotivada, se omite, deixando “de incluir na denúncia algum dos fatos investigativos do inquérito ou algum dos indivíduos nele indiciados (...)”92, ou quando o Parquet, após os atos investigativos “que indiciou mais de um investigado ou apurou mais de um fato criminoso, postula e tem deferido pelo juiz o arquivamento do procedimento policial, referindo-se, todavia, a apenas um ou alguns investigados ou um ou alguns fatos, sem qualquer menção aos demais”.93

Da mesma forma que o arquivamento indireto, o arquivamento implícito não se encontra normatizado no nosso ordenamento jurídico. Como explicitado acima, a principal característica do arquivamento implícito é a “omissão injustificada do Ministério Público”.94

Já no arquivamento indireto, o que ocorre é o convencimento fundamentado, tanto pelo Ministério Público quanto do magistrado responsável pela ação penal, que, como o inquérito policial não conseguiu apontar indícios mínimos de autoria e materialidade do ilícito investigado, tanto o órgão ministerial quanto o juízo declinam de sua competência para investigar, acusar e processar o réu quanto aos supostos crimes apontados na peça inquisitorial, conforme magistralmente esclarecido por Norberto Avena95:

O arquivamento indireto ocorre na hipótese em que o promotor deixa de oferecer a denúncia sob o fundamento de que o juízo em que oficia e no qual distribuído o inquérito é incompetente para ação penal, requerendo, então, ao magistrado a remessa dos autos respectivos ao juízo que reputa competente. Se o juiz discordar deste pedido de remessa feito pelo Ministério Público, por considerar-se competente, a solução encontra-se na aplicação analógica do art. 28. do Estatuto Adjetivo Penal, a fim de que o Chefe do Ministério Público dê a última palavra.96

Perceba-se que, quando o magistrado discorda do Parquet quanto à declinação de competência para processar a ação penal indicada, a única solução indicada é, por analogia, a aplicação do art. 28. do CPP97, gerando todos os efeitos do arquivamento direto sobre o inquérito policial.

4.2. OS EFEITOS DO ARQUIVAMENTO INDIRETO (POR ANALOGIA COM O ARTIGO 28 DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL)

Como já exposto anteriormente, o inquérito policial será devidamente arquivado no caso de o Ministério Público ficar convencido da não existência de indícios mínimos de materialidade e autoria dos supostos crimes praticados e indicados na peça investigativa, não estando presentes os requisitos para a oferta da denúncia para abertura da ação penal.98

Em regra, da ordem que impõe o arquivamento do inquérito policial, não cabe recurso. As três únicas exceções recursais para o caso do comando para o arquivamento dizem respeito: 1ª) aos crimes contra a economia popular e a saúde (Lei 1.521/51) em seu art. 7º que determina o reexame necessário pelo magistrado; 2ª) a regulação do processo das contravenções, no artigo 6ª da Lei 1.521/51) que permite a interposição de recurso em sentido estrito nos casos envolvendo jogo do bicho e apostas em corridas de cavalos fora de estabelecimentos autorizados e 3ª) quando a ordem para o arquivamento for completamente disparatada, abre-se a possibilidade de impetrar mandado de segurança.99

O principal efeito do arquivamento do inquérito policial é a não oferta da denúncia contra o investigado e, consequentemente, a não abertura de ação penal (seja pública ou privada) contra esse indivíduo. Nesse sentido, o Supremo Tribunal Federal, na súmula 524[100], aponta cristalinamente:

ARQUIVADO O INQUÉRITO POLICIAL, POR DESPACHO DO JUIZ, A REQUERIMENTO DO PROMOTOR DE JUSTIÇA, NÃO PODE A AÇÃO PENAL SER INICIADA, SEM NOVAS PROVAS. ” (SÚMULA 524/STF), Data de Aprovação - Sessão Plenária de 03/12/1969. [101]

Neste diapasão, no caso da ocorrência do fenômeno do arquivamento indireto, “a solução encontra-se na aplicação analógica do art. 28. do Estatuto Adjetivo Penal, a fim de que o Chefe do Ministério Público dê a última palavra”.[102]

Importante salientar que o mandado de arquivamento não opera coisa julgada material, a não ser se o pedido de arquivamento for fundamentado na atipicidade da conduta ou na extinção da punibilidade.[103]

À vista disso, o art. 18. do Código de Processo penal estabelece a possibilidade de novas investigações, in verbis:

Art. 18. Depois de ordenado o arquivamento do inquérito pela autoridade judiciária, por falta de base para a denúncia, a autoridade policial poderá proceder a novas pesquisas, se de outras provas tiver notícia. (DECRETO-LEI Nº 3.689, DE 3 DE OUTUBRO DE 1941. CÓDIGO DE PROCESSO PENAL). [104]

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Posto isto, como menciona Avena:

a retomada das investigações pela autoridade policial e o próprio ajuizamento da ação penal contra os mesmos investigados e em relação aos mesmos fatos condicionam-se a que surjam elementos que produzam modificação no panorama probatório dentro do qual foi concebido e acolhido o pedido de arquivamento do inquérito[105].

No entanto, se faz mister um profundo zelo e atenção nesse ponto, pois, se o arquivamento indireto da peça inquisitorial estiver fundamentado no apontamento de situações fáticas intrincadas ao mérito:

– p. ex., pedido de arquivamento em razão da existência de provas de que o indiciado não concorreu para a infração penal ou na existência de provas de que o fato investigado não aconteceu –, não será possível reavivar o inquérito. Em tal caso, portanto, o arquivamento é definitivo, produzindo sim coisa julgada material.[106]

Quanto à questão das provas novas que venham a ensejar o desarquivamento do inquérito policial, Guilherme de Souza Nucci esclarece que:

Para reavivar o inquérito policial, desarquivando-o, cremos ser necessário que as provas coletadas sejam substancialmente novas – aquelas realmente desconhecidas anteriormente por qualquer das autoridades –, sob pena de se configurar um constrangimento ilegal. Nesse sentido, a Súmula 524 do Supremo Tribunal Federal: “Arquivado o inquérito policial, por despacho do juiz, a requerimento do Promotor de Justiça, não pode a ação penal ser iniciada, sem novas provas.[107].

Diante de todo o exposto, conclui-se que o fenômeno do arquivamento indireto produz todos os efeitos do arquivamento propriamente dito, conforme descrito no artigo 28 do Código de Processo Penal[108], devendo estancar, (a não ser que venham a surgir provas novas contra o investigado) o início da ação penal, seja ela pública ou privada.

4.3. POSICIONAMENTOS JURISPRUDENCIAIS DO ARQUIVAMENTO INDIRETO

No acórdão apontado abaixo, temos a primeira manifestação do STF sobre a criação jurisprudencial do arquivamento indireto.

CONFLITO DE ATRIBUIÇÕES. JUIZ E MP FEDERAL. PEDIDO DE ARQUIVAMENTO INDIRETO (ART-28 DO CPP). A RECUSA DE OFERECER DENUNCIA POR CONSIDERAR INCOMPETENTE O JUIZ, QUE, NO ENTANTO, SE JULGA COMPETENTE, NÃO SUSCITA UM CONFLITO DE ATRIBUIÇÕES, MAS UM PEDIDO DE ARQUIVAMENTO INDIRETO QUE DEVE SER TRATADO A LUZ DO ART-28 DO CPP. CONFLITO DE ATRIBUIÇÕES NÃO CONHECIDO.INQUERITO POLICIAL, MINISTÉRIO PÚBLICO, ARQUIVAMENTO INDIRETO , PEDIDO, CARACTERIZAÇÃO. DENUNCIA, OFERECIMENTO, RECUSA, CONFLITO DE ATRIBUIÇÕES, CONFIGURAÇÃO, INOCORRENCIA. LEGISLAÇÃO PROCESSUAL PENAL, ENTENDIMENTO, APLICAÇÃO PP[035]6, CONFLITO DE ATRIBUIÇÕES, CRIMINAL, JUIZ FEDERAL E MINISTÉRIO.

CA 12 Órgão julgador: Tribunal Pleno Relator (a): Min. RAFAEL MAYER, Julgamento: 01/04/1982 Publicação: 09/12/1983 [109]

Inicialmente foi suscitado pelo Ministério Público um conflito de atribuição, já que o Juízo de 1º grau havia se declarado competente para processar o feito enquanto o Parquet afirmava que não possuía competência para tal. Ao ser instado a se manifestar, o Supremo Tribunal Federal demarcou, pela primeira vez, sobre como deveriam ser entendidos os conflitos surgidos da declinação de competência do Ministério Público e compreensão divergente do juiz natural, ordenando que, nesses casos, fosse entendido como arquivamento indireto, aplicando-se, por analogia, todos os efeitos do art. 28. do CPP, como se arquivamento de fato fosse.[110]

Abaixo, colacionamos um dos acórdãos mais recentes, de relatoria da Ministra Laurita Vaz (STJ), onde de forma translúcida, esclarece os ditames imperativos que dão forma a aplicação do arquivamento indireto:

RECURSO ESPECIAL. PROCESSUAL PENAL. HOMICÍDIOS. DECISÃO DECLINATÓRIA DA COMPETÊNCIA PELO MAGISTRADO DO JÚRI EM ACOLHIMENTO AO PARECER MINISTERIAL. NATUREZA DE ARQUIVAMENTO INDIRETO. CONFLITO DE ATRIBUIÇÕES SUSCITADO PELO ÓRGÃO DO PARQUET NO NOVO JUÍZO. DESCABIMENTO. ART. 10, INCISO X, DA LEI N. 8.625/1993. INAPLICABILIDADE. NÃO CONCORDÂNCIA DO NOVO JUÍZO COM O CONFLITO SUSCITADO. AFIRMAÇÃO EXPRESSA DA COMPETÊNCIA. DETERMINAÇÃO DE OFERECIMENTO DE DENÚNCIA POR CRIME DOLOSO CONTRA A VIDA PELO PROCURADOR-GERAL DE JUSTIÇA. NULIDADE ABSOLUTA. ART. 28. DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL. VIOLAÇÃO. PROCESSO ANULADO INTEGRALMENTE. PRESERVAÇÃO DA DECLARAÇÃO DE EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE FEITA PELO TRIBUNAL DE ORIGEM EM RELAÇÃO À CONDUTA PRATICADA QUANTO A UMA DAS VÍTIMAS. VEDAÇÃO à REFORMATIO IN PEJUS. PRESCRIÇÃO DA PRETENSÃO PUNITIVA. CONSUMAÇÃO NO TOCANTE À VÍTIMA REMANESCENTE. RECURSO ESPECIAL PARCIALMENTE CONHECIDO E, NESSA EXTENSÃO, PROVIDO. DE OFÍCIO, DECLARADA EXTINTA A PUNIBILIDADE DO RECORRENTE, PELA PRESCRIÇÃO DA PRETENSÃO PUNITIVA.

(REsp 1849510/SP, Rel. Ministra LAURITA VAZ, SEXTA TURMA, julgado em 15/12/2020, DJe 18/12/2020).[111]

No acórdão acima apresentado, de forma luminosa, a Ministra Laurita Vaz (STJ)[112] impõe, magistralmente, todo o entendimento jurisprudencial firmado nas cortes superiores quanto à existência do fenômeno do arquivamento indireto, seus limites constitucionais e infraconstitucionais, bem como a aplicação análoga com o art. 28. do CPP com todos os efeitos que daí advém sobre o inquérito policial e seus desdobramentos.

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Sobre o autor
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

OLIVEIRA, Carlos Eduardo Fernandes. Análise jurídica sobre o fenômeno do arquivamento indireto no processo penal brasileiro. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 29, n. 7522, 4 fev. 2024. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/95462. Acesso em: 11 mai. 2024.

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Trabalho de Conclusão de Curso apresentado como requisito parcial à obtenção do grau de Bacharel em Direito do Centro Universitário Estácio do Ceará. Professora Orientadora: Cristiane Dupret. 2021.

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