5.Direito Adquirido, Princípio da Moralidade e Legitimidade Ético-Jurídica da Norma Constitucional sobre Teto Salarial
No caso em exame, mesmo que os benefícios salariais excedentes tenham sido conquistados em momento anterior à atual Constituição, a regra do direito adquirido precisa passar por um processo hermenêutico que leve em consideração os princípios também constitucionais como o da moralidade, da interpretação conforme a Constituição e da supremacia da Constituição e compatível com o sistema jurídico do Estado Democrático contemporâneo.
Isto significa o compromisso do intérprete com o exame da legitimidade ético-política e o caráter de efetiva necessidade do direito individualmente usufruído, em face de uma nova situação jurídica criada por norma constitucional que, por sua natureza, tem eficácia ex tunc e erga omnes.
No campo da validade formal, prevalece a doutrina da supremacia da Constituição, o que torna inadmissível a idéia de se garantir direito anterior individual contra expressa disposição constitucional. Neste sentido a doutrina consultada parece não apresentar divergência.
Segundo o magistério de Jorge Miranda, com a promulgação da Carta Magna, suas normas constitucionais projetam-se sobre todo o sistema jurídico, impregnando-o dos seus valores e critérios e trazendo-lhe um novo fundamento de validade ou de autoridade. [01] Para o constitucionalista português, a subsistência de qualquer norma ordinária anterior à nova Constituição depende de um único requisito: sua conformidade com a nova ordem constitucional. [02] Em conclusão, assinala que a "superveniência da nova Constituição – ou de uma sua revisão – acarreta ipso facto – pela própria função e força de que está investida, o desaparecimento das normas de Direito ordinário anterior com ela desconformes". [03]
Gomes Canotilho, também constitucionalista português não menos conhecido e respeitado em nosso país, refere-se à Constituição como uma lex superior, dotada de autoprimazia e de superioridade normativa. [04] Salienta que a "superioridade normativa da constituição" implica o princípio da conformidade de todos os atos do poder público com as normas e princípios constitucionais: "nenhuma norma de hierarquia inferior pode estar em contradição com outra de dignidade superior – princípio da hierarquia – e nenhuma norma infraconstitucional pode estar em desconformidade com as normas e princípios constitucionais, sob pena de nulidade, anulabilidade ou ineficácia – princípio da constitucionalidade. [05]
Miguel Serpa Lopes entende que não pode haver direito adquirido em face de norma constitucional. Apoiando-se na lição de Gabba, afirma que "uma nova Constituição Política de Estado tira o vigor a todas as leis de pública e administrativas preexistentes". [06] Celso Ribeiro Bastos assinala que qualquer norma ou ato jurídico de natureza infraconstitucional "padecerá do supremo vício de ilegalidade" se contrário à Lei Maior. [07]
José Afonso da Silva pensa de forma semelhante e admite que o direito adquirido não pode prevalecer sobre o interesse coletivo. [08] Para este autor, as "normas que integram a ordenação jurídica nacional só serão válidas se se conformarem com as normas constitucionais". [09]
É verdade que estas vantagens salariais foram conquistadas em conformidade com a lei positiva então vigente ou em decorrência de decisão judicial. Mas, não podem prevalecer em face da nova ordem constitucional instituída em 1988. Se tais benefícios salariais excedentes ao valor do subsídio pago aos ministros do STF, preexistiam à promulgação da atual Constituição, tornaram-se indevidos por disposição expressa da norma contida no inciso XI, do art. 37, da CRFB. Em sua redação original este dispositivo constitucional, com fundamento no princípio da moralidade, já estabelecera o teto salarial da Administração Pública brasileira vinculado à remuneração mensal dos ministros do STF.
Se as referidas vantagens salariais pessoais e excedentes ao teto salarial foram obtidas posteriormente à promulgação da atual CRFB, com muito maior razão são indevidas e nulas de pleno direito. Principalmente, se tais vantagens representam situações jurídicas de caráter pessoal e se foram criadas por leis ou reconhecidas judicialmente para privilegiar seus beneficiários com acréscimos salariais que não foram concedidos aos demais servidores da República.
A nosso ver, e isto no campo da validade meramente formal, a tese do direito adquirido, do ato jurídico perfeito ou da coisa julgada somente pode prevalecer em face de norma constitucional expressamente em contrário, se respaldada, também, por sua validade material, isto é, pela efetiva legitimidade do direito individual, após submetido este ao crivo de sua interpretação conforme a própria Constituição.
Já na esfera de maior relevância e, por isso mesmo, mais complexa, da validade material, cremos que a manutenção de direito individual contra expressa disposição de mandamento constitucional posterior somente poderá ser admitida em nome de princípios como o da igualdade ou da dignidade da pessoa humana, quando absolutamente indispensável à preservação de um bem jurídico fundamental, como a vida, a saúde, a habitação, a educação etc.
Somente assim é que o Direito estará cumprindo sua função social e poderá ser instrumento de realização de uma sociedade mais igualitária e de verdadeiro bem estar social.
6.Direito Adquirido e Irredutibilidade de Vencimentos em Face da Norma Constitucional Fixadora dos Subsídios da Magistratura
No caso do teto e subteto salarial em exame, é preciso considerar que a Constituição Federal assegura ao magistrado brasileiro, bem como a todo o servidor público, o direito individual à irredutibilidade de vencimentos. Quanto aos magistrados, é preciso ressaltar que, mesmo considerando-se o teto e o subteto salarial vigente, estão entre os mais bem remunerados do mundo ocidental. E isto, a nosso ver, é o essencial, em termos de hermenêutica e aplicação do direito justo.
Além disso, se a Constituição garante a irredutibilidade de vencimento – agora, subsídio - não há em seu texto nenhuma norma de garantia expressa em relação a eventuais vantagens remuneratórias, especialmente, aquelas de caráter pessoal. Muitos desses acréscimos aos vencimentos, mesmo que tenham sido obtidos com base em leis ou em decisões judiciais, sempre tiveram um caráter de excepcionalidade, em relação ao regime salarial geral vigente na administração pública brasileira. Estão, por isso mesmo, muito próximos de verdadeiros privilégios salariais incompatíveis com o princípio republicano, que pressupõe igualdade de direitos entre os cidadãos.
Assim sendo, o sentido ético-político e jurídico das normas constitucionais garantidoras do direito adquirido, do ato jurídico perfeito, da coisa julgada e da irredutibilidade de vencimentos precisa ser submetido a um processo hermenêutico que leve em consideração, também, outros princípios constitucionais, de igual ou maior relevância, como o da igualdade republicana, o da moralidade e o da justiça social.
Assim sendo e se, em nome do princípio republicano da moralidade, o Congresso Nacional emendou a Constituição para explicitar a norma originária que já fixava o teto salarial para a Administração Pública brasileira, a questão da remuneração máxima deveria estar solucionada, com a aplicação da norma a todos os servidores e agentes políticos da República, já tão combalida e sangrando por todos os poros de sua já esticada derme financeira.
7.Considerações Finais: O Inafastável Compromisso com a Ética, a Probidade e a Justiça Social na Administração Pública Brasileira
Diante deste quadro hermenêutico realmente obscuro, estamos impedidos de ver solucionada ou, ao menos, definida – não no fundo da caverna imaginada por Platão e ironicamente lembrada pelo presidente do TJSP - mas na superfície normativa da jurisprudência do nosso Tribunal Supremo, a tão discutida quanto necessária questão do teto salarial dos magistrados brasileiros.
Por isso, pareceu sem sentido o teor da declaração da presidente do CNJ e do Supremo Tribunal Federal - ministra Ellen Gracie - logo após o término da reunião do dia 31 de janeiro. Com uma certa dose de euforia, afirmou que os números desmistificam a "lenda urbana", que acreditava em supersalários no Poder Judiciário. Os demais membros do CNJ também pareciam comemorar o que consideravam "um pequeno número de magistrados e servidores com remuneração acima do teto salarial".
Não cremos que possa haver motivo para comemoração. Ao contrário, é triste ver que, no âmbito do Poder Judiciário, convive-se ainda com privilégios e irregularidades salariais. E eram quase 3.000 magistrados percebendo remuneração que contrariava disposição expressa da Resolução 13/06, órgão máximo em matéria de fiscalização e de ação moralizadora do Poder Judiciário brasileiro. O desalento se torna tanto maior quanto se sabe que tudo isto vem sendo feito com afronta à lei e a mandamentos da Constituição Federal.
Para finalizar, queremos deixar claro a nossa crença na importância ético-política e jurídica da moderna doutrina dos princípios constitucionais para assegurar a aplicação dos direitos fundamentais e garantias individuais, em favor dos cidadãos da República. Mas, em contrapartida, é preciso, também, que a mesma motivação de natureza ético-política e a mesma escala hermenêutica seja, também, empregada para assegurar o interesse maior da República, Mater omne civis.
8.Bibliografia
BASTOS, Celso Ribeiro Bastos. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 1999
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Malheiros, 1994.
CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Coimbra: Almedina, 1999.
LOPES, Miguel Serpa. Curso de Direito Civil. Introdução, Parte Geral e Teoria dos Negócios Jurídicos. Rio de Janeiro: 2000, v. 1, 9ª ed. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 1999.
MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional. Coimbra: Coimbra Editora, 2000, t. II, Constituição.
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Malheiros, 1995, 10ª ed.
Notas
01
Manual de Direito Constitucional. Coimbra: Coimbra Editora, 2000, t. II, Constituição, p. 27402
Idem, p. 283.03
Ibidem, p. 289.04
Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Coimbra: Almedina, 1999, 3. ed., p. 1074.05
Idem, p. 1075.06
Curso de Direito Civil. Introdução, Parte Geral e Teoria dos Negócios Jurídicos. Rio de Janeiro: 2000, v. 1, 9. ed., p. 205.07
Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 47.08
Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Malheiros, 1995, 10ª ed., p. 414.09
Idem, p. 50. Sobre a questão, ver ainda: BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Malheiros, 1994, p. 398 e segs.