Capa da publicação A falta de razoabilidade das questões de português elaboradas pela Fundação Getúlio Vargas (FGV) nos concursos públicos

A falta de razoabilidade das questões de português elaboradas pela Fundação Getúlio Vargas (FGV) nos concursos públicos

13/01/2022 às 12:13
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Por que quase todos os candidatos reclamam do nível de cobrança da matéria de português quando a banca é a FGV?

O concurso público é um importante instrumento de seleção aos cargos e empregos públicos, e tem previsão expressa no art. 37 da Constituição Federal, que obriga a Administração Pública a garantir o acesso de forma justa a tais cargos e empregos., o que não tem sido observado pela Fundação Getúlio Vargas quando contratada como banca examinadora em concursos públicos, notadamente no que diz respeito à disciplina de português, conforme as inúmeras reclamações a seguir expostas.

A maioria esmagadora dos candidatos que pretendem uma vaga pela via do concurso público tem extrema dificuldade com as questões de português da Fundação Getúlio Vargas- FGV, banca essa, que em quase todos os concursos em que atua como examinadora, determina um número mínimo de acertos para que as demais matérias também possam ser avaliadas.

Concursos em que a seleção não seja para linguistas ou profissionais da área de letras, ou ainda para aqueles que irão trabalhar diretamente com a edição e interpretação de textos, tal cobrança, como vem sendo feita, não se justifica! Não é razoável, por exemplo, que um candidato ao cargo na área de tecnologia da informação, das ciências exatas, contábeis, segurança ou até mesmo operacional (como serviços gerais), se deparem com questões nas quais não terão a menor ideia de como resolvê-las, mas terão que respondê-las porque fazem parte da avaliação no concurso público, e precisarão dos pontos dela para terem uma boa colocação no certame.

O ensino público da língua portuguesa no Brasil nem de longe viabiliza o acesso de candidatos oriundos de escolas públicas a um cargo público na administração estatal. Em verdade, é totalmente incompatível com o nível de cobrança dessa banca específica. É preciso refletir-se que nem todos os candidatos às vagas tiveram uma boa formação escolar, e mais, que nem todos eles têm acesso a cursinhos preparatórios. Há que se ter em mente que o concurso público é também um meio de se fazer justiça social, e que os princípios da impessoalidade e do acesso ao cargo público, previstos no art. 37, I, da Constituição Federal devem ser observados:

Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte: (...) I - os cargos, empregos e funções públicas são acessíveis aos brasileiros que preencham os requisitos estabelecidos em lei, assim como aos estrangeiros, na forma da lei;.

É preciso começar a falar publicamente sobre isso. A discussão merece ser levada a sério. Há que se mover a situação ao debate político, bem como estar na mira sensível do Poder Judiciário. Providências precisam ser tomadas. Diante das várias outras matérias que o candidato terá que analisar em sua prova, dentro de um curto espaço de tempo, não é razoável que ele seja obrigado a decifrar charadas, subjetividades, chutes, ou até ter que contar com a sorte, já que a FGV cobra raciocínio lógico como se português fosse.

O que se está defendendo aqui é que deve haver uma cobrança justa da matéria, o que, pelo número de reclamações, de há muito não está ocorrendo. Diante de várias outras matérias que precisam ser vencidas pelo candidato, inclusive de conhecimentos específicos para o cargo disputado, a matéria de língua portuguesa não pode ser a vilã do edital. A mais pesada. A mais complicada. Especialmente em se tratando do cargo envolvido. Note-se que o art. 37, II, da CF/88 assim proclama:

II - a investidura em cargo ou emprego público depende de aprovação prévia em concurso público de provas ou de provas e títulos, de acordo com a natureza e a complexidade do cargo ou emprego, na forma prevista em lei, ressalvadas as nomeações para cargo em comissão declarado em lei de livre nomeação e exoneração;

Não se desconhece que o concurso público é para selecionar o candidato com melhor desempenho na prova. Ocorre que os princípios da razoabilidade, da proporcionalidade, da acessibilidade aos cargos públicos, da dignidade da pessoa humana, e mais: o princípio da isonomia, precisam ser rigorosamente respeitados. Acaso é isonômico, cobrar num nível em que quase todos os candidatos não terão a menor chance? Que não compreenderão o que o examinador quer de fato? Isonomia para quem?

Há notória subjetividade na cobrança. Na maioria das vezes, o candidato sequer consegue entender o que o examinador está pedindo! Tudo isso precisa ser pensado, especialmente numa administração que se pretende eficiente. Falta clareza nos enunciados, certeza nas respostas, e quase sempre tem duas alternativas corretas, e o candidato precisa escolher a "mais correta".

É só verificar os comentários em sites especializados em questões de concursos públicos. A reclamação e o inconformismo são quase unânimes! A cobrança de questões com linguagem tão inacessível é incompatível com os princípios legais e constitucionais que regem as seleções públicas. Não é lícito a nenhuma banca direcionar a aprovação em concurso público na qual seja examinadora a uma determinada casta.

O mundo moderno, a administração pública, e mesmo o ordenamento jurídico pautam-se pela simplicidade, clareza e objetividade, o que tem que começar pela seleção do servidor. Até porque, quando empossado no cargo público, ele deverá escrever de forma direta, simples e acessível. Ora, se no exercício do cargo a clareza é que deverá ser o norte, por que na seleção o candidato precisa ser submetido a uma linguagem de tão difícil compreensão, que afeta até a sua autoestima?

A dignidade da pessoa humana precisa ser respeitada, inclusive nesta seara. Torturas psicológicas não podem ser aceitas como normais, apenas sob a justificativa de que se trata de um concurso. Mesmo para escolher os mais bem qualificados, a administração pública precisa se atentar para os princípios e normas jurídicas. Não pode sacrificar a dignidade da pessoa humana, seja por qual pretexto for.

Por que quase todos os candidatos reclamam do nível de cobrança da matéria de português quando a banca é a FGV? O que leva essa banca a continuar sendo tão severa na cobrança? Seria vanglória? Ou ainda, lacração? A fama de ser a mais difícil de todas, ou pura vaidade? Isso é deveras ultrapassado!

É até possível que candidatos gabaritem outras matérias cobradas pela FGV. Mas para gabaritar a prova de português realizada pela banca, o candidato tem que ter uma conexão com o além. Pessoas comuns, que inclusive gabaritam a matéria em outras bancas, não conseguem chegar nem perto do acerto total das questões! Até professores experientes, de cursinhos renomados, têm grande dificuldade na resolução de questões da FGV.

Todas essas constatações não são sem fundamento não! Basta conferir os comentários feitos nos sites especializados em questões de concursos públicos. Basta pesquisar no youtube.

Infelizmente ainda não há lei geral que regulamente o artigo 37 da Constituição Federal no tocante a realização de concursos públicos. Em brilhante artigo publicado no Migalhas em 13.5.2021, o Dr. Agnaldo Bastos esmiuçou a atual situação em que se encontra o lentíssimo andamento legislativo acerca da elaboração da referida norma. Recomenda-se a leitura.[1]

Destarte, o poder público, para o qual são feitas as seleções, precisa estar a par dessa situação, e tomar imediatas providências, agilizando o debate e aprovação da lei dos concursos públicos. Não é razoável se preparar meses (e até anos) a fio, e no final das contas, ter que contar com a sorte em concurso público. A prova não pode ser uma loteria. As questões devem ser objetivas e claras. Português é português, e raciocínio lógico, é raciocínio lógico. São duas matérias diferentes! Alguém avise isso para os examinadores da FGV!

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Vejam-se, dentre muitos, alguns exemplos de questões recentes da banca em que há subjetividade ou duas respostas corretas (as respostas estão destacadas):

1) FGV - 2021 - Câmara de Aracaju - SE - Técnico em Taquigrafia

O gato e o cachorro viviam na mesma casa; um dia, o gato viu comida sobre a pia da cozinha e correu a chamar o cachorro. Trata-se de um segmento narrativo em que as duas ações destacadas mostram, respectivamente, uma relação de:

A - ação / condição;

B - motivação / ação;

C - causa / consequência;

D - condição / ação;

E - consequência / causa.

2) FGV - 2021 - PC-RJ - Perito Criminal - Engenharia Civil

Imaginemos que, um dia, ao chegar a sua casa, alguém encontra a seguinte mensagem na secretária eletrônica: Oi, aqui é a Carmem, e queria dizer-lhe que quinta-feira vou para Paris. Considerando um ato comunicativo normal, entre as coisas que não estão ditas, mas que estão implícitas para que a mensagem faça sentido, a opção correta é:

A - Carmem já falava de Paris;

B - Carmem é pessoa conhecida, mas não íntima;

C - o receptor não identifica a finalidade da informação dada;

D - Carmem deixou recado na quarta-feira;

E - Carmem ligou e deixou uma mensagem por engano.

3) FGV - 2021 - PC-RJ - Perito Criminal - Engenharia Civil

Para que as frases abaixo façam sentido, o leitor deve colaborar com alguma inferência.

A frase em que a inferência dada é adequada ao sentido da frase é:

A - As únicas pessoas normais são aquelas que você não conhece bem / Inferência: todas as pessoas são anormais;

B - O psiquiatra é a primeira pessoa com quem você deve falar depois que começa a falar sozinho / Inferência: os psiquiatras são simultaneamente médicos e loucos;

C - Se você está tentando me deixar louco, chegou tarde / Inferência: eu ficarei louco de qualquer modo;

D - Antes eu era vaidoso, mas agora sou perfeito / Inferência: todas as pessoas podem superar seus defeitos;

E -É melhor morrer de pé do que viver de joelhos / Inferência: as doenças graves levam o melhor de nossa vida.

4) FGV - 2021 - Câmara de Aracaju - SE - Analista Administrativo (coitados dos candidatos que fizeram este concurso)

Um texto jornalístico faz uma apresentação de um novo filme recém-lançado: Indústria Americana começa num dia gelado de dezembro de 2008, perto do Natal, quando uma fábrica da GM fecha as portas em Dayton, Ohio, típica cidade do meio-oeste dos Estados Unidos. Como se não houvesse tristeza suficiente na neve que cai e nos operários que não conseguem conter as lágrimas enquanto despacham os últimos veículos, a música ressalta a melancolia geral, e avisa, lúgubre, que essa não será uma história feliz. E não é mesmo.

O trecho diz que o filme começa quando uma fábrica da GM fecha as portas; isso nos ensina que uma narrativa começa:

A - pelo fato mais importante para o enredo;

B - por algo que chame a atenção dos espectadores;

C - por um acontecimento escolhido para início pelo narrador;

D - por um fato de alta carga emotiva;

E - por fatos desconhecidos do público.

E por aí vai...


Notas

  1. Agnaldo Bastos. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/345438/existe-lei-que-trata-sobre-concurso-publico Acesso em 6.1.2021.

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Sobre o autor
Leonis de Oliveira Queiroz

Mestre em Regulação e Políticas Públicas (Universidade de Brasília - UNB, conceito CAPES 6). Pós-graduação em Direito Público. Graduação em Direito e em Segurança da Informação. Ex- Conselheiro do Conselho Penitenciário do Distrito Federal COPEN/DF. Servidor do Superior Tribunal de Justiça (ex-assessor da Presidência). Advogado licenciado. Autor de diversos artigos publicados em diferentes periódicos e revistas eletrônicas.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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