Sumário: 1.Introdução. 2. Requisitos da extradição. 3. Extradição e prisão perpétua. Histórico das posições do STF 4. O novo precedente da Excelsa Corte. 5. Uma abordagem crítica da decisão 6. Conclusões
Resumo
O Supremo Tribunal Federal, no julgamento da Extradição nº 855, veio a alterar o seu entendimento em matéria de extradição no que concerne à exigência de comutação da pena de prisão perpétua para seu deferimento, impondo o limite de nossa legislação penal à pena a qual o extraditando foi condenado no exterior. O presente artigo visa analisar a jurisprudência até então vigente sobre o tema e abordar de maneira crítica a nova posição da Excelsa Corte.
Palavras-chave:Direito Constitucional – Direito Internacional – Direito Penal – Direito Processual Penal – Direitos e garantias individuais – Extradição – Comutação de penas – Prisão perpétua – Soberania – Supremo Tribunal Federal
1.Introdução
Em matéria de extradição e necessidade de comutação da pena de prisão perpétua por parte do país requerente como requisito do deferimento do pedido, o Supremo Tribunal Federal (STF) até recentemente mantinha a posição, por apertada maioria, que, apesar de ser espécie de pena vetada na Constituição Federal de 1988 (CF/88, art. 5º, inciso XLVII, alínea b), autoriza-se a extradição sem necessidade de compromisso de que fosse imposto o limite de nossa legislação penal (Art. 75 do Código Penal, 30 anos de reclusão), fosse para réu aguardando julgamento ou já condenado.
Este foi o entendimento exarado, entre outras decisões, na Extradição nº 507, requerida pela República Argentina, sendo o primeiro precedente neste sentido a Extradição nº 426, pedida pelos Estados Unidos da América.
Mas, em decisão recente, na Extradição nº 855, requerida pela República do Chile, em caso envolvendo um dos seqüestradores do publicitário Washington Olivetto, o deferimento da extradição foi condicionado à comutação das duas penas de prisão perpétua a que o extraditando foi condenado no país requerente em pena privativa de liberdade não superior a trinta anos de reclusão, o limite da legislação brasileira.
A atenção para o tema nos foi chamada por reportagem da Revista Veja [01], que alertava para os possíveis riscos de tal entendimento fomentar a impunidade no Brasil.
Visa o presente artigo analisar essa recente decisão do Supremo e suas implicações. Cabe, primeiramente, breve estudo acerca dos requisitos para a extradição passiva em nosso ordenamento jurídico. Em seguida cotejaremos as posições do STF, seu posicionamento anterior na matéria e o recente precedente, com uma abordagem crítica do acórdão ora na ribalta.
2.Requisitos da extradição
A extradição é um instrumento de cooperação judiciária entre os Estados em matéria penal. Na definição de Carmen Tibúrcio e Luís Roberto Barroso, consiste na entrega de um indivíduo, que está no território do Estado solicitado, para responder a processo penal ou cumprir pena no Estado solicitante [02].
Francisco Rezek ressalva:
"cuidar-se de uma relação executiva, com envolvimento judiciário de ambos os lados: o governo requerente da extradição só toma essa iniciativa em razão da existência de processo penal – findo ou em curso – ante sua Justiça; e o governo do Estado requerido (...) não goza, em geral, de uma prerrogativa de decidir sobre o atendimento do pedido senão depois de um pronunciamento do Justiça local [03]."
O então promotor de justiça Maurício Augusto Gomes destacou a importância do instituto:
"O surgimento da necessidade internacional de combater a criminalidade, que não mais poderia se restringir aos limites territoriais de cada Estado, vez que a atividade criminosa ganhou intensa mobilidade com o desenvolvimento dos meios de transporte e comunicação, fez difundir o uso da extradição como um dos instrumentos jurídicos mais úteis ao eficiente alcance daquela finalidade [04]".
O mesmo autor acrescenta que seu fundamento principal é a universalidade do direito de punir, do jus puniendi dos Estados, e cita o mestre Bento de Faria: "A extradição assenta substancialmente na necessidade internacional de segurança e de defesa social. É um dever recíproco dos Estados, o qual se define pela assistência mútua que os mesmos se devem, no interesse de todos, para o fim de assegurar com eficiência a prevenção e repressão da delinqüência. [05]"
Há duas espécies de extradição, de acordo com o ângulo abordado. A ativa é a requerida por um Estado a outros dotados de soberania. A passiva é a que se pleiteia a um Estado, tendo o pedido origem em países soberanos diversos. O objeto do nosso estudo serão as regras de extradição passiva do Brasil, ou seja, as normas que regem os pedidos dirigidos ao Estado brasileiro.
A natureza jurídica do pedido extradicional ante o Estado brasileiro, no entendimento do STF citado por Alexandre de Moraes é o que segue: "constitui – quando instaurada a fase judicial de seu procedimento – ação de índole especial, de caráter constitutivo, que objetiva a formação de título jurídico apto a legitimar o Poder Executivo da União a efetivar, com fundamento em tratado internacional ou em compromisso de reciprocidade, a entrega do súdito reclamado. [06]"
Em nosso ordenamento jurídico a extradição é abordada na Constituição Federal, na Lei 6.815/80 (Estatuto do Estrangeiro) e no Regimento Interno do STF.
Segundo o art. 22, XV, da CF/88, compete privativamente à União legislar sobre extradição. A lei vigente sobre o tema é o citado Estatuto do Estrangeiro.
Duas disposições sobre extradição presentes na Carta Magna consistem em direitos individuais, sendo portanto cláusulas pétreas constitucionais (Art. 60, §4º, IV). São os incisos LI e LII do art. 5º.
O pedido de extradição funda-se num tratado entre os dois países envolvidos. Em sua ausência, pode ser concedido com base na reciprocidade, se autorizado na legislação local, no compromisso de que eventual pedido de entrega posterior do país concedente será atendido (art. 76 da Lei 6.815/80).
A competência para processar e julgar pedidos de extradição solicitados por Estado estrangeiro é do STF, segundo o art. 102, I, g), da CF/88. A concessão depende de prévio pronunciamento do plenário do STF sobre sua legalidade e procedência, sendo a decisão irrecorrível (art. 83 da Lei 6.815/80).
Mas a efetiva concessão da medida é da competência exclusiva do Presidente da República, pois cabe a este a manutenção de relações com Estados estrangeiros (art. 84, VII, CF/88), limitando-se a decisão do STF à legalidade do pedido.
A sistemática de uma extradição requerida ao Brasil é um procedimento em duas etapas. O pedido de Estado estrangeiro ao nosso país é encaminhado ao STF, que fará o juízo de delibação (do latim delibare, provar sorrateiramente, tocar com os lábios) do mesmo, sem apreciar o mérito da condenação ou emitir juízo de valor sobre eventuais vícios processuais na origem.
É impossível a extradição se o Supremo Tribunal indeferir o pedido e o Presidente da República mesmo assim quiser efetivá-la, sob pena de violação de uma competência da Excelsa Corte (art. 102, I, g, CF/88).
Autorizada a extradição pelo STF inicia-se a segunda fase, em que o Poder Executivo decidirá sobre sua conveniência. Na existência de tratado de extradição entre o Brasil e o Estado requerente, fica o Chefe do Poder Executivo Federal obrigado a conceder a extradição, se houver o beneplácito do Supremo, sob pena de violar obrigação assumida perante o direito internacional [07]. A discricionariedade do Presidente da República só haverá se o pedido for fundado na reciprocidade.
As causas que impedem a extradição estão elencadas no art. 77, incisos I a VIII, da Lei 6.815/80. Veda-se a extradição: I – tratando-se de brasileiro, salvo se a aquisição dessa nacionalidade verificar-se após o fato que motivar o pedido, ou, segundo o art. 5º, LI, da CF/88, com "comprovado envolvimento em tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, na forma da lei"; II – quando o fato que motivar o pedido não for considerado crime no Brasil ou no Estado requerente; III – quando o Brasil for competente, segundo suas leis, para julgar o crime imputado ao extraditando; IV – quando tratar-se de crime apenado pela lei brasileira com pena de prisão igual ou inferior a um ano (as contravenções cometidas no exterior também não ensejam a entrega); V – quando o extraditando estiver respondendo a processo no Brasil pelo mesmo fato; VI – quando ocorrer a extinção da punibilidade pela prescrição, aferida separadamente tanto na legislação brasileira como na do Estado requerente; VII – na hipótese de crime político (com as exceções ao conceito de crime político dos parágrafos do artigo em tela); VIII – quando o extraditando houver de responder, no Estado requerente, diante de Juízo ou Tribunal de exceção.
A nossa legislação em matéria extradicional exige a comutação em pena privativa de liberdade em algumas hipóteses, previstas no art. 91 do Estatuto:
"Art. 91 – Não será efetivada a entrega sem que o Estado requerente assuma o compromisso:
(...)
III – de comutar em pena privativa de liberdade a pena corporal ou de morte, ressalvados, quanto à última, os casos em que a lei brasileira permitir a sua aplicação."
Essa disposição da Lei 6.815/80 veio em acato à regra já existente ao tempo da Constituição de 1967, vigente quando da edição da lei, vedando certas espécies de pena. A regra era a do art. 153, §11º, alterada posteriormente pela Emenda Constitucional nº 11, de 1978, e proibia a imposição de prisão perpétua, de banimento, confisco ou morte, com exceções.
Em que pese a vedação já existente para a aplicação de prisão perpétua, não se impôs, em se tratando de extradição, a necessidade de comutação desta em caso de sua aplicação pelo Estado requerente.
Sendo o assunto a vedação de algumas espécies de penas, cabe transcrevermos o inciso XLVII, do art. 5º da CF/88. Adiante veremos que ele foi uma das justificativas para a alteração da posição do STF:
"XLVII – não haverá penas:
a)de morte, salvo em caso de guerra declarada, nos termos do art. 84, XIX;
b)de caráter perpétuo;
c)de trabalhos forçados;
d)de banimento;
e)cruéis;"
O mencionado art. 84, XIX, trata de uma atribuição privativa do Presidente da República, a de declarar guerra, no caso de agressão estrangeira, situação que autoriza a aplicação da pena de morte no Brasil.
É pacífico em nossa doutrina e na jurisprudência do STF que não se concederá a extradição para cumprimento da pena corporal e de morte, sendo regra expressa na lei. Ela só ocorrerá com o compromisso do Estado requerente de comutar a pena por outra restritiva de liberdade.
A lei 6.815/80 nunca exigiu que a pena de prisão perpétua a ser aplicada no Estado requerente fosse comutada. Tal levou a interpretações diversas do STF ao longo do tempo, como veremos.
3. Extradição e prisão perpétua. Histórico das posições do STF.
No que concerne à entrega de extraditando no caso de aplicação de pena de morte ou corporal, a posição do STF nunca sofreu alteração, sendo sempre vetada a extradição, até porque há expressa disposição legal, como vimos.
Na hipótese da aplicação da pena de prisão perpétua, a posição do STF alterou-se com o tempo, até culminar na recente decisão que condicionou o deferimento à comutação das penas ao máximo legal previsto no Brasil.
Convém traçarmos um breve histórico.
A primeira posição adotada pelo STF, quando confrontado com a questão, foi a de exigir a comutação da pena de prisão perpétua em pena privativa de liberdade limitada no tempo. Tal se deu no julgamento em conjunto das extradições requeridas pelos governos da Áustria, da Alemanha e da Polônia do ex-oficial da SS alemã, Franz Paul Stangl (Extradições nº 272, 273 e 274).
Tal precedente ficou ementado da seguinte forma:
"(...) 3. Comutação da pena.
a)A extradição está condicionada à vedação constitucional de certas penas, como a prisão perpétua, embora haja controvérsia a respeito, especialmente quanto às vedações da lei penal ordinária. (...)
b)o compromisso de comutação da pena deve constar do pedido, mas pode ser prestado pelo Estado requerente antes da entrega do extraditando."
Essa decisão foi o fundamento dos pedidos de extradição que se seguiram, até o julgamento do americano Russel Wayne Weisse (Extradição n° 426) no STF, quando a Excelsa Corte alterou seu entendimento. No caso, deferiu-se a extradição, sem a ressalva da comutação da pena de prisão perpétua em pena privativa de liberdade. Os principais fundamentos da decisão foram: 1-) impossibilidade de emprestar eficácia transnacional aos direitos previstos em nossa Constituição; 2-) a Lei 6.815/80, art. 91, III, e a maioria dos tratados de extradição vigentes, só impõem aos Estados a obrigação de comutar a pena corporal ou de morte, nada dizendo sobre a pena de prisão perpétua [08].
E essa é a posição que vingou no STF por quase vinte anos, nas decisões tomadas, entre outras, nas extradições n° 439, Relator Ministro Djaci Falcão; n° 469, Relator Ministro Francisco Rezek; n° 472, Relator Ministro Moreira Alves; n.° 486, Relator Ministro Octávio Gallotti; n.° 507, Relator para o acórdão Ministro Ilmar Galvão; n.° 598, Relator Ministro Paulo Brossard; e n° 599, Relator Ministro Néri da Silveira [09].
Merece destaque a ementa da Extradição nº 507, relatada no STF para o acórdão pelo Min. Ilmar Galvão, julgada em 25/09/1991:
"Extradição. Nacional do Estado requerente, que teve prisão preventiva decretada, sob acusação da pratica de tentativa de roubo qualificado, de que resultou vítima fatal. Previsão legal da pena de prisão perpetua. Plena observância dos requisitos previstos em lei e em tratado. Pedido que se defere, sem qualquer ressalva quanto a pena de prisão perpetua, considerada descabida pela jurisprudência do STF, a partir do julgamento da Extr. 426 (4.9.85) e em face da reiteração do texto legal, entre nós, por quase um século, claro e límpido no sentido da necessidade de comutação tão-somente das penas corporal e de morte (Lei n. 2.416/1911, DL n. 394/38, Lei n. 6.815/80)."
Uma das últimas decisões em que essa posição foi adotada, praticamente o canto do cisne desse entendimento, foi na Extradição nº 766, relatada pelo Min. Nelson Jobim, em que se entendeu que: "a circunstância do Estado requerente tratar o fato de maneira mais rigorosa do que o ordenamento jurídico brasileiro, não impede a extradição."
4. O novo precedente da Excelsa Corte
O julgamento da Extradição nº 855, em 26/08/2004, feito relatado pelo Min. Celso de Mello, alterou radicalmente a posição do STF na matéria aqui objeto de estudo.
O chileno Maurício Hernandez Norambuena foi condenado pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo a 30 anos de reclusão, por sua liderança e participação no seqüestro do publicitário Washington Olivetto. Até o momento cumpre pena no presídio de segurança máxima de Presidente Bernardes por este crime. A República do Chile formulou ao Brasil o pedido de sua extradição, julgado no STF. A Corte deferiu o pedido, para entregar o condenado àquele país com a condição de serem comutadas as penas de prisão perpétua em penas de prisão temporária no limite de 30 anos de reclusão, ao critério do Presidente da República sobre a conveniência da entrega.
Segundo o relato da advogada Renata Verano no Chile o acusado participou do assassinato do senador Jaime Guzmán, em abril de 1991 e do seqüestro de Cristián Del Rio, filho do dono do jornal El Mercúrio, entre setembro de 2001 e fevereiro de 2002 e foi condenado a duas penas de prisão perpétua, pela prática de crimes de extorsão mediante seqüestro, formação de quadrilha e tortura [10].
Transcrevo o trecho da Ementa do acórdão em tela que trata da comutação da pena:
"(...)EXTRADIÇÃO E PRISÃO PERPÉTUA: NECESSIDADE DE PRÉVIA COMUTAÇÃO, EM PENA TEMPORÁRIA (MÁXIMO DE 30 ANOS), DA PENA DE PRISÃO PERPÉTUA - REVISÃO DA JURISPRUDÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, EM OBEDIÊNCIA À DECLARAÇÃO CONSTITUCIONAL DE DIREITOS (CF, ART. 5º, XLVII, "b"). - A extradição somente será deferida pelo Supremo Tribunal Federal, tratando-se de fatos delituosos puníveis com prisão perpétua, se o Estado requerente assumir, formalmente, quanto a ela, perante o Governo brasileiro, o compromisso de comutá-la em pena não superior à duração máxima admitida na lei penal do Brasil (CP, art. 75), eis que os pedidos extradicionais - considerado o que dispõe o art. 5º, XLVII, "b" da Constituição da República, que veda as sanções penais de caráter perpétuo - estão necessariamente sujeitos à autoridade hierárquico-normativa da Lei Fundamental brasileira. Doutrina. Novo entendimento derivado da revisão, pelo Supremo Tribunal Federal, de sua jurisprudência em tema de extradição passiva.(...)"
O voto do Ministro Celso de Melo, relator do pedido de extradição, conduziu o resultado do julgamento (oito votos a dois), expondo que a posição adotada pelo Supremo Tribunal Federal se mostra fiel à Constituição do Brasil e reafirma a supremacia do texto constitucional. De acordo com seu voto, "não há como dar precedência a prescrições de ordem meramente convencional (tratados internacionais) ou de natureza simplesmente legal sobre regras inscritas na Constituição que vedam, de modo absoluto, a cominação e a imposição de quaisquer penas de caráter perpétuo (artigo 5º, XLVII, b da CF)" [11].
Esta, portanto, é a nova posição do STF na matéria. Cabe agora tecermos algumas considerações sobre as conseqüências práticas dessa decisão e, data maxima venia, apontar o seu caráter contrário ao direito internacional e ao espírito de colaboração entre os países que rege o instituto da extradição.
5. Uma abordagem crítica da decisão
Sob o risco de parecer alarmista ou inadequado, creio que a decisão do STF precisa de uma imagem forte, que sintetize e caracterize suas conseqüências para o tratamento do instituto da extradição, que ressalte o descrédito que trará ao Brasil como integrante de uma ordem internacional que rejeita a impunidade e que é pela colaboração na repressão aos criminosos que ousam se ocultar da Justiça.
Já é clichê nos filmes a trama em que um ou mais bandidos, após inúmeras agressões à lei em seus países de origem, escolhem como refúgio seguro o Brasil, por muito tempo justa ou injustamente conhecido como um paraíso da impunidade. A película geralmente terminava com os meliantes vestindo camisas floridas, bronzeados e de óculos escuros, tomando drinques em alguma de nossas praias.
Nem é preciso recorrer à ficção. Na vida real tivemos diversos foragidos da Justiça de seus países em nosso território, gratos à hospitalidade brasileira: Josef Mengele, o "médico" dos campos da morte nazistas; Ronald Biggs, o inglês que assaltou o trem pagador; e Franz Paul Stangl, ex-oficial da SS alemã, acusado de assassinato em massa e o pivô das decisões nas Extradições nº 272, 273 e 274, em que o STF não deferiu os pedidos por aplicar-se a prisão perpétua nos países requerentes, como já exposto.
Com a recente decisão do STF na Extradição nº 855, o Brasil mais uma vez se credencia como potencial éden de criminosos, abrindo nosso território para foragidos em busca de impunidade.
Qualquer condenado à prisão perpétua, pelo mero fato de ingressar em território nacional, se aqui for preso e tiver sua extradição pedida, ganhará o direito de cumprir apenas o máximo da pena privativa de liberdade prevista no Brasil (30 anos de reclusão, art. 75 do Código Penal), em que pese não ter sido aqui cometido o crime e nem possuir o extraditando maiores ligações com nosso país.
Por si só, a decisão estimulará a vinda de condenados à prisão perpétua ao Brasil, pois ganharão um beneplácito supremo de reduzir a sua pena a trinta anos de reclusão, caso sejam enviados de volta a seus países.
À primeira vista, do ponto de vista processual, parece correta a posição firmada pelo STF. Chega a soar garantista. Mas sob a ótica do direito internacional é desastrosa. Nossa Constituição, de fato, não admite certas espécies de pena (Art. 5º, XLVII). Mas a Carta Magna é para aplicação em nosso território. E a decisão de não permitir a extradição de condenados na hipótese em discussão transforma o Brasil num censor do ordenamento jurídico dos demais Estados do mundo, uma espécie de "polícia global" cuja missão é recriminar a prisão perpétua, sem tratado ou autorização para tal, e à revelia da ordem internacional. É indevida intromissão em assuntos da ordem interna dos países com os quais o Brasil se relaciona.
Essa leitura radical da Carta Magna transformará o Brasil num pária no que tange à colaboração para a repressão da criminalidade internacional, praticamente um Rogue State em extradição.
Essa não é a intenção da Constituição e nem deveria ser a postura do Brasil. A decisão em tela violou inúmeras disposições constitucionais, como os princípios que regem as nossas relações internacionais (art. 4º), a saber:
"I – independência nacional
(...)
IV – não-intervenção
V – igualdade entre os Estados
(...)
IX – cooperação entre os povos para o progresso da humanidade"
A extradição, ressalte-se, é um instrumento de colaboração internacional, visando evitar a impunidade dos crimes daqueles que se refugiam em território de jurisdição diversa da qual seriam julgados pelo delito. Não deve ser um maneira de controlar e censurar a legislação dos demais países. Mas foi isso que pretendeu o STF, ao olvidar-se, na Extradição nº 855, de que deveria atentar para o aspecto de cooperação da extradição, e não o de, a pretexto de aplicar a nossa Constituição, recriminar o Chile por manter a pena de prisão perpétua em seu ordenamento. Sabem bem os ministros do STF que apoiaram a decisão, que nossa Carta Magna não se aplica em território chileno, terra onde o Sr. Maurício Norambuena seqüestrou e matou antes de homiziar-se nessas plagas.
No caso concreto, é bom que se lembre, vedou-se a extradição sem comutação a pretexto de aplicar inciso do art. 5º da CF/88. Impedir-se-ia tal decisão se fosse lembrado que o art. 5º só se aplica a brasileiros e estrangeiros residentes no país. O Sr. Maurício Norambuena só "residiu" em nosso país no período em que manteve o cativeiro da vítima de seu seqüestro e como hóspede de nosso sistema prisional. Portanto, não havia nada que impedisse a sua entrega ao Chile sem ressalvas.
O principal defensor da posição anterior do STF foi o ilustre ex-ministro Francisco Rezek, que no julgamento da Ext. 429/Alemanha, realizado em 11.12.85, sob a égide da CF/67, afirmou que, se já condenado o extraditando à prisão perpétua, estaria o Supremo "obliquamente comutando pena imposta por justiça estrangeira, o que é grave". Se ainda não condenado, estar-se-ia limitando, "por antecipação, o exercício pleno da jurisdição estrangeira". Em resposta ao argumento de que os direitos e garantias constitucionais são assegurados aos brasileiros e estrangeiros residentes no país, retrucou que esses direitos e garantias são dados "quando se defrontem com autoridade brasileira e não na hipótese em que devam comparecer ante justiça estrangeira, depois de concedida a extradição [12]".
O voto do Min. Rezek é digno de transcrição:
"Aquele argumento comparativo, que já valeu no precedente, tem plena pertinência no caso concreto Se admitirmos que o estrangeiro extraditando, porque residente no Brasil, está cronicamente vestido pelo manto protetor do art. 153 e não pode ser extraditado para cumprir prisão perpétua, estamos obrigados a admitir, por coerência, que ele não pode também ser extraditado para ser julgado por um Juiz singular em crime doloso contra a vida (porque o art. 153, em tal hipótese, garante o júri popular); não pode ser extraditado para ser punido por delito que se apurou mediante quebra de sigilo de correspondência ou de comunicações telefônicas (porque também isto é proscrito pelo art. 153), É extraordinário o alcance que acabaríamos por dar ao art. 153, fazendo-o valer como norma para uma justiça que não está sujeita à soberania desta Constituição, que a nós, somente, nos subjuga".
No julgamento da Extradição nº 426, o leading case da antiga posição do STF, bem ressaltou a ementa do acórdão: "(...) A prisão perpétua é suscetível de abrandamento, ora pelo indulto, ora pelo livramento condicional, como ocorre na Alemanha e na Itália(...)".
A Profa. Carolina Cardoso Lisboa, em que pese esposar da nova posição do STF na questão, antes mesmo desta vir à tona, ao tempo do entendimento antigo bem resumiu o entendimento dos magistrados da Excelsa Corte:
"Assim, entendem os Ministros que não é cabível a imposição da ressalva da comutação da pena de prisão perpétua para a efetivação da extradição, uma vez que não se pode impor uma restrição que a lei brasileira ou os tratados relativos à matéria não impõem, pois isto acarretaria uma extensão transnacional não apenas do nosso sistema constitucional de penas, mas também de todo o sistema penal brasileiro [13]".
No julgamento da Extradição nº 426, o Min. Aldir Passarinho bem ressalvou em seu voto: "entretanto, a situação dos autos é singularíssima. Foi o extraditando condenado à prisão perpétua, foge para o Brasil e pretende obter uma modificação em sua pena à base da tal circunstância. Não creio que em tal hipótese, possa ele se encontrar ao abrigo de nossa proteção".
A Profa. Lisboa acrescenta que o extraditando, nesse caso, não se encontrava no Brasil de maneira regular, onde chegou para evadir-se da condenação já proferida no Estado requerente, não devendo o STF, àquela altura, alterar a pena imposta, cujo cumprimento já se iniciara [14].
Os ministros que julgaram a extradição nº 855, o novo precedente do STF na matéria, justiça feita aos votos vencidos, não atentaram para essa circunstância. O extraditando já havia sido condenado no Chile à duas penas de prisão perpétua, por homicídio e extorsão mediante seqüestro. Evade-se de seu país, entrando irregularmente no Brasil e permanecendo aqui nesta qualidade. Reincide em fatos delituosos graves e é aqui condenado pelos crimes que cometeu em solo brasileiro. E pela mera circunstância de estar em nosso território ganha o direito de ter as penas a que foi condenado por país soberano diverso limitadas ao máximo de nossa legislação. A Carta Magna não foi escrita para compactuar com tamanha injustiça e desrespeito à Justiça de outros países.
Ora, se nunca tivesse o extraditando pisado em nosso solo, estaria sujeito às penas às quais foi legitimamente condenado. Por ter aqui estado, ganha tamanha vantagem e complacência de uma Justiça que não é a sua. Tal proteção não tem razão de ser e é um estímulo à impunidade.
O ilustre Nelson Hungria, em parecer exarado a pedido do Governo alemão, quando do julgamento no STF no caso Franz Stangl (Extradições nº 272, 273 e 274), corretamente aduziu, embora tenha seu ponto de vista sido vencido na ocasião: "Se na Constituição se dispõe sobre a inadmissibilidade de certas penas, como a de morte e a de prisão perpétua, é bem de ver que tal dispositivo não tem, nem poderia ter o significado de intolerância para com essas penas ainda mesmo quando admitidas e tenham de ser aplicadas em país estrangeiro."
Interessante é a posição de Renata Verano, aplicada estudiosa do tema:
Nessa linha de raciocínio, entendo que a concessão de extradição de estrangeiro condenado à prisão não poderia estar condicionada a ressalvas impostas por normas limitadas ao território nacional, pois não estaria abalada só a confiança entre os Estados soberanos, mas a estabilidade jurídica mundial."
A extradição só deve ser recusada nos casos extremos. A exceção existe não em relação à cooperação entre os Estados, mas por razões humanitárias, ou seja, aquelas incompatíveis com a vida e, portanto, não cabe ao Brasil, indeferir pedido de extradição cuja pena é perpétua". [15]
O então promotor de justiça Maurício Gomes cita afirmação de Adolphe Prins em defesa do instituto da extradição, no sentido de que os territórios dos diferentes Estados tornar-se-iam lugares de refúgios de delinqüentes, e a recusa de extradição consistiria não só em um ato de hostilidade para o Estado que reclama o delinqüente mas, também, uma ofensa ao princípio de justiça [16].
O juízo de delibação não deve entrar no mérito. A recente decisão do STF adentra nessa seara, discutindo que penas um país pode ou não aplicar, desrespeitando a prerrogativa destes de aplicar justiça em seus territórios, um dos aspectos da soberania.
Negi Calixto cita lição de Yussef Said Cahali, estudioso do Estatuto do Estrangeiro, de que não cabe no processo extraditório qualquer debate sobre o mérito da ação penal a cargo da Justiça do Estado requerente, porque, ao se pronunciar sobre o pedido de extradição, não cabe ao STF examinar o mérito da condenação ou emitir juízo a respeito de vícios que porventura tenham maculado o processo no Estado requerente; o seu controle jurisdicional se cinge à verificação dos pressupostos e condições estatuídos na lei brasileira, através dos quais tutela o jus libertatis do extraditando [17].
Em suma, a doutrina de Cahali, com sustento em Marcel Sibert, pressupõe o respeito à soberania da Justiça do Estado requerente "por ter sido o crime cometido no território do Estado requerente ou serem aplicáveis ao extraditando as leis penais desse Estado"(Estatuto do Estrangeiro, Saraiva, 1983, p. 374). A própria natureza jurídica do instituto da extradição é de direito inerente a essa soberania [18].
E até que ponto a decisão do STF é violadora da soberania dos demais Estados da ordem internacional?
A soberania tem um conceito que vem passando por mutações. A advogada Raquel Perini nos traz lição de Celso Bastos sobre o tema:
"soberania é a qualidade que cerca o poder do Estado. [...] indica o poder de mando em última instância, numa sociedade política. [...] a soberania se constitui na supremacia do poder dentro da ordem interna e no fato de, perante a ordem externa, só encontrar Estados de igual poder. Esta situação é a consagração, na ordem interna, do princípio da subordinação, com o Estado no ápice da pirâmide, e, na ordem internacional, do princípio da coordenação. Ter, portanto, a soberania como fundamento do Estado brasileiro significa que dentro do nosso território não se admitirá força outra que não a dos poderes juridicamente constituídos, não podendo qualquer agente estranho à Nação intervir nos seus negócios". [19]
Perini ainda ressalva que:
"o Estado não pode tomar qualquer decisão que lhe aprouver, simplesmente levando em consideração os benefícios que lhe trará; atualmente, ao contrário, o Estado soberano parece dever cada vez mais satisfações no que concerne às suas decisões, satisfações estas devidas não só à sua população, mas também a outros Estados soberanos e a órgãos internacionais. O poder de julgar sem ser julgado – que integra o poder soberano – vem diminuindo consideravelmente. (...) Na prática, entretanto, tem-se percebido que o Estado não possui vontade inquestionável e ilimitada para se relacionar com outros países, e tampouco tem o poder de decidir o que quiser com relação à sua população.".
Embora deva zelar pela aplicação da Constituição Federal em nosso território, a decisão da maioria do STF no julgamento da extradição nº 855 deu a esta uma extensão que não possui, levando sua aplicação, no caso, ao Chile, indevidamente criticando o Judiciário deste país e recriminando seu sistema processual penal, em uma violação da soberania chilena. Não é possível mensurar o estremecimento nas relações com esse país, que pode vir a complicar as extradições que porventura sejam pedidas pelo Brasil, em prejuízo da proteção de nossos nacionais, que podem ser frustrados em seu anseio de justiça no futuro.
Por fim, uma notícia de jornal velho. Consta que o Chile, diante da decisão do STF aqui discutida, suspendeu seu pedido de extradição [20]. O Sr. Norambuena, por enquanto, continuará preso no Brasil.