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Os conflitos entre os conselhos profissionais de classe da saúde

24/01/2022 às 15:00
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A Justiça tem decidido questões sobre as quais os conselhos possuem maior conhecimento, mas não entram em acordo, passando à sociedade a impressão de travarem disputas de caráter exclusivamente corporativista.

Os médicos, dentistas e demais profissionais da saúde possuem suas atividades fiscalizadas e regulamentadas pelos seus respectivos conselhos de classe. Estes conselhos são autarquias, que visam fiscalizar o exercício técnico e moral das profissões regulamentadas.

Embora a Constituição Federal de 1988 assegure o livre exercício de qualquer trabalho, o mesmo dispositivo legal prevê que para alguns casos é necessário que sejam atendidos certos requisitos legais, conforme se verifica do inciso XIII de seu artigo 5º, segundo o qual "É livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer".

Tais entidades fazem parte da administração pública indireta. Sua criação decorreu da descentralização das atividades do Estado, visando atuar em ramos específicos (como a fiscalização de atividades regulamentadas). Exercem, portanto, uma atividade pública, tendo o interesse público como alvo, e não somente os interesses da classe à qual representa. Atuam vinculados aos princípios da administração pública, e dentre uma série de eventuais desatendimentos a estes, podemos citar o como exemplo o desvio de poder (quando os atos não atendem ao interesse público).

Tendo em vistas estes fatos, estas autarquias têm mesmo atendido ao interesse público? Atualmente este é o questionamento de muitos, que entendem a constante disputa entre os conselhos como uma mera defesa da reserva de mercado de seus respectivos membros, sobretudo em relação aos procedimentos estéticos, que têm sido atualmente o grande pivô desta disputa.

Atualmente, além dos médicos temos os biomédicos, enfermeiros, farmacêuticos, dentistas e até fisioterapeutas atuando na área estética. Isso sem falar no esteticista, profissão regulamentada pela Lei 13.643/18 que compreende ainda o cosmetólogo e o técnico em estética. E em meio a uma verdadeira guerra dos conselhos, cada qual defendendo mais autonomia a seus membros, a justiça tem atuado cada hora em um sentido diferente, tornando tudo ainda mais confuso.

No caso dos enfermeiros, os procedimentos estéticos foram previstos pela Resolução nº 529/16 do COFEN (suspensa pelo Tribunal Federal da 1ª Região, alegando exercício ilegal da medicina). Em 2020 COFEN publicou a Resolução 626, criando a figura do enfermeiro esteta e listando os procedimentos autorizados.

Os biomédicos atuam na estética com base nas Resoluções do CFBM 197/2011 (prevê procedimentos invasivos não cirúrgicos), 200/2011 (cria a figura do biomédico esteta) e 214/2012 (elenca as substâncias que podem ser usadas), todas elas questionadas pelo CFM.

Em relação aos farmacêuticos, o CFF publicou a Resolução 573/2013 que prevê a atuação na saúde estética (questionada pelo CFM por afronta ao ato médico). Decisões judiciais autorizaram os procedimentos estéticos não invasivos. As resoluções 573/2013, 616/2015 e 645/2017 do CFF indicam os procedimentos autorizados.

Sobre os dentistas, a harmonização orofacial foi reconhecida como especialidade pela Resolução CFO 198/2019. A justiça autorizou o uso da toxina botulínica, não o considerando invasivo, e em seguida a laserterapia e a bichectomia. Em 2020 a Resolução 230 do CFO vetou procedimentos como a blefaroplastia e a rinoplastia (dentre outros), mas existem inúmeros questionamentos e decisões na justiça.

Se por um lado o CFM busca enquadrar os procedimentos estéticos como invasivos e limitar a atuação dos outros profissionais, doutro lado os demais conselhos e profissionais alegam o contrário, e buscam garantir seu direito de atuação.

Neste contexto, diante da total desconexão cientifica entre os conselhos federais (que sequer se entendem sobre o que é ou não invasivo), a justiça tem decidido questões sobre as quais os próprios conselhos possuem conhecimento infinitamente maior, mas não entram em acordo, passando à sociedade a impressão de travarem uma disputa de caráter exclusivamente corporativista.

Notamos que na maior parte das disputas, o CFM sustenta que a incapacidade dos demais profissionais para atuar em procedimentos invasivos, coloca os pacientes em risco de deformidades e até de óbito, por falta de conhecimento técnico e científico. Argumento considerado razoável por grande parte dos interlocutores. Contudo, outros apontam uma grande contradição na narrativa do conselho.

Isto porque o próprio CFM não exige que um médico seja especialista para atuar em qualquer ramo da medicina, podendo exercê-la em sua plenitude nas mais diversas áreas, sendo vedada somente a divulgação de especialidade que não possui. Ora, se são exigidos pelo próprio CFM, a título de exemplo, 6 anos de residência médica para se tornar um cirurgião plástico, qual o sentido de permitir que qualquer um atue na especialidade, sem tal imersão de aprendizado? Sob este prisma, muitos entendem que a vedação do CFM tão somente da divulgação de especialidade que não possui (mas não de a praticar) chega a ser absurda. Sem dúvidas, um argumento pertinente.

O crime de exercício ilegal da medicina encontra-se previsto no art. 282 do Código Penal: Exercer, ainda que a título gratuito, a profissão de médico, dentista ou farmacêutico, sem autorização legal ou excedendo-lhe os limites. Vemos que não se enquadra na conduta somente quem não possui a devida autorização, mas também quem excede seus limites. Para muitos especialistas, seria este o caso dos que atuam sem a devida titulação. Outro argumento interessante.

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Por outro lado, temos um contra-argumento bastante plausível: um médico com 30 anos de experiência em uma determinada área, mas sem deter o título de especialista, não teria até mais condições técnicas de conduzir uma cirurgia invasiva de alta complexidade do que um recém-titulado? Sem dúvidas, vale a reflexão.

Se há fortes argumentos contra a posição sustentada pelos demais conselhos federais, o CFM também não escapa da crítica, conforme exposto. Contudo, não pretendemos aqui fazer um juízo de valor sobre o tema, mas somente discorrer sobre os fatos e argumentos de cada lado, até porque também nos falta conhecimento técnico e científico para nos posicionarmos. Mas expor os fatos e cobrar que os conselhos se entendam e visem o interesse público em primeiro lugar, além de um direito, é obrigação de todos.

O tema enfrentado é de altíssima complexidade. Ninguém possui mais legitimidade e conhecimento técnico para enfrentá-lo, senão os próprios conselhos profissionais das classes envolvidas. Contudo, tal enfrentamento deve ocorrer livre de vícios e corporativismo (e se possível, livre do Poder Judiciário), de forma que as autarquias cumpram seu papel junto à sociedade, e conduzam a atuação de suas classes profissionais atendendo à sua função social, para que a sociedade não siga totalmente perdida (assim como os próprios profissionais) entre resoluções contraditórias, pareceres corporativistas e decisões judiciais conflitantes.

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Sobre o autor
Renato Assis

Advogado, professor, escritor, palestrante, debatedor, conferencista; Graduado em Direito pela Universidade FUMEC-MG; Pós-graduado em Direito Processual pela PUC-MG; Pós-graduado em Direito Médico pela Universidade de Araraquara/SP; Pós-Graduando em MBA em Gestão Empresarial pela Fundação Getúlio Vargas/RJ; Professor do curso de Direito Médico, Odontológico e Direito da Regulação da UCA (Universidade Corporativa da ANADEM); Especialista em Terceiro Setor e Direito Médico;

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ASSIS, Renato. Os conflitos entre os conselhos profissionais de classe da saúde. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 27, n. 6781, 24 jan. 2022. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/96027. Acesso em: 23 abr. 2024.

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