Os Direitos Sociais frente aos Princípios da Vedação do Retrocesso, Necessidade da Progressividade dos Direitos, Limitação do Retrocesso Social, Reserva do Possível, Mínimo Existencial e as Escolhas Trágicas.

25/01/2022 às 14:21
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O federalismo fiscal vai atribuir a cada ente federativo a competência para arrecadar, repartir e alocar recursos públicos. O desafio é sopesar escolhas trágicas, princípios e direitos fundamentais para sair do formalismo e aplicar a Constituição.

Os direitos fundamentais foram criados, primeiramente, como direitos de defesa contra o Estado.

Os direitos fundamentais devem impedir que o Estado interfira na liberdade do cidadão ou que intervenha apenas sob princípios legais. Limites são estabelecidos e devem ser observados mediantes limitações constitucionais.

Wolfgang Hoffmann-Riem, ex-juiz do Tribunal Constitucional Federal da Alemanha, diz que "os direitos fundamentais não são só leis individuais, mas ao mesmo tempo, descrevem um sistema de valores transmitido a todo o ordenamento jurídico".

Uma característica dos direitos fundamentais é que eles não dependem das maiorias políticas, são protegidos da maioria política e não procedem sequer de legislação e devem ser extraídos diretamente da Constituição.

Há direitos fundamentais que nem mesmo podem ser retirados por vontade da maioria, como por exemplo, o direito de propriedade.

A primeira característica do regime diferenciado dos direitos fundamentais é, portanto, a sua oponibilidade às maiorias políticas, a sua não dependência da vontade das maiorias políticas que são representadas pelo poder legislativo.

A segunda característica é a sua aplicabilidade direta e imediata, inserida no artigo 5°, parágrafo 1° da Constituição Federal, onde se lê que as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata, o que significa que, como regra geral, não dependerão do legislador intervir e, quando eventualmente dependam, como no caso de prolongada omissão do legislador, é possível que o próprio STF, em mandado de injunção ou em ação declaratória de inconstitucionalidade por omissão, supra a norma faltante, intervindo, enquanto o Congresso não agir.

Temos como exemplo importante o caso de greve do serviço público, que se fez via mandado de injunção, visto que em mais de 20 anos de Constituição não se criava a lei assegurando o direito de greve ao servidor público. Havia discussões acerca da existência ou inexistência de direito e o STF, sanando essa omissão, determinou a aplicação das regras que valiam para a greve no setor privado, no que coubesse a ela.

Recentemente, o STF decidiu que a discriminação por orientação sexual e identidade de gênero passe a ser considerado crime. Essa medida constitui uma grande vitória para a comunidade LGBTQI+, visto que a criminalização da homofobia era uma das principais bandeiras do movimento.

A terceira característica é a abertura do catálogo de direitos fundamentais, que possibilita a incorporação de novos direitos, por interferência do direito internacional, como asseverado no artigo 5°, parágrafo 2° da Constituição Federal, a qual afiança que os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.

Forçoso reconhecer que a Constituição Federal é aberta, cheia de princípios abstratos que permitem que ela se adeque à evolução do tempo, da sociedade, das novas realidades e dos novos direitos que vão surgindo, como por exemplo, no caso do reconhecimento do casamento entre pessoas do mesmo sexo.

Para Paulo Bonavides, o bom êxito da constituição aberta dependerá do dinamismo normativo do Estado social, o Estado que constrói o futuro da sociedade democrática (BONAVIDES, 2004, p. 517).

Wolfgang Hoffmann-Riem explica que "as normas são marcadas por conceitos que dão margem à interpretação, ou são conceitos que permitem planejamentos e têm em grande parte propósitos, finalidades e estabelecem um objetivo".

O Constitucionalismo social tem como marco histórico a Constituição do México de 1917, tendo em vista ter sido a primeira Constituição a trazer a ideia de proteção social, com limitação do trabalho infantil, expansão do sistema de educação pública, criação de responsabilidade dos empregadores por acidente de trabalho etc.

A Constituição de Weimar, de 1919, dentre outros direitos, reconheceu o direito de voto às mulheres, bem como medidas de assistência social aos setores mais carentes da população.

No Brasil, a constituição de 1934 foi a primeira a prever, dentre outros direitos sociais, o voto feminino, férias, jornada de trabalho de 8 horas diárias, autonomia dos sindicatos etc.

O federalismo nasceu nos Estados Unidos em 1787, e buscou estabelecer um poder central efetivo, com capacidade de tomar e implementar decisões em todo o território nacional, na figura da União, mas também garantir a manutenção da autonomia política dos Estados.

No Brasil, o Decreto n. 1 de 15 de novembro de 1889 proclamou a República Federativa e a Constituição de 1891 estabeleceu o federalismo no país, consoante seu artigo 1°.

Art 1º - A Nação brasileira adota como forma de Governo, sob o regime representativo, a República Federativa, proclamada a 15 de novembro de 1889, e constitui-se, por união perpétua e indissolúvel das suas antigas Províncias, em Estados Unidos do Brasil.

No que toca ao federalismo fiscal, é a parte do acordo federativo que vai atribuir a cada ente da federação a competência para arrecadar determinado tributo, a repartição de receitas tributárias entre esses entes, assim como a responsabilidade de cada um deles na alocação dos recursos públicos e na prestação de bens e serviços públicos para a sociedade.

A finalidade do federalismo fiscal é sair do formalismo e trazer de fato a aplicação da Constituição. Quais são os objetivos fundamentais? Erradicar a pobreza, reduzir a desigualdade social? Não se faz isso sem arrecadação.

Políticas sociais baseiam-se na premissa da igualdade de direitos e, nesse sentido, juntamente com o federalismo fiscal, buscar-se-á definir quais objetivos perseguir na realização desses direitos.

Quanto maiores forem as desigualdades regionais presentes no país, mais desafiador será o arranjo do federalismo fiscal em termos de garantias de direitos sociais em perspectiva nacional.

A busca pela redução do abismo social existente no Brasil entre desigualdades regionais de igual modo, é federalismo.

O artigo 3° da Constituição Federal enumera os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil e, no inciso III, encontra-se a erradicação da pobreza, marginalização e redução das desigualdades sociais e regionais.

De acordo com o artigo 211 da Constituição Federal, os Estados, o Distrito Federal, os Municípios e a União devem organizar o sistema de ensino em regime de colaboração.

Independentemente da remuneração dos pais ou da situação da família, a creche é um direito social. Destarte, vemos que uma vaga em creche passa desde o Estado Democrático de Direito aos princípios de tributação e finanças públicas, tais como proibição do retrocesso, necessidade da progressividade dos direitos, escolhas trágicas, limitação do retrocesso social, reserva do possível e mínimo existencial.

Por conseguinte, insere-se também na dignidade da pessoa humana social, ou seja, a dignidade da pessoa humana socialmente considerada grupos, classes, de regiões para regiões.

No que se refere ao mínimo existencial, deve respeitar a dignidade da pessoa humana, socialmente considerada.

Durante a pandemia COVID-19, editada a Emenda Constitucional 106/2020, fortemente vinculada à matéria financeira, adotando regime extraordinário fiscal, financeiro e de contratações. A Emenda Constitucional 109/2021 do mesmo modo, criou diversos aspectos de direito financeiro, tais como Estado de Emergência Fiscal, devendo os órgãos e entidades da administração pública, individual ou conjuntamente, realizar avaliação das políticas públicas.

Quando é preciso atuar no todo, necessária a modificação da constituição. Não há possibilidade de se falar em um Estado Democrático de Direito e em um Estado Social, sem falar em finanças públicas.

E neste cenário das finanças públicas também surgirão as tragic choices, escolhas trágicas ou escolhas públicas, assim como chamadas de escolhas políticas.

É necessário traçar um parâmetro e identificar as escolhas difíceis que o poder público definirá quando e onde os valores arrecadados serão aplicados à saúde, educação.

"Nós podemos não saber como o mundo sofre. Mas nós podemos saber como o mundo decide que o sofrimento chegará a algumas pessoas e não a outras"[1].

Essas escolhas não são estruturais. Elas variam a partir de diferentes critérios e todos nós somos partes das escolhas trágicas, seja como expectadores, seja como participantes diretos ou indiretos, seja como afetado pelas escolhas.

Certo é que as destinações dos recursos sempre encontrarão conflitos, ora na execução de políticas públicas, ora na implementação de direitos sociais previstos na Constituição Federal.

Cabe ao poder público limitar o impacto das tragic choices, escolhendo uma série de abordagens ao longo do tempo, partindo do pressuposto de que a sociedade está tentando manter um mínimo existencial mesmo em épocas de conflito.

"O poder público tem que tentar fazer alocações de forma a preservar as fundações morais de colaboração social". (CALABRESI; BOBBITT, 1978, p.18)

Inarredável que as escolhas trágicas se revestem de nítido caráter político, tendo em vista que os recursos podem ou poderiam ser alocados de formas diferentes, segundo as prioridades definidas pelas pastas com atribuições para tanto.

Por consequência, as escolhas trágicas de igual modo são denominadas escolhas políticas devido ao fato de que alguns direitos, valores e interesses serão priorizados em detrimento de outros.

As escolhas trágicas estão intimamente ligadas ao princípio da moralidade, tendo em vista que exigem do agente público a observância de padrões éticos, boa-fé, honestidade e probidade para lidar com decisões que devem ser tomadas em detrimento de outras.

Da mesma forma, associadas ao princípio da eficiência, visto que a decisão deve ser tomada com uma melhor qualidade em prol de toda a sociedade, devendo ser empregado aqui, nos dizeres de Celso Antônio Bandeira de Mello, o preceito da boa administração.

Embora todas as despesas públicas, em regra, atendam às finalidades públicas, oportuno destacar que existe uma hierarquia de prioridades nos gastos públicos que passam pela distinção dos interesses públicos primários e interesses públicos secundários.

Os direitos sociais de saúde e educação se enquadrariam nos primários, visto que dizem respeito às necessidades dos cidadãos, ao passo que as despesas com o funcionamento da máquina pública se enquadrariam nos secundários.

Fernando Facury Scaff diz que "qualquer que seja a teoria que se adote para configurar o surgimento do Estado, pode-se afirmar que é concomitante ao nascimento de sua atividade financeira"[2].

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Em grande medida, no que tange à alocação de recursos, há de se levar em consideração a vedação do retrocesso social, a fim de que os direitos não sejam regredidos - tomemos como exemplo a rede de ensino, que não pode ser diminuída sem justo motivo, como por exemplo, baixa natalidade.

Por sua vez, o princípio da vedação do retrocesso social está garantido de forma implícita em nossa constituição, amparado no conceito de segurança jurídica e dignidade da pessoa humana.

Referido princípio consiste em proteger determinado direito fundamental já conquistado, sendo proibida a restrição indevida do direito, que ocasionaria um retrocesso na área social.

Para o professor Ingo Sarlet:

a dignidade da pessoa humana (independentemente, no nosso sentir, de se aceitar, ou não, a tese da dignidade da vida não humana) há de ser compreendida como um conceito inclusivo, no sentido de que a sua aceitação não significa privilegiar a espécie humana acima de outras espécies, mas sim, aceitar que do reconhecimento da dignidade da pessoa humana resultam obrigações para com outros seres e correspondentes deveres mínimos e análogos de proteção[3].

Quanto à necessidade de progressividade de direitos, equivale a dizer que os direitos sociais devem se amoldar a sociedade, impondo ao Estado a eficácia da prestação dos direitos sociais, encontrando-se previsto no artigo 2° do Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais PIDESC, Decreto n. 591/92, onde se lê:

Cada Estado Parte do presente Pacto compromete-se a adotar medidas, tanto por esforço próprio como pela assistência e cooperação internacionais, principalmente nos planos econômico e técnico, até o máximo de seus recursos disponíveis, que visem a assegurar, progressivamente, por todos os meios apropriados, o pleno exercício dos direitos reconhecidos no presente Pacto, incluindo, em particular, a adoção de medidas legislativas.

O Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (PIDESC) foi adotado pela Organização das Nações Unidas (ONU) em 1966, assim como o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, e ambos têm por escopo conferir obrigatoriedade aos compromissos estabelecidos na Declaração Universal dos Direitos Humanos, aprovada em 1948 pela Assembleia Geral da ONU.

A situação desses direitos sociais deve ser acompanhada pelos Estados-membros através de confecção de relatórios periódicos, sendo avaliado grau de implementação, dificuldade em sua realização, passando a existir responsabilidade internacional dos Estados signatários em caso de violação dos direitos consagrados pelo pacto.

O STF, através do ARE 639.337, de relatoria do ministro Celso de Mello, em decisão cominando o Município de São Paulo no fornecimento de vaga de creche e pré-escola para crianças até 5 anos de idade, assim se manifestou a respeito: "O Poder Público - quando se abstém de cumprir, total ou parcialmente, o dever de implementar políticas públicas definidas no próprio texto constitucional - transgride, com esse comportamento negativo, a própria integridade da Lei Fundamental, estimulando, no âmbito do Estado, o preocupante fenômeno da erosão da consciência constitucional".

Acerca do pleito da municipalidade, calha trazer Victor Hugo e sua obra os miseráveis, quando diz que "o sofrimento social começa em qualquer idade".

A erosão da consciência constitucional ocorre quando o próprio poder público desrespeita a constituição. Esse termo foi criado pelo jurista alemão Karl Loewenstein, ao dizer que "a democracia constitucional no meio do século XX se encontra em uma crise, onde constituições tem sofrido uma importante desvalorização funcional e uma perda de prestígio"[4].

Para ele, "a massa da população tem perdido seu interesse na constituição e esta, por sua vez, tem perdido seu valor efetivo para o povo"[5].

No que toca a redistribuição moderna de renda, como ensina Thomas Piketty em o capital do século XXI, estaria intrinsicamente ligada a uma lógica de direitos e um certo número de bens considerados fundamentais:

A redistribuição moderna de renda não consiste em transferir renda dos ricos para os pobres, pelo menos não de uma forma tão explícita. Consiste antes em financiar serviços públicos e receitas de substituição que são mais ou menos iguais para todos, especialmente nas áreas de saúde, educação e previdência. A redistribuição moderna é construída em torno de uma lógica de direitos e de um princípio de igualdade de acesso a um certo número de bens considerados fundamentais. [6]

Assim, direitos básicos devem ser garantidos a todos. Pelo magistério de John Raws, ao apresentar a concepção de justiça social, vai suscitar o princípio da diferença, para alocação de recursos na educação, a fim de melhorar expectativas a longo prazo dos menos favorecidos:

E, nessa tomada de decisão, o valor da educação não deveria ser avaliado apenas em termos de eficiência econômica e bem-estar social. papel da educação é igualmente importante, se não mais importante ainda, no sentido de proporcionar a uma pessoa a possibilidade de apreciar a cultura de sua sociedade e de tomar parte em suas atividades, e desse modo proporcionar a cada indivíduo um sentimento de confiança seguro de seu valor próprio[7].

Nesse cotejo, a limitação do retrocesso social assume papel relevante ao proteger os direitos fundamentais, em especial sociais, contra a atividade legislativa, que busca suprimi-los ou restringi-los do catálogo de direitos.

Nesse passo, o legislador não pode limitar, alterar e/ou restringir direitos fundamentais, salvo em ocasiões previstas constitucionalmente, tendo em vista que se o fizesse, poderia retirar-lhes sua eficácia.

Os direitos fundamentais são divididos em direitos de primeira geração ou direitos de liberdade, por compreender liberdade de pensamento, à vida, propriedade privada, segurança, justiça, voto, expressão, locomoção, crença etc. Compreendem os direitos civis e políticos inerentes ao ser humano e oponíveis ao Estado.

Os de segunda geração ou direitos de igualdade surgiram após a 2ª Guerra Mundial, com o advento do Estado Social. São os direitos econômicos, sociais e culturais que devem ser prestados pelo Estado. Engloba direito à educação, saúde, lazer, habitação, saneamento, greve etc.

Os de terceira geração ou direitos de solidariedade, fraternidade, são considerados coletivos por excelência por terem como titulares não um único individuo ou grupo, mas sim por abrangerem o gênero humano enquanto pessoa. Incorporam o direito ao desenvolvimento, comunicação, meio ambiente etc.

Os de quarta geração são aqueles decorrentes da globalização. Exigem do Estado uma postura de adequação político-normativa para garantir direito ao pluralismo, democracia, acesso à informação etc.

Paulo Bonavides, ao elencar os direitos de quinta geração, enumera a paz, "por ser indispensável ao progresso de todas as nações, grandes e pequenas, em todas as esferas"[8].

Para Ingo Wolfgang Sarlet e Mariana Filchtiner Fogueiredo, o princípio do mínimo existencial, ainda que não declarado constitucionalmente de forma expressa, se encontra no rol dos direitos-garantia, isto é, direitos garantidos pelo Estado.

No caso do Brasil, embora não tenha havido uma previsão constitucional expressa consagrando um direito geral à garantia do mínimo existencial, não se poderia deixar de enfatizar que a garantia de uma existência digna consta do elenco de princípios e objetivos da ordem constitucional econômica (art. 170, caput), no que a nossa Carta de 1988 resgatou o que já proclamava a Constituição de Weimar, de 1919. De outra parte, os próprios direitos sociais específicos (como a assistência social, a saúde, a moradia, a previdência social, o salário mínimo dos trabalhadores, entre outros) acabaram por abarcar algumas das dimensões do mínimo existencial, muito embora não possam e não devam ser (os direitos sociais) reduzidos pura e simplesmente a concretizações e garantias do mínimo existencial, como, de resto, já anunciado[9].

O STF assim definiu o mínimo existencial no ARE 639.337: "resulta, por implicitude, de determinados preceitos constitucionais (CF, art. 1º, III, e art. 3º, III), compreende um complexo de prerrogativas cuja concretização revela-se capaz de garantir condições adequadas de existência digna, em ordem a assegurar, à pessoa, acesso efetivo ao direito geral de liberdade e, também, a prestações positivas originárias do Estado, viabilizadoras da plena fruição de direitos sociais básicos, tais como o direito à educação, o direito à proteção integral da criança e do adolescente, o direito à saúde, o direito à assistência social, o direito à moradia, o direito à alimentação e o direito à segurança. Declaração Universal dos Direitos da Pessoa Humana, de 1948 (Artigo XXV)".

Neste sentido, o mínimo existencial representaria uma carta de direitos que constituiria uma mínima existência digna, com um padrão de vida capaz de assegurar condições mínimas de subsistência e bem-estar social, na qual o Estado não poderia intervir e tentar sua minoração aliás, deve agir de forma positiva, com alocação de recursos e criação de políticas públicas para acompanhamento de sua eficácia e efetivação.

No que toca ao princípio da reserva do possível, remonta a Alemanha de 1970, e parte da concepção de que os direitos sociais dependem da real disponibilidade de recursos financeiros por parte do Estado e este escolhe como e de que forma os aloca.

O STJ, através do RESP 1185474-SC, assim explicou: "a realização dos Direitos Fundamentais não é opção do governante, não é resultado de um juízo discricionário nem pode ser encarada como tema que depende unicamente da vontade política. Aqueles direitos que estão intimamente ligados à dignidade humana não podem ser limitados em razão da escassez quando esta é fruto das escolhas do administrador. Não é por outra razão que se afirma que a reserva do possível não é oponível à realização do mínimo existencial".

No que diz respeito a tal princípio, o STF vai expor no ARE 639.337 que "não pode ser invocada, pelo Poder Público, com o propósito de fraudar, de frustrar e de inviabilizar a implementação de políticas públicas definidas na própria Constituição - encontra insuperável limitação na garantia constitucional do mínimo existencial, que representa, no contexto de nosso ordenamento positivo, emanação direta do postulado da essencial dignidade da pessoa humana".

Nas últimas décadas, o Brasil tem vivenciado forte ativismo judicial nas políticas públicas, com manejo de ações objetivando vagas de creche e fornecimento de medicamentos, realização de operações, exames e tratamentos médicos, seja por falta e deficiência de recursos, seja por falta de previsão no rol do Sistema Único de Saúde.

Conquanto haja forte acolhimento do Poder Judiciário em tais casos para com a população, a judicialização dos direitos fundamentais recebe constantemente uma enxurrada de questionamentos e críticas por parte do poder público, sobretudo em suas defesas e recursos.

A primeira crítica se baseia no critério discricionário, por meio do qual caberia à Administração a realização de políticas públicas e ela quem deve decidir a alocação de recursos e não o Judiciário.

A segunda se apoia na invasão de competência, ao afirmar que o Poder Judiciário, quando decide tais questões, estaria exercendo a função privativa do Poder Executivo.

A terceira se manifesta no sentido de que o interesse do cidadão que busca o judiciário se sobrepõe aos demais, que não buscam e continuam aguardando em filas a obtenção de uma vaga na creche, um medicamento, cirurgia etc., e não possuem uma decisão jurídica favorável, como a parte que o invoca.

A quarta se escora na lei de responsabilidade fiscal, com argumentação no sentido do desiquilíbrio do orçamento público para honrar uma despesa não prevista com a concessão de vaga de creche ou fornecimento de medicamento de alto custo por exemplo, já que deve ser adquirido ou fornecido em caráter emergencial, dispensando procedimento licitatório e concorrencial.

Inobstante fortes críticas por parte de alguns setores da administração pública, a judicialização dos direitos sociais vem encontrando forte abrigo em nossos Tribunais Superiores, tendo em vista que na omissão do Poder Público em atender o cidadão, o Judiciário deve agir o já mencionado artigo 5°, parágrafo 1° da Constituição Federal, onde se lê que as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata.

E dentro dos direitos sociais e sua efetivação surge o choque dos princípios mencionados neste artigo, com outros e que deverão ser sopesados para uma melhor adequação ao caso prático.

Ronald Dworkin, em O Império do Direito, vai formular o direito como responsabilidade social acima de qualquer regra ou princípio, sendo o direito aquilo que queremos ser e qual a comunidade que queremos ter:

O direito não se esgota em nenhum catálogo de regras ou princípios, cada qual com seu domínio sobre algum teatro discreto de comportamento. [...] A atitude do direito é construtiva: visa, no espírito interpretativo, colocar o princípio sobre a prática para mostrar o melhor caminho para um futuro melhor, mantendo a fé correta com o passado. É, enfim, uma atitude fraterna, uma expressão de como estamos unidos em comunidade embora divididos em projeto, interesse e convicção. Isso é, de qualquer forma, o que a lei é para nós: para as pessoas que queremos ser e para a comunidade que almejamos ter[10].

Nesse ponto, tem grande relevância os portais de transparência, visto que ali é permitido a todo e qualquer cidadão entender onde está sendo alocado o dinheiro arrecadado e de que forma está sendo empregado em gastos primários, que dizem respeito a toda a população, ou em gastos secundários, que envolvem a máquina pública, e se tais gastos são essenciais, necessários ou podem ser postergados em favor do bem comum.

Assim como é defeso ao cidadão acompanhar o orçamento destinado à saúde e à educação, e visualizar se, de fato, o valor destinado está sendo utilizado ou o poder Executivo está se omitindo na realização de despesas já autorizadas, deixando de construir creches ou disponibilizar leitos de hospitais com valores à disposição para tais consecuções.

O ministro Ricardo Lewandowski, por ocasião do AG.REG. NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO 820.910, manifestou-se no sentido de não se tratar de intromissão indevida do Poder Judiciário no Poder Executivo: "este Tribunal entende que reconhecer a legitimidade do Poder Judiciário para determinar a concretização de políticas públicas constitucionalmente previstas, quando houver omissão da administração pública, não configura violação do princípio da separação dos poderes, haja vista não se tratar de ingerência ilegítima de um poder na esfera de outro".

Logo, o espaço para escolhas políticas ou discricionárias pelos governantes na iniciativa e implementação das políticas públicas está cada vez mais reduzido, visto já estarem agasalhadas em nossa constituição, que, inclusive, permite adoção de novos princípios, de forma a se adequar às novas realidades.

Além disso, em grande medida a população em geral está mais consciente de seus direitos e tem noção de que em matéria de saúde e educação, o Poder Judiciário se faz cada vez mais presente e ativo.

O Judiciário tem papel fundamental ao exercer a justiça contributiva no bem-estar comum dos cidadãos. De acordo com tal perspectiva, a necessidade humana fundamental é ser necessário àqueles com quem partilhamos uma vida em comum, como explica Michael Sandel em seu livro, a Tirania do Mérito[11],

A justiça contributiva, por contraste, não é neutra com relação à prosperidade humana ou a melhor maneira de viver. De Aristóteles à tradição republicana, de Hegel ao ensinamento social católico, teorias de justiça contributiva nos ensina que nós somos mais plenamente humanos quando nós contribuímos para o bem comum e ganhamos mais estima de nossos concidadãos pelas contribuições que fazemos.

A dignidade do trabalho do operador do direito estaria, portanto, inserida no exercício de nossas habilidades para responder às necessidades de nossos concidadãos.

Aldous Huxley já dizia algo próximo em 1932: "Estabilidade. Não há civilização sem estabilidade social. Não há estabilidade social sem estabilidade individual"[12].


 

  1. CALABRESI, Guido; BOBBITT, Philip. Tragic Choices. Estados Unidos: W.W. Norton & Company. Inc, 1978, p.17.

  2. SCAFF, Fernando Facury. Orçamento Republicano e Liberdade Igual. Belo Horizonte: Ed. Fórum, 2018, p.41.

  3. SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora Ltda, 8ª Ed., 2011, p.20

  4. LOEWENSTEIN, Karl. Teoría de la Constitución. Barcelona: Editorial Ariel, 1979, p.222.

  5. Ibidem, p. 227.

  6. PIKETTY, Thomas. Capital in the twenty-firsty century. Inglaterra: The Belknap Press of Harvard University Press, 2014, p.335/336.

  7. RAWLS, John. Uma Teoria da Justiça. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p.107/108.

  8. ______________________________BONAVIDES, Paulo. A quinta geração de direitos fundamentais. Direitos Fundamentais e Justiça n. 3, 2008, p. 83. Disponível em: http://professor.pucgoias.edu.br/SiteDocente/admin/arquivosUpload/4615/material/DIREITO%20%C3%80%20PAZ-p%20.%20bonavides.pdf Acesso em 19 de janeiro de 2022.

    BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Ed. Malheiros, 15ª Ed, 2004.

    MARTINS, Flávio. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraivajur, 3ª Ed. 2019.

  9. SARLET, Ingo Wolfgang; FIGUEIREDO, Mariana Filchtiner. Reserva do possível, mínimo existencial e direito à saúde: Algumas Aproximações. Direitos Fundamentais e Justiça n.1, 2007, p.184. Disponível em:< http://dfj.emnuvens.com.br/dfj/article/view/590/73>. Acesso em 18 de janeiro de 2022.

    SOARES, Márcia Miranda; MACHADO, José Ângelo. Federalismo e Políticas Públicas. Brasília: Escola Nacional de Administração Pública, 2018.

  10. DWORKIN, Ronald. Law´s Empire. London: Harvard University Press, 1986, p.413.

  11. SANDEL, Michael. The tyranny of merit: What´s becoming the common good? London: Penguin, 2021, p.198.

  12. HUXLEY, Aldous. Admirável mundo novo. São Paulo: Ed.Azul, 2014.

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Sobre a autora
Ana Carolina Rosalino Garcia

Advogada graduada em Direito pela Universidade Paulista (2008). Membro da Ordem dos Advogados do Brasil, Secção São Paulo desde 2009. Pós-graduada em Direito Civil e Processo Civil pela Escola Paulista de Direito (EPD). Possui MBA em Administração de Empresas com Ênfase em Gestão pela Fundação Getúlio Vargas - FGV / EAESP - Escola de Administração de Empresas de São Paulo. Pós-graduada em Direito Público pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS).

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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