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Da presumida segurança da urna eletrônica

26/01/2022 às 17:26
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O eleitor não tem instrumentos para provar a alegação de que foi lesado.

Sumário: Instrumento de comprovada utilidade nos escrutínios eleitorais, tem a urna eletrônica lugar de relevo na vida política nacional. Mas, obra do engenho humano, está naturalmente sujeita a falhas e imperfeições, que urge reconhecer e corrigir, não venham a destruir a pedra angular dos regimes democráticos, que é o voto do eleitor.


Sob a inspiração e patrocínio da Justiça Eleitoral, os meios de comunicação do País (rádio, televisão, etc.) têm anunciado, com viva força, que as urnas eletrônicas, em que depositam os eleitores os seus votos, são, quando examinadas à luz da eficiência, precisão e segurança, de todo o ponto confiáveis.

Da excelência de tais características foi constituída pregoeira e avalista a renomada professora e mestra em Filosofia Política Djamila Ribeiro, a qual, ao mesmo passo que encareceu em sumo grau a confiança nas qualidades positivas daquele aparelho (por atender aos requisitos da segurança, checagem e transparência), contou com o prestígio de lisonjeira informação: “Não recebeu cachê para participar desta campanha”.

As circunstâncias em que elaborada como que conferem à mensagem rigor dogmático. Ostenta, com efeito, caráter oficial, expedida que foi por órgão da soberania do Estado: Tribunal Superior Eleitoral, cujo Presidente Ministro Luís Roberto Barroso não é lícito supor quisesse obrar com outro propósito que prover da máxima garantia e lisura a realização dos pleitos([1]).

Ao demais, isto de haver profissional de nomeada renunciado à retribuição econômica ou verba honorária, a que fazia jus (por sustentar o facho de importante campanha de interesse público), passa por lance edificante de cidadania, poderoso a prevenir e afastar o menor laivo de má-fé, restrição mental ou intenção reservada.

Por fim, diz em crédito dos vibrantes discursos em prol dos predicados vantajosos da urna eletrônica a Portaria nº 578, de 8.9.21, do Excelentíssimo Senhor Presidente do Tribunal Superior Eleitoral, que criou a Comissão de Transparência das Eleições (CTE), e a Portaria nº 579, de 8.9.21, que tornou pública a composição do Observatório da Transparência das Eleições (OTE): expressivo rol de representantes de instituições e órgãos públicos (Congresso Nacional, Ordem dos Advogados do Brasil, Ministério Público, Forças Armadas, Polícia Federal, etc.), chamados a supervisionar a tecnologia aplicada ao sistema eleitoral.

Tal conjunção de fatores, embora ponderável, afigurar-se-á entretanto hábil para elidir toda dúvida sensata a respeito da urna eletrônica?!

Terá deveras solidez absoluta o que dela dizem sujeitos, ainda que fidedignos e de grande ilustração?!

Eis a pergunta que poderá fazer alguém, num mundo em que até os rochedos se abalam!


No campo das ideias, nenhum assunto está fora de exame e debate. Princípio é esse que se autoriza com o timbre da Declaração Universal dos Direitos do Homem, da ONU, de 1948: “Todo homem tem direito à liberdade de opinião e expressão, direito esse que inclui a liberdade de, sem interferência, ter opiniões e de procurar, receber e transmitir informações e ideias por quaisquer meios e independentemente de fronteiras” (art. 19)([2]). Igual disposição traz a Constituição da República Federativa do Brasil, de 5.10.1988([3]).

Ao demais, e disse-o com razão e inexcedível propriedade Mário Barreto, fino homem de letras: “Só as verdades intrinsecamente matemáticas estão isentas de toda discussão”([4]); argumento a que acrescentou peso e força o saudoso e benemérito Prof. Napoleão Mendes de Almeida, com dizer que só “o ignorante não duvida, porque desconhece que ignora”([5]).

Pode, portanto, a dúvida representar estágio mais que aconselhável, obrigatório, na busca incessante da verdade([6]).

Nas ações humanas é coisa vulgar o erro; desde que feita por homem, a obra encerra, por força, alguma imperfeição, fatal contingência contra que ninguém se mostrou ainda suficientemente seguro. Esta é a regra geral! Não lhe constituem exceção notável sequer aqueles nos quais arde o fogo do gênio e que, inteligências privilegiadas, acreditam-se pupilos diletos da fortuna.

É que também sobre eles exerce implacável sua jurisdição a “eterna falibilidade humana, cujos estigmas ninguém evita neste mundo”, como sentenciou o nosso Rui([7]).

Cuida-se aqui, escusava dizê-lo, somente do erro do entendimento, não do que é parto da vontade viciada ou da malícia (que fora gênero de desgraça grande supô-lo em sujeitos incumbidos de prestar inestimáveis serviços à Pátria!).


Por padrão de segurança, declara o Tribunal Superior Eleitoral, em seu texto de campanha, que a urna eletrônica “não é conectada à Internet nem a nenhuma outra rede”.

Afirma ainda que o boletim de urna (extrato impresso dos votos dos candidatos) é afixado no átrio da seção eleitoral para conhecimento dos interessados em apurar o rigor do escrutínio.

Por fim, especialistas em segurança digital, instituições e órgãos do Estado haverão de comprovar se o sistema de urna eletrônica é, em verdade, sem falha e superior à crítica honesta.

A essas cautelas, que têm o cunho de imprescindíveis à atestação da qualidade da urna eletrônica, duas outras sobrelevariam:

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I - Máxima diligência na operação (que se quer indefectível) de traslado e transposição dos dados do boletim informativo para o circuito receptor do Tribunal Superior Eleitoral;

II - Estrita pontualidade no desenvolvimento e execução dos programas (softwares) do Tribunal Superior Eleitoral, estremes de senão ou mácula.

A escrupulosa observância de tais normas afastará, por certo, o natural receio do eleitor de que evento fortuito ou (por argumentar somente) algum criminoso artifício lhe venham frustrar a intenção do voto no candidato de sua preferência.

Trata-se de medidas que servirão a coibir toda anomalia no funcionamento do processo eleitoral.

No caso, porém, de emenda de erros (matéria de gravidade insigne!), o interessado não haverá recorrer senão ao instituto da auditoria, como instrumento revisional.

Mas a alegação de fraude (aqui é que está o busílis!) será simples sopro de voz e expressão vazia de sentido, se a não acompanhar o elemento material ou corpo de delito. (É que, em todas as esferas da Justiça, os litígios devem julgar-se pelo alegado e provado).

Ora, de nenhum instrumento poderá valer-se o eleitor para fazer prova da alegação de que foi lesado (por ter sido computado em favor de outrem o sufrágio que dera a certo candidato).

Seria, portanto, impor-lhe ônus inexequível, como é a produção de prova impossível (a que os patriarcas do Direito chamavam, com bem de razão, prova diabólica)([8]).

Há-se mister, pois, do elemento de contraste, ou pedra de toque, da prova de que o voto foi atribuído exatamente ao candidato cujo número o eleitor digitara na urna eletrônica. Para tanto, importa muito seja dotada de núcleo no qual, de par com o voto oficial que é computado e impresso no boletim informativo do Tribunal Superior Eleitoral, se proceda ao seu registro físico (por criptograma), para utilização futura, como prova instrumental, no caso de dúvida ou impugnação do resultado da votação.

A falta de tal recurso, ou dispositivo de salvaguarda do voto, é, a meu aviso, a razão principal de se não formularem ainda gerais aplausos à urna eletrônica.

Esta árida e árdua questão tem sido já exposta a toda a luz por autores de vasto saber e levantado senso crítico. É desse número Charles Seife, professor de Jornalismo da Universidade de Nova Iorque e mestre em Matemática pela Universidade Yale; após advertir que “o voto eletrônico tem potencial para transformar as eleições em um caos, diz, com bem de pesar: É possível que nunca fiquemos sabendo se nosso voto foi realmente computado ou engolido pelo aparelho”.

Ajunta, contudo, para honra e conforto da Humanidade: “Se o software for aberto ao escrutínio público; se qualquer programador puder estudar o código-fonte à procura de erros, a contagem eletrônica dos votos apresentaria um alto grau de confiabilidade”([9]).

Por sua intensa campanha de esclarecimento a esse respeito, é para crer que o Tribunal Superior Eleitoral esteja realmente a sanear, na plenitude de sua força e grandeza, o nosso processo eleitoral, expungindo-o de todo vício que possa contaminar o resultado das urnas eleitorais e, destarte, livrá-lo da justa diatribe que lhe fulminara, há mais de um século, o verbo inflamado e moralizador de Rui Barbosa: “A fraude eleitoral da política brasileira é como o elemento servil na formação de nossa sociedade: está por toda a parte”([10]).

Em suma: façamos votos porque a urna eletrônica seja, verdadeiramente, o augusto padrão miliário da estrada real da Democracia!


Notas

  1. Nenhum motivo me depara o teor de proceder do Excelentíssimo Senhor Ministro Luís Roberto Barreto, que o desmereça das graves funções de Presidente do Tribunal Superior Eleitoral; nele acho, aliás, muitos que o recomendem para o seu exercício, e estão expressos no livrinho que lhe dediquei e ofereci: Da Sentença (Doutrina e Jurisprudência), 2019, pp. 11-17; www.scribd.com/Biasotti. (A benevolência do leitor espero me relevará esta fumaça de vaidade, aqui necessária!).
  2. Apud Jayme de Altavila, Origem dos Direitos dos Povos, 4a. ed., p. 223; Edições Melhoramentos.
  3. “É livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato” (art. 5º, nº IV, da Const. Fed.).
  4. Últimos Estudos, 1944, p. 39.
  5. In Gramática Metódica da Língua Portuguesa, 29a. ed., p. 169; Editora Saraiva.
  6. Dubitando ad veritatem pervenimus, escreveu o eloquente Cícero (Tusculanae Disputationes, I, 30, 73), o que, traduzido para o nosso vernáculo, quer dizer: Duvidando chegamos à verdade.
  7. Réplica, nº 10 (Obras Completas de Rui Barbosa, vol. XXIX, t. II, p. 49).
  8. Prova diabólica Probatio diabolica. “Prova impossível de fazer-se. Prova que se perde na noite dos tempos. Prova absurda” (Leib Soibelman, Enciclopédia do Advogado, 3a. ed., p. 297; Editora Rio).
  9. Charles Seife, Os Números (Não) Mentem, 2012, pp. 220-222; trad. Ivan Weisz Kuck; Editora Zahar; Rio de Janeiro. Em confirmação da verdade de que também as máquinas, não só os homens, conjugam o verbo errar na voz ativa, traz o autor à colação dois casos frisantes: I- (...) em 2003, uma eleição em Boone County, Iowa, inicialmente registrou 144 mil votos em máquinas eletrônicas, embora só houvesse 19 mil eleitores cadastrados. II- Às vezes as máquinas roubam votos de um candidato e dão a outro. Em 2000, o sistema de votação eletrônica de um condado da Flórida registrou 16 mil votos negativos para Gore, enquanto Bush recebeu aproximadamente 2.800 votos tudo em uma área com menos de seiscentos eleitores registrados” (op. cit., p. 221).
  10. Op. cit., vol. XXX, t. I, p. 73.
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Sobre o autor
Carlos Biasotti

Desembargador aposentado do TJSP e ex-presidente da Acrimesp

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BIASOTTI, Carlos. Da presumida segurança da urna eletrônica. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 27, n. 6783, 26 jan. 2022. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/96110. Acesso em: 24 abr. 2024.

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