Capa da publicação O caso Moïse: Justiça Retributiva x Justiça Restaurativa
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O caso Moïse: Justiça Retributiva x Justiça Restaurativa.

Necessidade de atacar as causas da violência com políticas públicas e ações afirmativas

03/02/2022 às 17:44
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1. Introdução

O presente texto busca refletir sobre soluções para grave quadro de violência e cultura de ódio que temos em nosso país, a partir da leitura de um caso, infelizmente, muito triste que foi a morte do jovem congolês Moïse Kabamgabe, morto por diversas agressões sofridas na noite do dia 24 de janeiro de 2022, num quiosque do Ponto 8, Tijuca, Cidade e Estado do Rio de Janeiro. O linchamento e morte do congolês não é um caso isolado. Moïse é parte de uma triste estatística de violações aos Direitos Humanos (DDHH) e negação da cidadania e dignidade da pessoa humana de pessoas que vivem em situação de vulnerabilidade social, como é o caso de um grande número de imigrantes e refugiados que temos no Brasil, que vêm para cá, na esperança de dias melhores. Vale dizer que a situação dos refugiados e migrantes é uma questão para os DDHH no mundo inteiro.

O objetivo deste artigo é chamar a atenção para o combate as causas de violências e violações aos DDHH, como a que ocorreu no dia 24 de janeiro, que estão crescente cultura de violência que cresce em nossa sociedade e é tolerada, muitas vezes, pelo Estado e a sociedade. Além das cenas do espancamento, chocou a opinião pública, a forma como se comporta diversas pessoas que passaram no momento da agressão e não esboçaram nenhuma violência ou indignação com a situação. Sabemos que não é fácil agir nessas horas, mas o cidadão tem que ter canais confiáveis para acionar as autoridades e instituições nesses momento, em que pessoas são agridem uma pessoa de forma desproporcional, injusta e covarde.

Como justificativa podemos continuar a dizer: vidas negras importam, é preciso continuar denunciando casos como esse, pensar alternativas para a solução do problema e propor políticas públicas e ações afirmativas que visem a superação desses problemas, pois, não basta ter leis que garantam direitos aos cidadãos, precisamos de políticas públicas e ações afirmativas que tornem isso uma realidade. Se a cultura do ódio e o preconceito está presente em nossa sociedade, precisamos, no mínimo, de uma política de educação em direitos humanos, cultura da paz, e não violência que comece a plantar as sementes de uma nova sociedade que busque o diálogo e o respeito como formas de solução dos conflitos, sem descambar para a violência. Nunca é demais dizer que: "...A educação é a arma mais poderosa que temos para transformar o mundo"! (MANDELA, 2018)

Quando Nelson Mandela (Madiba) nos disse isso, sintetizou um caminho que está em vários diplomas legais nacionais, de que a educação é a ferramenta para construção de uma cultura cidadão, democrática e promotora da dignidade humana em nosso país. Esse caminho está pavimentado no Programa Nacional de Direitos Humanos - PNDH, em suas três versões, (BRASIL, 2009), no Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos - PNEDH (BRASIL, 2006) e nas Diretrizes Nacionais para a Educação em Direitos Humanos (BRASIL,2012), e em outros documentos, tendo em vista, que o Plano Nacional de Educação - PNE (BRASIL) tem como objeto a educação como um DDHH, já os outros planos citados, tratam a educação como uma ferramenta para construção de novos direitos e de uma cultura cidadã, democrática e e respeito à dignidade humana, como prevê nossa Constituição Federal de 1988, em seu artigo 1º (BRASIL, 1988).

Como resultado desta análise propomos a Justiça Restaurativa com mecanismo para mediar conflitos que envolvem DDHH, como é o caso do Moïse Kabamgabe, na perspectiva de restaurar o equilibro quebrado com a violação a esses direitos. A justiça restaurativa está no equilibro das ações judiciais e extrajudiciais, como políticas públicas e ações afirmativas, na contenção da violência, seja ela, física, simbólica ou residual, como acontece em alguns casos. A certeza temos que, se não forem realizadas ações sociais e políticas públicas, as instituições de repressão aos crimes não vão dar conta do imenso problema social, já que a atuação seria nas consequências e não nas causas da violência.

Por fim, cabe dizer que no dia 30 de janeiro a Organização das Nações Unidas (ONU) comemora o dia para reflexão sobre a não violência e cultura da paz. Isso revela o paradoxo que os DDHH vivem no século XXI, ao mesmo tempo em que crescem as normas de proteção e promoção dos DDHH os casos de violação aumentam alimentados por uma cultura de ódio. Só nos resta amplificar a difusão desses documentos e da doutrina dos DDHH em toda a sociedade, para que um dia possamos ter uma cultura de respeito à cidadania e dignidade humana.


2. Os fatos

Na noite do dia 24 de janeiro de 2022, o jovem Moïse Kabamgabe foi durante espancado até a morte, por pessoas que estavam no local. O caso chocou a sociedade brasileira e todo mundo, pelo espetáculo de violência e crueldade. Mesmo os agressores tentando socorrer a vítima, quando o mesmo não apresentava sinais vitais - segundo as autoridades policiais - isso não redimi ou anula a violência realizada. Moïse Kabamgabe, cidadão congolês, veio ao Brasil como outros migrantes e refugiados, em busca de dias melhores e condições de sobrevivência. A Embaixada do Congo no Brasil cobra explicações do governo brasileiro e lembrou que existem 04 (quatro) casos de morte do congolês no Brasil (UOL NOTÍCIAS, 2022).

Este caso não foi um fato isolado, ele pertence a uma triste estatística de violência física e simbólica no Brasil que é estimulada por uma cultura de ódio, preconceito e desprezo pelo o outro. O jovem foi vítima, provavelmente, por ser negro, migrante ou refugiado neste país, com poucos recursos para a sua sobrevivência, o que o levava a trabalhos sem a proteção da legislação. Na situação da vítima existem muitas pessoas no Brasil, Congoleses, Haitianos, Venezuelanos, entre outros, cresce o número de pessoas que buscam no Brasil um país onde possam sobreviver longo da guerra, pobreza, perseguição política e conflitos armados. Infelizmente, existe pouco apoio do Estado e as instituições que atuam nessa realidade, como o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiado (ACNUR), também dispõem de poucos recursos frente a crescente demanda.

A falta de (in)formação leva a que a sociedade não tenha muita afinidade com essas situações, com algumas exceções, como é o caso da pastoral do migrante da Arquidiocese do Salvador (ARQUIDIOCESE DO SALVADOR, 2022) e da Rede Universitária de Estudos e Pesquisas Migratórios (RUPEM), articulação formada por universidades baianas, entre elas, a Universidade do Estado da Bahia (UNEB), a população tem pouca ou nenhuma conhecimento sobre essas situações, o que torna ainda mais difícil o acolhimento desses grupos em território nacional. a ausência de políticas pública e formas de acolhimento dessas pessoas, leva a que eles fiquem vulneráveis a violência e a todas as formas de violação a seus direitos. É uma situação que o Estado e as instituições de proteção social não podem dar as costas, pois, situações mais graves podem ocorrer.

A violência objeto central desse texto aconteceu - em última análise - pela cultura de ódio existente em nossa sociedade, que leva a um grupo de pessoas a agredir um ser humano até a morte. A família e a sociedade clamam por reparação, a sociedade e a instituição respondem a prisão e julgamento dos acusados, mas a pergunta que não quer calar é: será que isso evitará que outros casos desses aconteçam? A primeira vista, a punição dos acusados levaria a quebra a sensação de impunidade que por muito tempo existiu e existe em nossa sociedade. Mas a situação não é tão simples assim, mesmo a sensação de impunidade não será resolvida com a simples prisão dos culpados. Em outras palavras, o modelo de Justiça punitiva e retributiva de legislação penal não resolve todos os problemas, a punição dos culpados, não elimina a cultura de violência, só faz crescer. A mediação desses conflitos requer uma outra forma de justiça, a justiça restaurativa, que busca reequilibrar o sistema que foi desajustado com a violação aos DDHH.


3. Justiça punitiva retributiva x justiça restaurativa

Com relação ao conceito de Justiça, Estevão (2001) nos diz que o capitalismo coloca essa questão como se fosse um único bem a ser entregue a sociedade, contudo, um olhar mais apurado nos mostra, que existem diferentes concepções sobre justiça, o que nos leva a concluir que - para o conjunto da sociedade - a ideia de Justiça pode ter significados diferentes, inclusive, antagônicos.

Em relação a doutrina criminal, o conceito de Justiça de punitiva e retributiva traz a ideia de que a Justiça tem como objetivo a punição do infrator, endo irrelevante o efeito de retribuir o mal do crime com o mal da pena. Elimina-se, deste modo, a ideia de transação, conciliação, reparação, sustentando que o delito é uma afronta a toda a sociedade e como tal deve ser punido (DIREITONET, 2022).

A justiça restaurativa, por sua vez, é concebida como uma técnica de solução de conflitos e violência que se orienta pela criatividade e sensibilidade a partir da escuta dos ofensores e das vítimas. Essa concepção dá um novo sentido a melhor forma de reparar um dano sofrido. A denominação "restaurativa" confere ao tema aplicação da justiça a ideia de "restaurar", equilibrar, a situação entre as partes e toda a sociedade (ENCICLOPÉDIA JURÍDICA DA USP, 2022).

No segundo semestre de 2014 e primeiro semestre de 2015 tivemos a oportunidade de realizar nossos estudos de pós-doutorado na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), onde foi possível estudar sobre a Justiça de transição na África do Sul, onde ficou claro para nós a presença da concepção da Justiça Restaurativa em todo o processo. As lideranças que conduziram este processo como Nelson Mandela e Desmond Tutu buscaram na Justiça Restaurativa e filosofia Ubuntu os elementos necessários para organização do processo, onde o objetivo foi reparar o equilibro dentro da sociedade. Neste processo, além dos mecanismo judiciais, tiveram grande importância os mecanismos extra judiciais como a Educação em Direitos Humanos (EDH) e a efetivação de políticas públicas, para acabar com o cenário de violência e reunir a sociedade.

Em nossa pesquisa verificamos, que neste processos existe uma forma de violência residual que fica escondida até que possa explodir novamente, na forma de grandes violações aos direitos humanos. Os mecanismos judiciais são importantes no primeiro momento, mas, são as políticas públicas e a EDH que garantem o efeitos de longo prazo. Na conversa com lideranças de organizações não governamentais, foi possível constatar que a EDH era um ingrediente fundamental para a superação dos graves problemas de violação aos DDHH no país. Em outras palavras, a educação em e para os Direitos humanos, a cultura da paz e a não violência, são ingredientes essenciais para manutenção da democracia, cidadania e dignidade da pessoa humana de uma nação.


4. Conclusão

De todo o exposto, podemos concluir que o caso de Moïse requer providência policiais e judiciais, mas, isto, por si só, não vai resolver o problema da violência e preconceito em nosso país. Existe uma cultura de ódio instalada em nossa sociedade que precisa ser combatida com informação, formação e com política públicas que garantam os direitos da pessoa humana. Se Moïse e sua família tivessem tido acesso a políticas públicas de inclusão social e produtiva - nos dez anos que passou no Brasil - provavelmente, não teríamos mais uma vida perdida para a guerra da violência, além deles estarem contribuindo para o desenvolvimento do país e da região onde moram. A ausência do Estado foi sentida neste caso, que agora terá a dura tarefa de apurar os fatos e explicar toda a situação a comunidade internacional.

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Educar em Direitos Humanos, promover a cultura da paz e não violência são ingredientes necessários a construção de uma sociedade mais justa, fraterna e democrática. É preciso que governos, nas três instâncias, entendam essa realidade e comecem a investir na formação da população. O sistema educacional é um dos caminhos, já temos uma marco legal para isso explicitado nas Diretrizes para a Educação em Direitos Humanos do Conselho Nacional de Educação (BRASIL, 2012), no Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos - PNEDH (BRASIL, 2006) e no Programa Nacional de Direitos Humanos - PNDH (2009). Adicione-se a isso, a necessidade de investir na efetivação dos 17 Objetivos do Desenvolvimento Sustentável e Agenda 2030, que são uma continuidade dos DDHH previstos na Declaração Universal dos Direitos Humanos (ODS, 2022).

Já temos os marcos legais, agora é preciso criar planos, traçar objetivos, estipular metas que possam ser seguidas por todos os atores sociais, em busca de uma sociedade mais humana e com justiça social. Vamos, portanto, abrir o debate sobre quais são os mecanismos extrajudiciais de contenção da violência, como promover a defesa social da população com políticas públicas e ações afirmativas. Com ter tolerância zero com a violência através da estipulação de programas que promovam a inclusão social e produtiva das pessoas. Precisamos pensar em como respeitar a diversidade, a multiplicidade de povos e cultural, a diversidade cultural e os direitos humanos. Vamos atuar nas causas da violência e não somente em suas consequências.


Referências

ARQUIDIOCESE DO SALVADOR. Pastoral do Migrante. Salvador: Arquidiocese de São Salvador. Disponível em https://arquidiocesesalvador.org.br/tag/pastoral-do-migrante/. acesso em 03.02.2022.

BRASIL. Constituição Federal de 1988. Brasília: Casa Civil da Presidência da República. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em 03.02.2022.

BRASIL. Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH). Brasília: Casa Civil da Presidência da República, 2009. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2009/decreto/d7037.htm. Acesso em 03.02. 2022.

BRASIL. Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos (PNEDH). Brasília: Ministério da Educação (MEC), 2006. Disponível em http://portal.mec.gov.br/docman/2191-plano-nacional-pdf/file. Acesso em 03.02.2022.

BRASIL. Diretrizes Nacionais para a Educação em Direitos Humanos, 2012. Conselho Pleno do Conselho Nacional de Educação (CNE), Ministério da Educação (MEC). Brasília: Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos (MDH). Disponível em https://www.gov.br/mdh/pt-br/navegue-por-temas/educacao-em-direitos-humanos/diretrizes-nacionais-para-a-educacao-em-direitos-humanos, acesso em 03.02.2022.

BRASIL. Plano Nacional de Educação - PNE - Lei 13.205 de 2014. Brasília: Ministério da Educação, disponível em https://pne.mec.gov.br/. Acesso em 03.02.2022.

DIREITONET: Dicionário jurídico. Disponível em https://www.direitonet.com.br/dicionario/exibir/2070/Justica-retributiva#:~:text=Tem%20como%20objetivo%20a%20puni%C3%A7%C3%A3o,%C3%A9%20uma%20afronta%20%C3%A0%20sociedade. Acesso em 03.02.2022.

ENCICLÓPEDIA JURÍDICA DA USP. Justiça Restaurativa. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2022. Disponível em https://enciclopediajuridica.pucsp.br/verbete/138/edicao-1/justica-restaurativa. Acesso em 03.02.2022.

MANDELA, M. A educação é a arma mais poderosa que você tem para transformar o mundo. In: ROCHA, J.C. 100 ideias para inspirar você a transformar o mundo. Editora Cia do Ebook, 2018.

ODS. Objetivos do Desenvolvimento Sustentável e Agenda 2030. Brasília: ODS Brasil: Portal do Governo. Realização IBGE e Secretaria Especial de Articulação Social. Disponível em https://odsbrasil.gov.br/. Acesso em 03.02.2022.

UOL NOTÍCIAS. Assassinato de jovem congolês destrói imagem de país cordial e hospitaleiro... - Veja mais em https://noticias.uol.com.br/opiniao/coluna/2022/02/02/assassinato-de-jovem-congoles-destroi-imagem-de-pais-cordial-e-hospitaleiro.htm?cmpid=copiaecola. 2022.

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Sobre o autor
José Cláudio Rocha

Professor pleno da Universidade do Estado da Bahia (UNEB) é professor do Departamento de Ciências Humanas e Tecnologias (DCHT), Campus XIX, Camaçari e coordenador do Centro de Referência em Desenvolvimento e Humanidades (CRDH/UNEB). tem graduação em direito (UFBA); ciências econômicas (UFBA) e análise e desenvolvimento de sistemas (UNINASSAU). Especialização em Administração Pública (UEFS); Ética e Desenvolvimento (INEAM/OEA) e Gestão de Projetos (UNIRIO). Mestrado (UFBA) e Doutorado (UFBA) em educação e pós-doutorado (UFSC) em direito.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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