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A inconstitucionalidade da Lei n° 14.460/2022 que regulamenta a aplicação de multas pelo TCM/BA

04/03/2022 às 08:30
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Os parlamentares baianos atuaram em afronta ao princípio constitucional da simetria ao limitar a possibilidade de aplicação de multas pelo tribunal de contas.

Recentemente, no dia 02 de fevereiro de 2022, entrou em vigor no estado da Bahia a Lei Estadual n° 14.460. A norma, curta em seu conteúdo, versa exclusivamente sobre requisitos para aplicação de sanções pelo Tribunal de Contas dos Municípios do Estado da Bahia (TCM/BA), conforme segue:

Art. 1º Nos julgamentos de contas de gestores públicos, no âmbito do Tribunal de Contas dos Municípios, fica vedada a aplicação de multas e/ ou responsabilização pessoal aos gestores públicos nos seguintes termos:

I quando não comprovado o desvio de recursos em benefício próprio ou de familiares;

II quando não comprovado que o gestor agiu com dolo no ordenamento de despesas;

Art. 2º Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.

As disposições da norma em estudo, com as inovações que prevê para a aplicação de sanções, trouxeram surpresa ao mundo jurídico, especialmente no âmbito dos que compõem os Tribunais de Contas e entre os estudiosos do processo de Controle Externo.

A lei em questão, aprovada pela Assembleia Legislativa do Estado da Bahia (AL/BA) e posteriormente promulgada pelo Presidente da Casa Legislativa, possui defeitos que a aproximam da inconstitucionalidade, pelo menos parcial, como será discutido adiante.

A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CRFB/88), no Título IV, Capítulo I, Seção IX, trata da fiscalização contábil, financeira e orçamentária da União. Nesse sentido, esclarece Viana (2009) que o artigo 71 da norma constitucional, ao tratar do controle externo, deixa claro que a competência para o exercício da função de controle externo é dos Tribunais de Contas, não podendo, portanto, ser exercida sem esses órgãos.

Mais adiante, no inciso VIII do mesmo artigo, o legislador constitucional afirma: Art. 71. [...] VIII - aplicar aos responsáveis, em caso de ilegalidade de despesa ou irregularidade de contas, as sanções previstas em lei, que estabelecerá, entre outras cominações, multa proporcional ao dano causado ao erário.

A interpretação desse inciso não abre margem para que o legislador infraconstitucional seja criativo e estabeleça restrições à prerrogativa prevista pela Constituição. Nesse sentido são os dizeres do artigo 75: Art. 75. As normas estabelecidas nesta seção aplicam-se, no que couber, à organização, composição e fiscalização dos Tribunais de Contas dos Estados e do Distrito Federal, bem como dos Tribunais e Conselhos de Contas dos Municípios.

Portanto, a multa pode e deve ser aplicada em caso de irregularidade de despesa, com a possibilidade de estar vinculada a dano ao patrimônio público. Tais sanções materializam, respectivamente, a sanção punitiva e a sanção reparadora utilizada pelos Tribunais de Contas.

Falando da sanção reparadora, que, repiso, é a multa aplicada com vinculação a uma lesão ao patrimônio público, percebe-se que a limitação proposta pela lei baiana não possui sustentação. A ação ou omissão do gestor público que cause prejuízo financeiro ao Estado, pela não observância de leis contábeis, financeiras, dentre outras, resulta, por via lógica e consequente, na obrigação de reparar o dano. Não tem importância se o desvio de recursos, espécie dos danos ao erário, reverteu em benefício do gestor ou de seus familiares, como almeja a lei discutida.

Os parlamentares baianos atuaram como se detivessem atribuições de alteração da norma constitucional, pois, ao limitar a possibilidade de aplicação de multas, em hipótese não prevista no texto da CRFB/88, desobedeceram ao dever de simetria existente entre o TCU e as demais Cortes de Contas. Sendo assim, o inciso I contraria a constituição e, por isso, deve assim ser taxado.

A Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB) sofreu alterações no ano de 2018 por meio da Lei nº 13.655/2018. Foram alterados e incluídos múltiplos dispositivos, sendo que, para o tema discutido, nos interessa a inclusão do artigo 28 que aduz: Art. 28. O agente público responderá pessoalmente por suas decisões ou opiniões técnicas em caso de dolo ou erro grosseiro.

Em síntese, o agente público, para ser responsabilizado pessoalmente e ser sancionado de acordo, deve ter atuado na conduta irregular com dolo ou por conta de erro grosseiro.

O objetivo da mudança foi possibilitar o escalonamento das multas aplicadas, da mesma forma como ocorre no direito penal quanto à gradação da pena, pela análise da gravidade da conduta. De certo não podemos comparar um erro sem desculpas com algo que foge do conhecimento geral do gestor mediano.

Portanto, a limitação trazida pela inovação legislativa no corpo da LINDB alcança, no tocante aos Tribunais de Contas, somente a seara punitiva, não se aplicando no caso de dano ao erário, ocasião em que o dever de reparação existe independentemente dos requisitos acima, haja vista que a finalidade não é sancionar e sim ressarcir o prejuízo causado.

Para dirimir controvérsias porventura causadas pela Lei nº 13.655, no ano seguinte, ela foi regulamentada pelo Decreto nº 9.830, de 10 de junho de 2019, que em seu artigo 12 dispôs:

Art. 12. O agente público somente poderá ser responsabilizado por suas decisões ou opiniões técnicas se agir ou se omitir com dolo direto ou eventual, ou cometer erro grosseiro, no desempenho de suas funções.

§1º Considera-se erro grosseiro aquele manifesto, evidente e inescusável praticado com culpa grave, caracterizado por ação ou omissão com elevado grau de negligência, imprudência ou imperícia.

[...]

§3º O mero nexo de causalidade entre a conduta e o resultado danoso não implica responsabilização, exceto se comprovado o dolo ou o erro grosseiro do agente público.

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O inciso II da Lei n° 14.460/2022 do estado da Bahia, analisada neste ensaio, tenta reproduzir, de forma parcial, o que já está incluído no ordenamento jurídico nacional. Trata-se, novamente, assim como o inciso I, de equívoco por parte dos legisladores da AL/BA. Por motivos alheios ao presente autor, houve um ímpeto de reproduzir, na legislação estadual, dispositivo da LINDB e, ainda assim, de maneira incompleta.

Isso porque, além de não tratar do erro grosseiro, traz a questão do dolo de forma parcial. O assunto já foi devidamente regulamentado pelo Decreto nº 9.830, que prevê com clareza duas espécies de dolo, o direto e o eventual. O dolo direto é aquele que demonstra o intuito consciente do agente em praticar e obter um resultado. Por sua vez, o dolo eventual é aquele em que o agente não almeja o resultado, apesar de previsível, mas assume o risco de produzi-lo.

No âmbito dos processos de controle externo, com o natural avanço das análises técnicas e dos julgamentos, os Tribunais de Contas conseguem demonstrar claramente a questão da responsabilização dos agentes públicos, ou seja, o nexo de causalidade que liga o gestor à irregularidade. Contudo, somente isso é não é suficiente, como bem denota o § 3º do Decreto nº 9.830.

Portanto, é dever das Cortes de Contas fazer uso dos elementos colhidos por iniciativa própria ou através do efetivo contraditório para analisar a parte subjetiva de determinada conduta. Um dos exemplos de conduta dolosa que pode ser citado é a ignorância proposital, que ocorre quando o agente público realiza um ato administrativo viciado, mesmo quando possui razoável certeza de que ele está sendo feito em desacordo com determinada norma. Ele executa o ato, fechando os olhos para a suspeita que paira sobre a sua legalidade, ou seja, assume o risco e dá prosseguimento na sua condução.

Sendo assim, o inciso II da Lei n° 14.460/2022 do estado da Bahia não possui razão de existir, sendo incompleto, desnecessário e inócuo, além de demonstrar o desconhecimento do ordenamento jurídico que se aplica aos Tribunais de Contas.

O confronto do texto legal em discussão com os dispositivos constitucionais e infraconstitucionais citados demonstram, no mínimo, a inconstitucionalidade parcial da Lei n° 14.460/2022 do estado da Bahia.

A norma, pelos defeitos apresentados merece ser eliminada, o quanto antes, do ordenamento jurídico do estado da Bahia, seja pela declaração de inconstitucionalidade, ou por iniciativa da própria AL/BA, pela via da revogação.


REFERÊNCIAS

BAHIA, Lei nº 14.460, de 01 de fevereiro de 2022. Dispõe sobre a punição a gestores públicos no âmbito de julgamentos do TCM e dá outras providências. Disponível em: https://egbanet.egba.ba.gov.br/alba/ver-pdf/13558/#/p:23/e:13558. Acesso em: 07 jan. 2022.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, de 05 de outubro de 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm. Acesso em: 07 jan. 2022

____, Decreto Lei nº. 4.657, de 4 de setembro de 1942 Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del4657compilado.htm. Acesso em: 07 jan. 2022

___. Lei nº 13.655, de 25 de abril de 2018. Inclui no Decreto-Lei nº 4.657, de 4 de setembro de 1942 (Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro), disposições sobre segurança jurídica e eficiência na criação e na aplicação do direito público. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2018/Lei/L13655.htm#art1. Acesso em: 07 jan. 2022.

VIANA, Ismar. Fundamentos do processo de controle externo: uma interpretação sistematizada do texto constitucional aplicada à processualização das competências dos tribunais de contas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2019. 296 p. ISBN 978-85-519-1458-8.

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Sobre o autor
Frank Martins Tavares Filho

Graduado em Direito pela Universidade de Fortaleza (UNIFOR). Advogado. Especializando em Direito Processual Civil pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG). Analista de Controle Externo do Tribunal de Contas do Estado do Ceará (TCE/CE). Secretário Adjunto da Secretaria de Serviços Processuais do TCE/CE.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FILHO, Frank Martins Tavares. A inconstitucionalidade da Lei n° 14.460/2022 que regulamenta a aplicação de multas pelo TCM/BA. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 27, n. 6820, 4 mar. 2022. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/96363. Acesso em: 26 abr. 2024.

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