Atualmente, tramitam em todo país diversas demandas que têm por escopo reparar dano moral causado pela ausência de comunicação escrita anterior à inscrição do nome de consumidor inadimplente em cadastro restritivo de crédito. Em grande parte dessa miríade de ações tem se questionado se o fornecedor dos dados - o credor da obrigação - é parte legítima passiva [01].
O Superior Tribunal de Justiça, em julgados recentes, reconheceu a ocorrência de dano moral na hipótese a ser reparado, todavia, somente pelo órgão responsável pela manutenção dos registros de proteção ao crédito [02]. O eminente Ministro desta Corte, Aldir Guimarães Passarinho Júnior, também já lecionou nesse sentido:
"Parece-me, entretanto, que pela natureza dos bancos de dados e cadastros, na dicção do art. 43, parágrafo 5º, "entidades de caráter público", têm elas responsabilidade específica e exclusiva por atos que lhes competem unicamente, e não aos credores que fazem uso de seus serviços. O parágrafo 2º do art. 43 não traz determinação dessa ordem ao credor. Não compete ao credor comunicar que vai abrir, mesmo porque não é ele quem o faz, e, além disso, teria mais o tom, ou de condição, ou de ameaça (...se não houver o pagamento, será aberto). Quem abre o cadastro negativo, a ficha ou registro é a entidade cadastral, daí, se é este o ato a ser informado ao consumidor, a obrigação deve estar com quem concretamente promove o ato, e não o credor, que apenas requer a abertura, em face da mora então já configurada. Nessa ótica, feita a apresentação do fato restritivo pelo credor – que por isto, é claro, é o único responsável – o processamento da informação passa à alçada da entidade cadastral, que abrirá a ficha correspondente em seu banco de dados. Isso significa uma atividade interna da entidade, que responde por culpa ou dolo na manipulação dos elementos informativos que lhe foram confiados, repito, como instituição de caráter público. A legitimidade passiva, portanto, tenho eu, pertence a tais entidades, quando omissas quanto ao ônus da comunicação prévia ao consumidor dos dados que a seu respeito recebeu e estará arquivando, orientação esta sufragada em outros julgados, à qual me filio." [03]
Com a devida vênia, colimaremos demonstrar que o fornecedor dos dados da obrigação é responsável, ao lado do órgão de proteção ao crédito, pela realização da prévia comunicação escrita ao consumidor, nos termos do art. 43, §2º, combinado com o art. 7º, parágrafo único, ambos do Código de Defesa do Consumidor e, por isso, é parte legítima passiva ad causam em ação de indenização por danos morais.
A Constituição Federal, através dos artigos 5º, inciso XXXII, e 170, inciso V, alça a proteção ao consumidor ao cume do nosso sistema, inclusive tratando-a como direito fundamental.
Do mesmo modo, o direito ao devido processo legal, ao contraditório e à ampla defesa são garantias fundamentais da pessoa perante o Estado Democrático de Direito, conforme mandamento expresso contido no artigo 5º, incisos LIV e LV, da Magna Carta. Ao lado destas garantias fundamentais, há, ainda, o direito fundamental à informação, prescrito pelo artigo 5º, inciso XIV, da Constituição Federal.
Destarte, bem se observa que a ausência de anterior comunicação escrita ao consumidor acerca da inscrição de seu nome em cadastro de inadimplentes ofende direitos e garantias fundamentais. Outra não poderia ser a conclusão, haja vista que figurar em cadastro de inadimplentes certamente constitui um intenso gravame, cuja conseqüência ultrapassa a seara financeira e atinge o campo moral do consumidor. Reconhecemos que o cadastro pode ser útil e importante à viabilidade dos negócios, mas sua composição deve ser realizada com parcimônia, mediante estrita observância da legislação; qualquer constrição deve ser precedida de rigorosa cautela, segundo os ditames de uma sociedade democrática.
Não bastasse o rol de direitos constitucionais destacado, no plano infraconstitucional também há comando para que o consumidor não seja surpreendido pela inscrição de seu nome em cadastro restritivo de crédito.
O §2º do artigo 43 do Código de Defesa do Consumidor prescreve: "A abertura de cadastro, ficha, registro e dados pessoais e de consumo deverá ser comunicada por escrito ao consumidor, quando não solicitada por ele". Tal dispositivo alinha-se aos princípios constitucionais e corrobora o direito ao devido processo legal, ao contraditório e à ampla defesa.
É inconcebível em um Estado Democrático de Direito assegurar-se a um credor e a um administrador de cadastros a possibilidade de inscrever o nome de alguém em rol de inadimplentes sem que o desfavorecido seja informado previamente e pessoalmente. A norma esculpida no §2º do artigo 43 do Código de Defesa do Consumidor não comporta exceções.
Antes de os registros desfavoráveis ao consumidor tornarem-se públicos, devem o credor e o administrador de dados comunicá-los por escrito, possibilitando, assim, a abertura do contraditório e a incidência da ampla defesa. A melhor exegese recomenda, ainda, considerar-se abusiva eventual cláusula contratual que autorize o envio do nome do consumidor ao cadastro de inadimplentes sem prévia notificação.
Lembramos que o Código de Defesa do Consumidor, através do art. 51, considera nula de pleno direito disposição contratual abusiva, ou seja, desfavorável à parte hipossuficiente e materialmente vulnerável. O rol do citado artigo não é taxativo, o que autoriza o enquadramento de outras hipóteses.
Cumpre ressaltar, outrossim, que a ausência de prévia comunicação escrita não causa mera irregularidade, mas sim invalida a inscrição do nome do consumidor em cadastro de inadimplentes. Decerto, a notificação do consumidor antes do cadastro tornar-se público é ato solene, formal e necessário. Trata-se, portanto, de requisito indispensável à validade do cadastro desfavorável ao consumidor.
A situação vexatória de tomar conhecimento do cadastro através de terceiro enseja grave sofrimento moral. Não é preciso argumentar excessivamente para demonstrar que um cadastro que traz informações negativas acerca do consumidor, mormente inválido, gera inúmeros transtornos e abalos à sua honra e dignidade. Nesse ponto, a posição do Superior Tribunal de Justiça arrima-se ao que expomos; fixou-se, inclusive, o entendimento acerca da desnecessidade de comprovação da ocorrência de abalo moral. O atentado aos direitos relacionados à personalidade, provocados pela inscrição inválida em banco de dados, é mais grave e mais relevante do que a lesão patrimonial. O dano moral prescinde de demonstração, contentando-se a jurisprudência majoritária com a existência do ilícito. O consumidor ofendido nem sequer deve ser compelido a indicar a utilidade prática que teria a prévia comunicação escrita.
Por oportuno, não podemos deixar de esclarecer que a anterior comunicação escrita deve ser pessoal. Não basta ao órgão de proteção ao crédito nem ao credor da obrigação enviar uma correspondência à residência do consumidor desprovida de qualquer meio hábil a certificar a entrega pessoal. Somente diante da certeza de que o consumidor desfavorecido foi pessoalmente notificado, a ampla defesa, o devido processo legal e o contraditório são rigorosamente observados, o que autoriza, em seguida, a constrição de direitos.
No entanto, o que nos motivou a elaborar este ensaio foram as reiteradas decisões do Superior Tribunal de Justiça que declararam a ilegitimidade passiva dos fornecedores dos dados - credores das obrigações - no bojo de ações indenizatórias, conforme destacamos acima.
Jamais uma norma jurídica deve ser interpretada isoladamente [04], sem qualquer vinculação com o sistema, ainda mais tratando-se do sistema de proteção ao consumidor, que deve sempre ser interpretado de forma ampla e em seu benefício. Exclui-se da demanda indenizatória o credor da obrigação sob o argumento de que este apenas fornece os dados, mas não efetua o registro. Ora, ao enviar os dados ao órgão de proteção ao crédito, o credor está atuando diretamente para impor um gravame ao consumidor, devendo, por isso, colaborar para que este não seja surpreendido. Ademais, a posição do Superior Tribunal de Justiça exclui justamente aquele que aufere lucros e beneficia-se diretamente do cadastro restritivo, na medida em que deste se vale para proteger-se no mercado. Nosso ordenamento impõe àquele que obtém rendimentos e lucros todos os ônus inerentes; portanto, se o cadastro é útil à obtenção de lucros, deve o credor zelar para que as inscrições nele efetuadas observem a lei.
Entendemos, portanto, ser viável a realização de uma releitura do artigo 43, §2º, do Código de Defesa do Consumidor para se concluir que o dever nele contido dirige-se também ao credor da obrigação.
Conforme já demonstramos, não se pode negar que o registro das dívidas no cadastro do órgão de proteção ao crédito somado à ausência de comunicação anterior e escrita causa abalo moral, tudo relacionado pelo nexo de causalidade. Logo, assentado que incumbe ao credor providenciar a prévia comunicação escrita, a ele pode ser imputado o dever de reparar o dano, ao lado do órgão de proteção ao crédito.
Todos os elementos indispensáveis à configuração da responsabilidade civil podem ser verificados por ocasião da divulgação do registro negativo não comunicado previamente por escrito: omissão, nexo de causalidade e dano moral. Lembramos que o Código de Defesa do Consumidor adota, como regra, a teoria da responsabilidade objetiva, cuja incidência prescinde da demonstração de culpa [05]. Logo, basta apontar a omissão [06] daqueles que deveriam observar o art. 43, §2º, do Código de Defesa do Consumidor e o dano, que no caso decorre da mera ausência de prévia comunicação, para se ter por configurada a responsabilidade civil.
Desta forma, ao efetuar a interpretação sistemática, não pode o exegeta ignorar a norma contida no artigo 7º, parágrafo único, do Código de Defesa do Consumidor, segundo o qual: "Tendo mais de um autor a ofensa, todos responderão solidariamente pela reparação dos danos previstos nas normas de consumo".
Nesse sentido, a solidariedade passiva é legal e cogente, não podendo ser afastada. Todos aqueles que integram o procedimento de composição do cadastro restritivo devem diligenciar para que o consumidor seja comunicado por escrito antes da imposição do gravame, sob pena de atingir-se indevidamente a esfera jurídica do consumidor.
"Cabe a todos que administram e utilizam os sistemas de proteção ao crédito – fornecedores e banco de dados – cuidar para que as exigências do CDC sejam rigorosamente observadas" [07].
Sob a ótica do consumidor, pouco importa a avença que porventura exista entre o seu credor e o órgão de proteção ao crédito. Ainda que um deles obrigue-se perante o outro a efetuar a prévia comunicação, ambos respondem pelo dano moral suportado pelo consumidor. Embasadas em princípios constitucionais, as normas do Código de Defesa do Consumidor encarregam-se de relacionar juridicamente todos os envolvidos ao criar um dever perante o consumidor.
Esperamos, assim, fomentar o debate acerca da matéria, principalmente em virtude das inúmeras demandas que tramitam em nossos tribunais.
Bibliografia
FERRAZ JÚNIOR, Tercio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. Atlas, São Paulo, 3ª edição, 2001;
GRINOVER, Ada Pellegrini; BENJAMIN, Antônio Herman de Vaconcellos e; FINK, Daniel Roberto et al, Código Brasileiro de Defesa do Consumidor comentado pelos autores do anteprojeto, Forense Universitária, Rio de Janeiro, 8ª edição, 2004;
PASSARINHO JUNIOR, Aldir Guimarães. Cadastros de consumidores: questões controvertidas sob a ótica do Superior Tribunal de Justiça. Jus Navigandi, Teresina, ano 11, n. 1258, 11 dez. 2006. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/9177>. Acesso em: 10 mar. 2007;
SANTOS, Moacyr Amaral. Primeiras linhas de direito processual civil, 1º Volume, Saraiva, São Paulo, 21ª edição, 1999.
Notas
01 "Por outras palavras, o autor deverá ser titular do interesse que se contém na sua pretensão com relação ao réu. Assim, à legitimação para agir em relação ao réu deverá corresponder a legitimação para contradizer deste em relação àquele. Ali, legitimação ativa; aqui, legitimação passiva." (SANTOS, Moacyr Amaral. Primeiras linhas de direito processual civil, 1º Volume, Saraiva, 21ª edição, São Paulo, 1999, p.171).
Não esqueçamos, porém, que em nosso sistema, além da legitimação ordinária, exposta na lição do mestre Moacyr Amaral Santos, há a legitimação extraordinária e, para alguns, a legitimação autônoma para condução do processo.
02 REsp 821000/RJ, Recurso especial 2006/0035227-0, Rel. Min. Nancy Andrighi, Terceira Turma, DJ 09.10.2006, p.301; REsp 735701/CE; Recurso especial 2005/0046921-7, Rel. Min. Nancy Andrighi, Terceira Turma, DJ 15.05.2006, p.208; REsp 612619/MG; Recurso especial
2003/0215007-0, Rel. Min. Barros Monteiro, Quarta Turma, DJ 17.12.2004, p.573, entre outros.
03 PASSARINHO JUNIOR, Aldir Guimarães. Cadastros de consumidores: questões controvertidas sob a ótica do Superior Tribunal de Justiça. Jus Navigandi, Teresina, ano 11, n. 1258, 11 dez. 2006. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/9177>. Acesso em: 10 mar. 2007.
04 "Quando enfrentamos problemas lógicos, a doutrina costuma falar em interpretação lógica. O que se disse para a interpretação gramatical pode ser repetido nesse caso. Trata-se de um instrumento técnico, inicialmente a serviço da identificação de inconsistências. Parte-se do pressuposto de que a conexão de uma expressão normativa com as demais do contexto é importante para a obtenção do significado correto.
(...)
Por fim, quando se enfrentam as questões de compatibilidade num todo estrutural, falemos em interpretação sistemática (stricto sensu). A pressuposição hermenêutica é a da unidade do sistema jurídico do ordenamento. Há aqui um paralelo entre a teoria das fontes e a teoria da interpretação. Correspondentemente à organização hierárquica das fontes, emergem recomendações sobre a subordinação e a conexão das normas do ordenamento num todo que culmina (e principia) pela primeira norma –origem do sistema, a Constituição. Para a identificação dessa relação, são nucleares as noções discutidas de validade, vigência, eficácia e vigor ou força. A primeira e mais importante recomendação, nesse caso, é de que, em tese, qualquer preceito isolado deve ser interpretado em harmonia com os princípios gerais do sistema, para que se preserve a coerência do todo. Portanto, nunca devemos isolar o preceito nem em seu contexto (a lei em tela, o código: penal, civil etc.) e muito menos em sua concatenação imediata (nunca leia só um artigo, leia também os parágrafos e os demais artigos)." (FERRAZ JÚNIOR, Tercio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. Atlas, 3ª edição, São Paulo, 2001, p.283/285).
05 Art. 14, caput, da Lei 8.078/90.
06 Ao consumidor incumbe tão somente apontar a omissão e não prová-la. O fornecedor dos dados e o órgão de proteção ao crédito têm o ônus de demonstrar, em sede de contestação, que o consumidor foi pessoal e previamente comunicado por escrito, sob pena de sucumbirem. Não bastasse a possibilidade de inversão do ônus da prova, prevista no art. 6º, inciso VIII, do Código de Defesa do Consumidor, ninguém pode ser compelido a produzir prova negativa. Nesse caso, o ônus probatório deve ser distribuído aos demandados, pois, caso contrário, ante a impossibilidade real, o consumidor jamais veria sua pretensão ser atendida.
07 Leonardo Roscoe Bessa apud GRINOVER, Ada Pellegrini; BENJAMIN, Antônio Herman de Vaconcellos e; FINK, Daniel Roberto et al, Código Brasileiro de Defesa do Consumidor comentado pelos autores do anteprojeto, Forense Universitária, Rio de Janeiro, 8ª edição, 2004, p. 471.