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A proibição da concessão de liminares de desocupação de imóvel nas ações de despejo e a ADPF 828/MC

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Diante da melhora dos dados epidemiológicos, não há justificativa para nova prorrogação da proibição de liminares em ações de despejo.

1 INTRODUÇÃO

Cessam em 31 de março de 2022 os efeitos da medida cautelar incidental deferida na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 828 pelo Ministro Luís Roberto Barroso, e ratificada pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal. Tal medida prorrogou a vigência do prazo de suspensão das ordens de desocupação e despejo em razão da emergência em saúde pública de importância nacional (Espin) decorrente da infecção humana pelo coronavírus SARS-CoV-2.

Acertadamente ou não, o art. 4º da Lei nº 14.126/2021 proibiu, de modo genérico, a concessão de liminares para desocupação de imóveis urbanos nas ações de despejo, delimitando seu alcance aos contratos cujo valor mensal do aluguel não seja superior a R$ 600,00 (seiscentos reais), em caso de locação de imóvel residencial, ou a R$ 1.200,00 (mil e duzentos reais), em caso de locação de imóvel não residencial.

Referida proibição, nos termos da mencionada lei, vigoraria até 31 de dezembro de 2021, não fosse o deferimento da medida cautelar na ADPF nº 828, ajuizada pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), com vistas à extensão de seu termo final, sob o argumento de que os efeitos epidemiológicos e econômicos derivados da pandemia da COVID-19 ainda se faziam presentes, justificando a prorrogação do prazo suspensivo.

Todavia, há que se verificar que a situação fática contemporaneamente observada difere substancialmente daquela que ensejara a elaboração da Lei nº 14.216/2021. A título exemplificativo do que se sustenta, impende observar que, segundo os dados contemporâneos à data de elaboração deste artigo, mais de 74% da população brasileira já se encontrava totalmente vacinada. Além disso, a atual média móvel de mortes descresceu significativamente em relação aos números observados no mesmo período de 2021.

Diante da significativa melhora dos dados epidemiológicos, da reabertura quase integral dos diversos setores econômicos e da completude do ciclo vacinal da maior parte da população brasileira, não se vislumbra justificativa razoável, política ou jurídicamente, para que nova prorrogação da proibição de liminares de  desocupação de imóveis em ações de despejo seja adotada, legislativa ou jurisdicionalmente.

2 A PERSPECTIVA POLÍTICO-ECONÔMICA

Longe de contribuir para a melhoria dos indicadores econômicos ou para o aprimoramento do bem-estar da população brasileira, semelhante medida, caso novamente encampada, produzirá efeitos deletérios no mercado imobiliário, a par de derruir a confiança negocial na força obrigatória dos contratos, tornando, paradoxalmente, mais árdua a trilha de locatários na busca de um imóvel para moradia ou comércio. Eis o efeito que, metaforicamente, a desmedida ministração de um remédio pode causar: sua conversão em veneno, a prejudicar aqueles que supostamente seriam beneficiados com a prescrição.

Por certo, se, pela pena açodada do legislador, ou pela caneta do julgador de ocasião, tornar-se aceitável a dilargada supressão de um importante instrumento legal de salvaguarda ao cumprimento dos contratos, perder-se-á a confiança no escorreito adimplemento das prestações nele contidas. Com isso, mais garantias, reais ou fidejussórias, serão exigidas do locatário, a ponto de restringir o acesso ao mercado imobiliário a um reduzido plexo de agentes aptos a disporem desses mecanismos garantidores.

Quanto aos efeitos macroeconômicos, a mensagem transmitida não poderia ser pior. Dada a consabida demora para o provimento final em ações de despejo, a vedação à concessão de liminares para desocupação do imóvel vulnera uma das pedras de toque do sistema capitalista: a confiança no cumprimento dos contratos.

Porque nada irá ocorrer, a curto e médio prazo, ao locatário inadimplente, cria-se estrutura de incentivos a desestimulá-lo ao pontual pagamento dos alugueres, frustrando as expectativas de locadores, quando não os privando de rendimentos curiais à sua subsistência, posta a realidade de muitos brasileiros que sobrevivem às custas da renda locatícia.

Realidade pouco discutida no trato do problema visado é a hipossuficiência de locadores, especialmente daqueles afetados pelo preceito inscrito no art. 4º, parágrafo único, da Lei nº 14.126/2021. Ora, não raras vezes, aqueles que percebem alugueis inferiores a R$ 600,00 ou a R$ 1.200,00 são pessoas que têm nestes rendimentos os únicos recursos para sua mantença, como observado nos casos de idosos que locam um pequeno imóvel anexo à sua residência, popularmente denominado barracão, para complementarem a escassa renda da aposentadoria.

Em suma: do ponto de vista factual, inexiste ângulo de intelecção por meio do qual se possa sustentar razoavelmente nova prorrogação do prazo proibitivo da concessão de liminares de despejo.

3 A PERSPECTIVA JURÍDICA

À luz da teoria geral dos contratos, impera o vetusto brocardo romano, segundo o qual pacta sunt servanda. O princípio da força obrigatória dos contratos, a lume do qual as avenças pactuadas devem ser cumpridas pelos contraentes, deflui constitucionalmente do direito fundamental à propriedade privada, assim como do valor social da livre iniciativa, ditames do modelo capitalista adotado pela Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (arts. 1º, IV, 5º, caput, e 170, II, da CRFB/1988).

Não se ignora a importância do princípio constitucional da função social dos contratos. Entretanto, o dirigismo contratual é a exceção, e não a regra, diante da autonomia negocial das partes. Mais importante do que isso, qualquer mitigação à força obrigatória dos contratos ou a seus instrumentos garantidores deve ser racionalmente justificada, com base em elementos empíricos e jurídicos que, nos limites traçados pela teoria geral dos contratos, justifiquem a modulação perfilhada, respeitada a mediação aposta pelo princípio da proporcionalidade.

Feitas essas considerações, afigura-se juridicamente inadmissível que, de modo genérico, um evento pandêmico seja tomado como fundamento justificador para a proibição de liminares de despejo em todos os contratos situados em um determinado patamar de precificação. A pandemia, por si só, não tem o condão de conduzir à conclusão segundo a qual um dos contratantes suportou desequilíbrio negocial resultante na impossibilidade de cumprimento da prestação, ou na maior onerosidade de seu adimplemento.

Noutras palavras: são os efeitos do evento pandêmico individualmente afligidos, e não o evento em si, o supedâneo para eventual mutação do sinalagma contratual. Assim, considerando que tais efeitos foram sentidos de modo diverso pelos distintos locatários, sendo certo que considerável parcela deles sequer suportou decréscimo em seus rendimentos, não se pode, de um só lanço, concluir que todos não mais podem arcar com as parcelas locatícias, fazendo jus à indiscriminada suspensão, que mais se assemelha a uma moratória geral.

Pense-se, por exemplo, em um profissional da área de saúde que loca um quarto para sua moradia em uma pequena cidade, pagando por esse a quantia mensal de R$ 500,00 a título de aluguel. Inconteste que, prima facie, a situação econômica desse locatário não se alterou com o evento pandêmico, tampouco suas obrigações contratuais se tornaram impossíveis ou excessivamente onerosas. Desta feita, absolutamente desarrazoado, em situações como essa, privar o locador do importante instrumento legal consubstanciado na liminar de despejo, se configuradas suas hipóteses normativas de incidência.

Registre-se: fosse respeitada a sistemática normativa delineada pela teoria geral dos contratos, haveria que se perquirir a concomitante presença dos elementos descritos no suporte fático veiculado pelo art. 478 do Código Civil: (a) excessiva onerosidade da prestação para um dos contraentes; (b) causada por acontecimento superveniente, extraordinário e imprevisível; (c) a alterar substancialmente o equilíbrio contratual.

Apenas quando a prestação contratual, concretamente apurada, tiver se tornado onerosa de modo excessivo para o contratante é que a mitigação à força obrigatória dos contratos se justificará, afastadas as hipóteses de caso fortuito ou de força maior (art. 393, parágrafo único, do Código Civil), dependentes de demonstração da impossibilidade absoluta de cumprimento da avença.

Diante de tal quadro normativo, a genérica moratória operada nos pactos locatícios, mercê da proibição do deferimento das liminares de despejo, vulnera o núcleo estruturante da teoria geral dos contratos e, ao fazê-lo, afronta o direito constitucional à propriedade, para além de violar o primado da livre iniciativa.

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Não se pode descurar, outrossim, dos preceitos contidos na Declaração de Direitos de Liberdade Econômica (Lei nº 13.784/2019). Enaltecem-se os imperativos da liberdade como garantia no exercício de atividades econômicas, da intervenção subsidiária e excepcional do Estado, do respeito aos contratos, da proibição do aumento dos custos de transação sem demonstração de benefícios, assim como os princípios da intervenção mínima e da excepcionalidade da revisão contratual, de modo a repreender a irrazoável e arbitrária supressão de instrumento garantidor do fiel adimplemento dos contratos de locação (arts. 1º, § 2º, 2º, I e III, e 4º, V, da Lei nº 13.784/2019, e art. 421, parágrafo único, do Código Civil).

Especificamente acerca da antijuridicidade do aumento dos custos de transação sem demonstração de benefícios, calha rememorar o quanto afirmado sobre as consequências geradas pela redução da confiança no cumprimento das avenças locatícias, a incrementarem as exigências de garantias, reais ou fidejussórias, para os novos locatários. Quanto ao ponto, vale reproduzir as lições de Anderson Schreiber:

Não seria de se estranhar, por exemplo, que locadores residenciais passassem a alugar imóveis apenas a servidores públicos estáveis, com remuneração irredutível, e não já a profissionais autônomos cuja receita pode sofrer decréscimo por um motivo ou outro, se tal decréscimo pudesse gerar o dever de reduzir o valor do aluguel. (SCHREIBER, 2020, p. 456).

À luz de tais razões, para além de econômica e politicamente injustificável, o prolongamento desarrazoado da proibição de deferimento de liminares de despejo se afigura afrontoso ao direito fundamental à propriedade, à liberdade contratual e ao valor social da livre iniciativa, ao destituir de proteção suficiente os contratos de locação, privando-os, na prática, de sua necessária força obrigatória.

4 CONCLUSÃO

Ultimadas as brevíssimas reflexões traçadas sobre o fenômeno em apreço, constata-se que a vedação à concessão de liminares de despejo nos contratos de locação de imóveis urbanos residenciais e comerciais não pode, sob nenhum pretexto, converter-se no "novo normal".

Ao revés, a normalidade jurídica impõe o respeito à força obrigatória dos contratos, assim como às garantias legais, processuais ou materiais, erigidas como mecanismos de sua efetiva proteção.

Não se pode cogitar de liberdade contratual se os termos da avença, em seu concreto cumprimento, se esvaem ao alvedrio da legislação ou do pronunciamento jurisdicional de ocasião, a desconsiderarem a concreta e demonstrada afetação do sinalagma negocial como pressuposto indeclinável à mitigação de sua obrigatoriedade.

Que não se cometa, pois, o equívoco de prolongar a injustificada suspensão da concessão de liminares para desocupação de imóveis urbanos nas ações de despejo, sob pena de o exacerbado remédio envenenar o tão combalido paciente, a saber, a economia e o bem-estar dos brasileiros, assegurados pelos ditames constitucionais antes expostos.


REFERÊNCIAS

GOMES, Orlando. Obrigações. 19. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019.

MIRANDA, Pontes de. Tratado de direito privado: parte especial: volume XXII: direito das obrigações. Campinas: Bookseller, 2003.

PEREIRA, Caio Mario da Silva. Instituições de direito civil. Vol. 3. Contratos: declaração unilateral de vontade, responsabilidade civil. 24 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2020.

POSNER, Eric A. Análise econômica do direito contratual: sucesso ou fracasso. São Paulo: Saraiva: Direito GV, 2010.

POSNER, Richard A. Economic analysis of law. 7th ed. New York: Wolters Kluwer Law & Business, Aspen Publishers, 2007.

SCHREIBER, Anderson. Equilíbrio contratual e dever de renegociar. 2. ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2020.

TEPEDINO, Gustavo. Fundamentos do direito civil. Vol. 3. Contratos. 2. Ed. Rio de Janeiro: Forense, 2020.

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Sobre o autor
Gladston Bethônico Bernardes Rocha Macedo

Doutorando em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), sendo Bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (FAPEMIG). Mestre em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Advogado.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MACEDO, Gladston Bethônico Bernardes Rocha. A proibição da concessão de liminares de desocupação de imóvel nas ações de despejo e a ADPF 828/MC. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 27, n. 6844, 28 mar. 2022. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/96816. Acesso em: 22 dez. 2024.

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