IV – Das conclusões.
Este articulista, por mais que se esforce, não consegue – e não concebe – apreender a orientação preconizada pela Segunda Seção do Superior Tribunal de Justiça, que lastreia-se na ocorrência de caso fortuito ou força maior todas as vezes que debruça em autos que envolvam assaltos à mão armada em ônibus.
Para refutar, com todo respeito, o colendo Superior Tribunal da Cidadania, elenca-se o quanto segue:
a) as empresas de transporte de passageiros são concessionárias de serviço público, onde, de logo, resta aplicável o art. 37, §6º, da lei das leis. E mais que isso, elas participaram de uma licitação, na qual, evidentemente, previram seus ganhos e suas perdas quando do ofertamento do preço, que somado à capacidade técnica, fizeram-nas vencedoras (art. 45, da Lei nº 8.666/93);
b) o selo de concessionárias às ditas sociedades, por curial, as tornam um braço do próprio Estado, o que lhes impõe, igualmente, o dever constitucional de bem curar os direitos fundamentais do transportado, entrelaçando-as na responsabilidade de preservar a higidez deste último (art. 144, caput, da Constituição Federal);
c) contrariariam o espírito do Estado Democrático de Direito e a finalidade da ordem econômica, se conceber que uma empresa de ônibus, mesmo fazendo as vezes do Estado e sendo remunerada para tanto, venham tratar seus clientes como se eles não fossem seres humanos, atribuindo a fatos externos toda a sorte de motivos para exculpá-las;
d) o contrato de transporte de passageiros é de adesão (art. 54, do Código de Defesa do Consumidor), o que por si só desemboca em hermenêutica que favoreça ao passageiro (art. 47, do mesmo diploma legal), a qual somente se legitima pela garantia de sua incolumidade físico-mental durante o trajeto, sob pena de mau ferimento à cláusula implícita de salvaguarda da integridade do mesmo;
e) o caso fortuito e a força maior guardam, para sua configuração, dois predicamentos, a saber: imprevisibilidade e inevitabilidade. Não se há como cogitar de tais pressupostos, frente aos corriqueiros e crescentes assaltos à mão armada dentro de ônibus, sejam na zona urbana ou rural, tendo em mira que, se as transportadoras de pessoas investissem em meios tecnológicos mínimos já os dificultariam e muito;
f) pormenor que não deve passar despercebido, que põe à mostra cruenta realidade, é o de que para o traslado de cargas, as prefaladas sociedades munem-se de sofisticados equipamentos; conquanto, para os de pessoas, se contentam apenas com a presença do motorista, deixando-nas ao léu no campo da preventividade;
g) o princípio da dignidade humana, insculpido com férreas letras no art. 1º, III, da Lei Mater, choca-se frontalmente com a preferência patrimonialista que se empreende ao tráfego de objetos inanimados, relegando-se aos desvãos a figura do ser humano;
h) é de todo desproporcional, repugnante mesmo, enveredar-se pelo viés interpretativo que se franqueia maior valia às coisas do que às pessoas, onde se vilipendia a própria ordem dos bens jurídicos tutelados, grafada no art. 5º, caput, da nossa Carta Política, a qual se preocupa, com primazia, quanto à inviolabilidade da vida e, somente ao depois, volta-se ao campo patrimonial;
i) habitualmente, os meliantes adentram aos ônibus como se fossem passageiros e, somente no local aprazado por eles, anunciam seus execráveis intentos, o que capitula o vetusto instituto do "caso fortuito interno", incapaz de alijar a responsabilidade das transportadoras, uma vez que a internalidade, segundo boa doutrina, não rompe o nexo causal;
j) o fortuito interno é de fácil compreensão, uma vez que se os bandidos antes mesmo de exporem seus desejos criminosos forem vitimados por um acidente/assalto proveniente de outra quadrilha, farão jus à indenizabilidade como qualquer outro consumidor;
l) não deve ser deslembrado, ademais, que vige a Súmula nº 187 do Supremo Tribunal Federal, a qual não alforria as empresas de transporte quanto a atos danosos causados por terceiro, principalmente porque aquelas dispõem de duas possibilidades para se verem ressarcidas do que tiverem desembolsado, já que poderão acionar o Estado ou o próprio estranho que houvera agido de modo antijurídico;
m) o consumidor, aqui encartado como passageiro, jamais pode ser abandonado pela garantia normativa inserida na Lei nº 8.078/90, dado que os arts. 14 e 22 colocam-no, sobranceiramente, no cume da máxima proteção, mormente por existir visível vulnerabilidade dele, face às sociedades transportadoras;
n) com a novel alteração do sistema jurídico, em virtude da edição do Código Civil, o eixo da teoria da responsabilidade desviara-se do feitio aquiliano (culpa ou dolo) para o pálio da objetividade retratada no art. 927 (dano e nexo), de modo que, as atividades de risco e aqui estão consideradas as de transporte de passageiros, por si mesmas, já impõe a estas o dever de recompor gravames experimentados pelos trasladados;
o) a responsabilidade objetiva, emergente do direito substantivo, encontra foros de sociabilidade, porque as transportadoras lucram com a mercantilização de tais serviços, fazendo exsurgir as teorias do risco/proveito, que, antes de mais nada, prestarão a evitar qualquer modalidade de enriquecimento sem causa;
p) o Código de Defesa do Consumidor coloca em foco a pessoa do transportado e, por conta disso, trata como defeituosa a realização de serviço de transporte que não consegue levá-lo tão hígido quanto estava antes de iniciar o trajeto, daí porque se tornam incompatíveis com este diploma especial as excludentes gerais do direito civil;
q) o art. 734 do Código Civil, em momento nenhum, insere o caso fortuito como excludente da responsabilidade dos transportadores de passageiros;
r) a obrigação das empresas de ônibus, nos exercícios de seus misteres, é de resultado, de jeito que somente fato da natureza as extirpam (força maior);
s) se o legislador civil pretendesse que o caso fortuito figurasse na art. 734, tê-lo-ia feito nominalmente, como, aliás, se entrevê de outros tantos dispositivos que assim o enunciam;
t) é inconcebível que se retire do art. 734 do Código Civil interpretação extensiva para prejudicar o passageiro, o que contrariaria a própria tessitura da responsabilidade objetiva;
u) sistemicamente se torna obrigatória a conclusão de que somente a força maior é excludente da responsabilidade no contrato de transporte de passageiro, sob pena de infringência ao art. 37, §6º, da Constituição Federal, art. 734, do Código Civil e arts. 14, 22 e 47, do Código de Defesa do Consumidor;
v) a jurisprudência, como reiteração de julgados que deve "dar a cada um o que é seu", ao se orientar fora dos parâmetros da lei e de uma exegese histórico-evolutiva, em realidade, presta um desserviço aos jurisdicionado, de modo mais grave aqui, pois estes são vítimas de um evento (assalto à mão armada em ônibus) que eles em nada concorreram;
x) se se passar ao largo da responsabilidade objetiva, mesmo assim, as transportadoras de passageiros, ao não equiparem seus ônibus para colocá-los à altura da crescente onda de violência, se tornam responsáveis pelos nefastos acontecidos face à imperdoável omissão a que se submetem;
z) a não tomada das devidas medidas de segurança, como a colocação de meios tecnológicos para a inibição/obstaculização dos assaltos à mão armada, implicam nas figuras da negligência/imprudência, capituladas no art. 186, do Código Civil, sendo o guante da responsabilização desse ramo mercantil.
Mesmo diante de toda essa argumentação, será juridicamente sustentável, máxime ao atrelar-se ao princípio da dignidade humana e da finalidade da ordem econômica, a jurisprudência da egrégia Segunda Seção do Superior Tribunal de Justiça, no que se refere a assaltos à mão armada ocorridos no interior de ônibus?
De duas, uma: ou o ser humano nada vale, já que o transporte de coisas o suplanta, ou tudo que escrevemos até aqui fora fruto de um abecedário nascido de um engenhoso mecanismo cerebrino, elucubração de um surrealista operador do direito!
Prefiro ficar, ainda que no insulamento de mim mesmo, com a nunca olvidada frase de Túlio Ascareli, onde vaticina que: "Na atual crise de valores o mundo pede aos juristas idéias novas, mais que sutis interpretações" (apud Iara de Toledo Fernandes, no texto designado "A efetividade das normas constitucionais", in http://www.pge.sp.gov.br/centrodeestudos/bibliotecavirtual/Congresso/xtese1.htm; acessado em 12/03/2007)