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Inconstitucionalidade do IPTU de 2022

31/03/2022 às 13:50
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Qual a mágica utilizada pela Prefeitura paulistana para aumentar o IPTU em mais de 750% de 2021 para 2022?

Palavras-chave: IPTU. Razoabilidade. Trava. Alíquota. Função social da propriedade.


A polivante Lei nº 17.719, de 26-11-2021, que, entre outras coisas, altera a base de cálculo do ISS das SUPs e aumenta os valores unitários do metro quadrado da construção e de terrenos representa um verdadeiro tsunami tributário. Está eivado do vício incurável da inconstitucionalidade como veremos a seguir.

Quanto à inovação da base de cálculo do ISS dos profissionais liberais e das sociedades por eles formadas já foi objeto de artigo específico anteriormente divulgado.

Neste artigo, examinaremos a absurda elevação do IPTU, mediante utilização de critérios casuísticos e arbitrários e em afronta ao princípio da vinculação da administração a seus próprios atos.

Como se sabe, a Lei nº 15.889, de 5-11-2013, procedeu à atualização exacerbada dos valores unitários de metro quadrado da construção e do terreno previstos na Lei nº 10.235/1986 (Lei da PGV).

Na época a Fiesp, a Fecomércio e a Associação Comercial ajuizaram Ação Direta de Inconstitucionalidade perante o Tribunal de Justiça que concedeu a medida liminar para impedir o aumento. A Fiesp foi por nós representada, a Fecomércio, por Ives Gandra da Silva Martins e a Associação Comercial, pelo Gastão Alves de Toledo.

Como decorrência do compromisso da Prefeitura de que iria dispensar a cobrança do aumento do IPTU no exercício de 2014 e da aplicação da trava de 10% e 15% para imóveis residenciais e imóveis não residenciais, respectivamente, a partir do ano de 2015 a medida liminar foi revogada.

O art. 9º dessa Lei dispõe:

“Art. 9º A diferença nominal entre o crédito tributário total do IPTU do exercício do lançamento e o do exercício anterior fica limitada:

I – no caso de imóveis com utilização exclusiva ou predominantemente residencial, a 20% (vinte por cento) para fatos geradores ocorridos no exercício de 2014 e a 10% (dez por cento) para fatos geradores ocorridos nos demais exercícios;

II – nos demais casos, a 35% (trinta e cinco por cento) para fatos geradores ocorridos no exercício de 2014 e a 15% (quinze por cento) para fatos geradores ocorridos nos demais exercícios.” [1]

Porém, em 2015, o astuto legislador editou a Lei nº 16.272, de 30-9-2015, alterando a redação do art. 9º da Lei nº 15.889/2013 acrescentando-lhe os §§ 4º e 5º:

“§ 4º Para fatos geradores ocorridos a partir do exercício de 2016, o disposto no “caput” deste artigo:

I – não será aplicado no caso de imóveis considerados não construídos;

II – será aplicado exclusivamente para cálculo do Imposto Predial no caso de imóveis construídos para os quais conste excesso de área.

§ 5º O disposto no § 4º deste artigo não será aplicado para os imóveis:

I – em que existam obras paralisadas ou em andamento, devidamente licenciadas, na forma que dispuser o regulamento

II – cuja área total de terreno seja inferior a 500m2 (quinhentos metros quadrados).”

A Lei 15.889/2013, em sua redação original, determinou a redução do valor do IPTU na eventualidade de a aplicação das alíquotas sobre as base de cálculos apuradas segundo os valores unitários do metro quadrado da construção e do terreno previstos na PGV superar o limite de 10% e de 15%, respectivamente, para imóveis residenciais e imóveis não residenciais/terrenos do IPTU pago no exercício anterior. Assim, o legislador pôs um freio à valorização inflacionária do imóvel sabido que a valorização real fica bem aquém daquela.

Realmente, em época de inflação aguda a aplicação dos fatores de atualização pelos índices de variação do IBGE, do INPC, do INPCA etc. conduziria certamente a um valor estratosférico, sem respaldo na realidade sobre a qual incidem as normas jurídicas de tributação. Sabemos que na década de 80 tivemos a inflação de mais de 50% ao mês, o que fazia dobrar o valor do imóvel a cada dois anos.

Todavia, a Lei nº 16.272 de 30-9-2015 alterou a redação do art. 9º da Lei nº 15.889/2015, mediante acréscimos dos §§ 4º e 5º, como se viu.

Contudo, em caráter excepcional, para os exercícios de 2022, 2023 e 2024 colocou uma trava representada pelos índices de variação do INPCA do exercício anterior, como se verifica dos §§ 6º a 8º:

“§ 6º Excepcionalmente os lançamentos efetuados nos exercícios de 2022, 2023 e 2024 ficam limitados à variação do Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo - IPCA no exercício anterior, conforme última estimativa do Banco Central do Brasil disponível no dia 15 de dezembro do exercício da medição, e limitados a no máximo a 10% (dez por cento) da diferença nominal entre o crédito tributário total do IPTU do exercício do lançamento e o do exercício anterior.

§ 7º O limite de que trata o § 6º deverá ser único para todos os imóveis.

§ 8º Caso a variação do IPCA, calculada nos termos do § 6º, seja superior ao limite previsto no caput, aplicar-se-á o referido limite." (NR)

Acontece que a astuta Prefeitura paulistana contornou a trava de 10%, ao mesmo tempo que ignorou a trava representada pelos índices de variação do INPCA, conforme demonstraremos a seguir.

O esperto legislador, para driblar a aplicação das travas, usou e abusou de fatores casuísticos e aleatórios, como se verifica dos §§ 4º e 5º, que extrapolam os limites da discricionariedade do legislador, para descambar para a ostensiva arbitrariedade legislativa, afrontando o princípio da razoabilidade que limita a ação do legislador.

De fato, dispôs que a partir de 2016 não se aplica a trava em relação a imóveis não construídos (inciso I, do § 4º), sujeitos aos mesmos efeitos inflacionais dos imóveis edificados. O objetivo seria o de forçar a edificação para conferir função social à propriedade? A resposta é não, pois, aplica-se a trava em relação a imóveis construídos com excesso de área (inciso II, do§ 4º), isto é, favorece imóveis edificados com infração legal.

E mais, aplica-se a trava em relação a imóveis “em que existam obras paralisadas ou em andamento, devidamente licenciadas, na forma que dispuser o regulamento” (inciso I, do § 5º). E aplica-se, também, a trava para imóveis não construídos de área inferior a 500ms2 (inciso II, do § 5º), conflitando com o inciso I, do § 4º que não admite a trava para imóveis não edificados.

Com relação ao inciso I cumpre lembrar a noção elementar do princípio da legalidade: a aplicação ou não da trava não pode ser delegada ao ato do Executivo.

Qual, afinal, o critério utilizado pelo legislador para aplicar a trava em um caso e não aplicar em outro caso? O legislador não aponta, nem se descobre!

Certamente não se trata de conferir ao IPTU finalidade ordinatória, pois, nesse caso é difícil de entender a redução do imposto para as hipóteses de construções paralisadas e de edificações feitas com infração legal (área construída superior ao limite permitido pela Lei de Uso e Ocupação do Solo Urbano).

E mais, ainda que se argumente que a inaplicação da trava do IPTU como prevista na Lei nº 16.272 de 30-9-2015 visou objetivos ordinatórios, o que não é verdade como se demonstrou, o argumento não se sustenta. Senão vejamos.

A partir do advento da EC nº 29/2000 a intervenção do Município na propriedade urbana, por meio de instrumento tributário, ficou adstrita à hipótese específica prevista no art. 182, § 4º, inciso II da CF (tributação progressiva no tempo). Desapareceu a tributação progressiva para conferir, de forma genérica, a função social à propriedade urbana, como constava do § 1º, do art. 156 da CF em sua redação original:

“Art. 156 Compete aos Municípios instituir impostos sobre:

I – propriedade predial e territorial urbana

[...]

§ 1º O imposto previsto no inciso I poderá ser progressivo, nos termos da lei municipal, de forma a assegurar o cumprimento da função social da propriedade”.

Entretanto, a EC nº 29/2000 substituiu essa progressividade extrafiscal pela progressividade fiscal fundada no valor imóvel, como segue:

“Art. 156 Compete aos Municípios instituir impostos sobre:

I – propriedade predial e territorial urbana

[...]

§ 1º Sem prejuízo da progressividade no tempo a que se refere o art. 182, § 4º, inciso II, o imposto previsto no inciso I poderá:

I – ser progressivo em razão do valor do imóvel; e

II – ter alíquotas diferentes de acordo com a localização e o uso do imóvel”.

Evidente, pois, que o § 1º em sua nova redação está se referindo apenas à progressividade fiscal em função do valor do imóvel ancorando-se no § 1º do art. 145, § 1º da CF (graduação segundo a capacidade contributiva do contribuinte).

Para afastar as discussões a respeito o STF editou a Súmula 668:

“É inconstitucional a lei municipal que tenha estabelecido, antes da Emenda Constitucional nº 29/2000, alíquotas progressivas, salvo se destinada a assegurar o cumprimento da função social da propriedade urbana”.

A referida Súmula deixa claro que antes da EC nº 29/2000 era permitida apenas a tributação ordinatória do IPTU. Após a EC nº 29/2000 somente restou a progressividade extrafiscal do art. 182, § 4º, II da CF.

Logo, o que existe no geral é apenas o IPTU de natureza arrecadatória. Em sendo assim o aspecto quantitativo do IPTU deveria variar tão somente em função do valor da propriedade imobiliária construída ou não, de dimensões grandes ou pequenas, com ou sem construções paralisadas, e, com ou sem excesso de áreas construídas.

Logo, a forma de aumentar a arrecadação do IPTU segundo as disposições dos parágrafos 4º e 5º, do art. 9º da Lei nº 15.889/2013 acrescidos pela Lei nº 16.272/2015 é arbitrária ofendendo, às escâncaras, o princípio da razoabilidade que se coloca como um limite imposto à ação do próprio legislador. A final, qual a razão para aplicar a trava para imóveis com construções paralisadas? ou aqueles construídos com excesso de área? Por que vedar a trava para terrenos em geral e excetuar aquele com área inferior a 500 ms2?

Só para se ter uma ideia da absurda carga tributária de um exercício para outro ilustremos com um caso concreto trazido por um cliente nosso, proprietário de três lotes de terrenos contíguos:

a) imóvel não construído – Contribuinte X

Área do terreno

IPTU de 2021

IPTU de 2022

Aumento

28.260 ms2

16.902,00

123.212,50

729%

b) imóvel não construído – Contribuinte Y

Área do terreno

IPTU de 2021

IPTU de 2022

Aumento

14.780 ms2

5.967,00

47.809,80

801%

c) imóvel não construído – Contribuinte Z

Área do terreno

IPTU de 2021

IPTU de 2022

Aumento

15.400 ms2

11.862,20

89.340,00

753%

Pelo simples exame ocular, verifica-se a falta de proporção nos lançamentos das letras b e c. Por causa de uma diferença de área de apenas 620 ms2 (15.400 ms2 – 14.780 ms2) o valor do IPTU do imóvel c quase que dobrou (89.340,00 contra 47.809,80 do imóvel b). Sem dúvida, desatende ao elementar princípio da proporcionalidade.

Esses aumentos de 729%, 801% e 753%, respectivamente, para os imóveis a, b e c, de um ano para outro não encontra explicação no princípio da razoabilidade considerando que o IPCA acumulado no exercício de 2021 foi de apenas 10,06%.

Por outro lado, a taxa de crescimento do PIB brasileiro, por sua vez, nos últimos cinco anos foi de: 2017 = 1%; 2018 = 1,8%; 2019 = 1,2%; 2020 = 3,9%; e 2021 = 4,5%.

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Pergunta-se, qual a mágica utilizada pela Prefeitura paulistana para aumentar o IPTU em mais de 750% de 2021 para 2022?

Resta claro que não guarda nenhuma proporção com qualquer parâmetro comparativo que se possa imaginar.

É indiscutível o efeito confiscatório do IPTU vedado pelo art. 150, IV da Constituição, pois, em poucos anos o valor da propriedade será inteiramente absorvido pelo valor do imposto.

De conformidade com a lição de Pedro Lenza [2] “a razoabilidade e a proporcionalidade das leis e atos do Poder Público são inafastáveis, considerando-se que o Direito tem conteúdo justo”. E prossegue:

“Como parâmetro podemos destacar a necessidade de preenchimento de três importantes requisitos:

  • necessidade: por alguns denominada exigibilidade, a adoção da medida que possa restringir direitos só se legitima se indispensável para o caso concreto e não se puder substituí-la por outra menos gravosa;

  • adequação: também denominada pertinência ou idoneidade, quer significar que o meio escolhido deve atingir o objetivo perquerido;

  • proporcionalidade em sentido estrito: em sendo medida necessária e adequada, deve-se investigar se o ato praticado, em termos de realização do objetivo pretendido, supera a restrição a outros valores constitucionalizados. Podemos falar em máxima efetividade e mínima restrição.”

A cláusula do substantive due processo of law permite que o Poder Judiciário controle os atos do Poder Legislativo, bem como a discricionariedade dos atos do Poder Público, procedendo-se ao exame da razoabilidade e da proporcionalidade das normas jurídicas.

Cai como uma luva, no presente caso, o trecho da decisão proferida pelo C. STF na ADI 2667/MC, tendo como Relator o Ministro Celso de Mello, publicada no DJ de 12-03-2004, pp. 00036, em que se lê:

“TODOS OS ATOS EMANADOS DO PODER PÚBLICO ESTÃO NECESSARIAMENTE SUJEITOS, PARA EFEITO DE SUA VALIDADE MATERIAL, À INDECLINÁVEL OBSERVÂNCIA DE PADRÕES MÍNIMOS DE RAZOABILIDADE. - As normas legais devem observar, no processo de sua formulação, critérios de razoabilidade que guardem estrita consonância com os padrões fundados no princípio da proporcionalidade, pois todos os atos emanados do Poder Público devem ajustar-se à cláusula que consagra, em sua dimensão material, o princípio do “substantive due process of law”. Lei Distrital que, no caso, não observa padrões mínimos de razoabilidade. A EXIGÊNCIA DE RAZOABILIDADE QUALIFICA-SE COMO PARÂMETRO DE AFERIÇÃO DA CONSTITUCIONALIDADE MATERIAL DOS ATOS ESTATAIS. - A exigência de razoabilidade - que visa a inibir e a neutralizar eventuais abusos do Poder Público, notadamente no desempenho de suas funções normativas - atua, enquanto categoria fundamental de limitação dos excessos emanados do Estado, como verdadeiro parâmetro de aferição da constitucionalidade material dos atos estatais.”

Exsurge com lapidar clareza que os lançamentos efetuados pela Prefeitura com base nos §§ 4º e 5º, do art. 9º da Lei nº 15.889/2013 com as alterações da Lei nº 16.272/2015 não se harmonizam com o princípio da razoabilidade pela simples razão de que não há regra jurídica objetiva para aumentar ou diminuir o aspecto quantitativo do IPTU.

Tudo indica o legislador calculou primeiramente quanto quer arrecadar de IPTU para compensar as despesas extraordinárias decorrentes da pandemia, e ao depois aplicou os §§ 4º e 5º, do art. 9º da Lei nº 15.889/2013 que existem desde o advento da Lei nº 16.272/2015, mas, que não vinham sendo aplicados por afrontarem o princípio da razoabilidade.

Não satisfeito com a ostensiva a violação do princípio da razoabilidade, conferindo ao IPTU efeito de confisco vedado pelo art. 150, IV da CF, os lançamentos examinados afrontaram, ainda, os termos da própria Lei nº 17.719/2021 que limitou, excepcionalmente, o aumento do IPTU dos exercícios de 2022, 2023 e 2024 à variação dos índices do INPCA, conforme se verifica dos §§ 6º a 8º do art. 9º da Lei nº 15.889/2013 de início transcritos.

Já verificamos que a variação do índice do INPCA no ano de 2021 foi de 10,06%, donde a ilegalidade daqueles lançamentos que desobedeceram ao princípio da vinculação da administração a seus próprios atos.

Ora, pela aplicação da variação do índice do INPCA de 2021 de 10,06% os impostos dos três imóveis retromencionados deveriam ser de R$ 18.602,34 (letra a), R$ 6.567,28 (letra b) e R$13.055,53, respectivamente, e não R$123.212,50, R$ 47.809,80 e R$ 89.340,00, resultando em fantástica diferença a maior de R$ 104.610,16, R$ 41.242,52 e R$ 76.284,47, respectivamente.

Daí a ilegalidade e inconstitucionalidade dos lançamentos do IPTU do exercício de 2022 pelo duplo fundamento aqui aduzido.


Notas

[1] A Lei nº 17.719/2021 mediante sutil alteração do art. 9º da Lei nº 15.889/2015fez desaparecer a trava de 15% para imóveis não residenciais/terrenos, mantendo a trava a 10% para todos os imóveis residenciais ou não, construídos ou não.

[2] Direito Constitucional Esquematizado - 14ª ed. - São Paulo - Saraiva - 2010 - pp. 793-794.

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Sobre o autor
Kiyoshi Harada

Jurista, com 26 obras publicadas. Acadêmico, Titular da cadeira nº 20 (Ruy Barbosa Nogueira) da Academia Paulista de Letras Jurídicas. Acadêmico, Titular da cadeira nº 7 (Bernardo Ribeiro de Moraes) da Academia Brasileira de Direito Tributário. Acadêmico, Titular da cadeira nº 59 (Antonio de Sampaio Dória) da Academia Paulista de Direito. Sócio fundador do escritório Harada Advogados Associados. Ex-Procurador Chefe da Consultoria Jurídica do Município de São Paulo.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

HARADA, Kiyoshi. Inconstitucionalidade do IPTU de 2022. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 27, n. 6847, 31 mar. 2022. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/97050. Acesso em: 21 nov. 2024.

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