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Defensoria Pública e direito administrativo

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Custos vulnerabilis é a prerrogativa da Defensoria Pública de presentar, em nome próprio, princípios sensíveis constitucionais extra ou judicialmente, sem necessidade de vincular-se a uma parte específica.

RESUMO: A ousada proposta deste trabalho é conjugar perspectivas diferentes, com ênfase em análise jurídica penal descritivo-explicativa, quanto ao Direito Administrativo, à Defensoria Pública, ao instituto dos custos vulnerabilis, à política e à cidadania no Brasil. Em tempos de hiperespecialização, faz-se mister uma análise holística, multidisciplinar, crítica e abrangente, que fuja de métodos e de critérios monoculares, em busca da Verdade, e não de uma mera perspectiva parcial. Pois bem, isso motivou a elaboração do presente artigo: política, filosofia, sociologia, Direito, cidadania, Custos Vulnerabilis e Defensoria Pública dialogam e se complementam, devendo ser exploradas em conjunto, todavia nesse texto, sob ênfase jurídica administrativa.

Palavras-chave: Direito administrativo; Defensoria Pública; Devido Processo Legal; Direitos fundamentais; Direitos Humanos.


1 INTRODUÇÃO

Durante os últimos anos, houve grande discussão jurídica, econômica e até moral acerca da prestação jurídica da Defensoria Pública, no tocante a sua expansão e garantia de cidadania.

A implementação do Estado Social Constitucional Democrático de Direito perpassa pelas garantias formal e material de acesso a direitos, seja extra ou judicialmente. Nesse aspecto, a Defensoria Pública é a escolha legislativa ideal, tanto constitucional, quanto legalmente. As atribuições da instituição vêm sendo modificadas, ampliadas e, felizmente, ao que tudo indica, estruturalmente expandidas. O presente trabalho trata sobre aspectos da Defensoria Pública na garantia dos Direitos Humanos no Brasil, com ênfase no revolucionário conceito de custos vulnerabilis, ambientado no Direito Penal pátrio.

O presente trabalho trata sobre aspectos histórico-constitucionais da Defensoria Pública na garantia dos Direitos Humanos no Brasil, presentes na Carta de 1988.

2 DIREITO E DEMOCRACIA

Direito e democracia são temas intimamente ligados e debatidos há milênios.

Quanto ao conceito de Direito, podemos partir por Hans Kelsen. Em sua obra, Teoria Pura do Direito, o austríaco analisa o Direito como normas jurídicas postas, in litteris:

A Teoria Pura do Direito é uma teoria do Direito positivo - do Direito positivo em geral, não de uma ordem jurídica especial. É teoria geral do Direito, não interpretação de particulares normas jurídicas, nacionais ou internacionais. Contudo, fornece uma teoria da interpretação[3]

Atualmente, a Teoria Tridimensional do Direito, proveniente do professor Miguel Reale Jr., sugere uma abordagem ampla do tema. Portanto, o Direito seria formado por valor, por fato e por norma.

Sem pretensão de se exaurir um assunto tão rico, a teoria do eminente professor corresponderia, em suma, ao seguinte: o vetor axiológico (valor) seria a parcela ético-moral; o vetor normativo (norma) seria a redação posta, positivada; já o vetor fático seria a análise ontologia, o fato em si, in litteris:

A Teoria Tridimensional do Direito foi uma intuição da juventude. Intrigou-me o fato de grandes filósofos do direito italiano coincidirem na divisão da Filosofia do Direito, para fins pedagógicos, em três partes: uma destinada à teoria dos fenômenos jurídicos; outra cuidando dos interesses e valores que atuam na experiência jurídica e, finalmente, uma terceira relativa à norma jurídica[4]

Quanto ao conceito de democracia, Platão acredita em um sistema democrático direto, no qual o povo agiria diretamente nos assuntos da Pólis, in litteris:

Sócrates - A democracia se estabelece, portanto, a meu ver, quando os pobres vencem, massacram alguns, mandam para o exílio outros e, com os restantes, dividem em condições de igualdade o governo e as magistraturas que, no mais das vezes, são distribuídas por sorteio.

Adiamanto - De fato, este regime é a democracia que se estabelece quer pelas armas, quer pelo medo dos adversários que preferem partir para o exílio[5]

Noutro giro, Aristóteles acredita que o grupo predominante no poder deve usar o Estado para implementar a virtude e conceitua a democracia como:

As democracias e as oligarquias não são determinadas pela proporção numérica existente entre os governantes e os governados. A democracia é o governo dos pobres; a oligarquia é o governo dos ricos.

As democracias têm por lema a igualdade; os oligarcas acreditam que os direitos políticos deveriam ser desiguais e proporcionais à riqueza. Mas ambos os modelos desviam-se do verdadeiro objetivo de sua Cidade, que é a virtude. Aqueles que fazem o máximo para promover a virtude merecem a maior parcela de poder[6]

Segundo o professor Paulo Bonavides, há polissemia quanto ao vocábulo democracia, o que dificulta em precisar seu conceito. Porém, segundo o eminente mestre, Abraham Lincoln explicitou de forma veemente o espírito da democracia, in litteris:

Variam pois de maneira considerável as posições doutrinárias acerca do que legitimamente se há de entender por democracia. Afigura-se-nos porém que substancial parte dessas dúvidas se dissipariam, se atentássemos na profunda e genial definição lincolniana de democracia: governo do povo, para o povo, pelo povo[7]

Ainda segundo Bonavides, atualmente vivemos em uma democracia semidireta, partidária. Ela conta com representação indireta por parlamentares, integrantes de partidos políticos; e por mecanismos diretos de propostas político-jurídicas, in litteris:

A ingerência direta do povo na obra legislativa fora doutrinariamente preconizada desde o século XVIII, quando Rousseau escreveu que os deputados não são nem podem ser representantes do povo; são apenas seus comissários: nada podem concluir em maneira definitiva. E acrescentou: Toda lei que o povo pessoalmente não haja ratificado é nula: não é lei.

Como dificilmente se poderia volver à solução política do governo direto, exeqüível naqueles Estados-cidade da Grécia, onde do alto de uma acrópole se vislumbra todo o território o constitucionalismo democrático da idade contemporânea, mais intimamente ligado às inspirações da doutrina da soberania popular, elegeu alguns instrumentos de participação, que dão ao povo, conservadas embora em parte as formas representativas, a palavra final relativa a todo o ato governativo. É o que ocorre com a democracia semidireta.

Esses instrumentos de participação se reduzem, segundo Duverger, a duas categorias básicas: o referendum e a iniciativa. Com a iniciativa, o corpo eleitoral provoca, ainda de acordo com o publicista francês, a decisão dos governantes; com o referendum, intervém ele diretamente no ato público, via de regra normativo, quer para ratificá-lo, quer para rejeitá-lo. Usualmente porém enumeram os tratadistas do direito público os seguintes mecanismos da democracia semidireta, tomando-os numa acepção menos genérica e mais restrita: o referendum, o plebiscito, a iniciativa e o direito de revogação. Alguns acrescentam um quinto elemento: o veto, a saber, o chamado referendum facultativo, dando-lhe Conseguintemente um lugar à parte, como instituição, no quadro das técnicas do governo semidireto (Prélot)[8]

A sociedade, pois, desempenharia sua cidadania democrática por meio do referendo, plebiscito, iniciativa popular.

DEMOCRACIA E DEFENSORIA PÚBLICA

Diante a essa realidade, faz-se mister analisar como a democracia é exercida e desempenhada pelo Estado em si, sob enfoque institucional.

Por conseguinte, uma sociologia reconstrutiva da democracia tem que escolher seus conceitos básicos de tal modo que estes permitam identificar nas práticas políticas fragmentos e partículas de uma razão existente, mesmo que distorcida. E tal procedimento não necessita da cobertura de uma filosofia da história, pois se apóia unicamente na premissa, segundo a qual o modo de operar de um sistema político, constituído pelo Estado de direito, não pode ser descrito adequadamente, nem mesmo em nível empírico, quando não se leva em conta a dimensão da validade do direito e a força legitimadora da gênese democrática do direito[9]

A legitimidade do sistema é o povo: fonte e destinatário de toda escolha político-jurídica fundamental. Nesse sentido, o regime democrático é uma garantia de autonomia e de autodeterminação, necessário para efetiva cidadania e inserção social.

Segundo Ricardo Sanín Restrepo, a democracia em seu substrato mais radical é o poder do povo de decidir sobre o próprio poder (RESTREPO, 2012, p. 270).

O regime democrático pressupõe a participação igualitária de todos na esfera pública. Uma participação livre, sem condicionantes para participar. Todavia, por óbvio, o pressuposto para poder participar é que todas as pessoas tenham acesso aos direitos mais básicos previstos: saúde, moradia, educação, liberdade de expressão, livre circulação de informação etc.

Sob a perspectiva democrática fundada na diversidade e pluralidade de uma sociedade assimétrica, antagônica e desigual, distanciando do espectro individualista e assistencialista, cabe à Defensoria Pública, como expressão e instrumento

democrático, buscar, de forma permanente, pela consecução do exercício pleno dos direitos sociais, individuais, coletivos, da liberdade, da igualdade e da justiça[10]

A Defensoria, por conseguinte, é a expressão dessa escolha, a instituição garantidora do acesso judiciário, da defesa dos Direitos Humanos, dos vulneráveis, dos excluídos, daqueles que são periféricos, dos direitos esquecidos pelas camadas abastadas de nosso País.

Outro argumento à manutenção da Defensoria Pública pode ser analisado sob o enfoque da profanação do sistema vigente (SILVA, 2019). É possível conspurcar o sistema, considerando que a sua criação evidencia o fato de que o Estado acolhe a existência de seres humanos sem direitos, homo sacer (AGAMBEN, 2010).

A existência de uma instituição para cuidar dos interesses dos pobres e excluídos é indício de ausência de democraticidade, ou seja, de uma democracia simulada.

Sob a perspectiva do marco teórico adotado, sobrevém a compreensão de que a Defensoria Pública assume papel contraditório, sendo por isso relevante o desvelamento de sua missão de modo a abrir possibilidades de rompimento com a lógica de engrenagem.

(...)

Esclarece-se aqui que não se idealiza a figura da Defensoria Pública como salvadora do povo oculto. Propõe-se apenas que em âmbito institucional seja abraçada uma ideologia voltada a efetivação da democracia, cuja participação dos marginalizados na construção de sua própria realidade é premente, de modo a torná-la (ou ao menos tentar torná-la) menos simulada (encriptada). Conforme SILVA a participação efetiva do povo na construção de sua realidade é o riscoimposto pela democracia[11]

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A Defensoria Pública, com efeito, faz a tutela de direitos daqueles que a sociedade abomina, olvida, abandona; garante direitos de pessoas sob vulnerabilidade social; concretiza o Direito para todos e não apenas para alguns privilegiados.

3 VULNERABILIDADE, IGUALDADE E JUSTIÇA SOCIAL

A vulnerabilidade, apesar de ser um conceito utilizado corriqueiramente no meio jurídico, passou por benéficas mudanças durante as décadas recentes e, hodiernamente, abarca situações das mais variadas.

Faz-se mister iniciar a perquirição do conceito pela etimologia do vocábulo.

Nesse sentido, segundo o dicionário Oxford Languages, vulnerável seria, in litteris:

ferido, sujeito a ser atacado, derrotado: frágil, prejudicado ou ofendido; ETIM lat. vulnerabĭlis,e 'que causa lesão' (internet)

Portanto, no sentido geral da língua portuguesa, vulnerável remeteria a fragilidade, a fraqueza. Seria, pois, intrinsecamente atrelada à desigualdade material, conceito que passaremos a abordar adiante.

Inevitavelmente, para melhor compreendermos o sentido de vulnerabilidade no Direito, faz-se mister, outrossim, analisar o conceito filosófico-aristotélico de justiça, o qual serve de substrato para o que será desenvolvido mais a frente.

Bem, sem a pretensão de exaurir o tema, tomemos de início a compreensão de Aristóteles em sua obra Ética a Nicômaco, in litteris:

Ora, a igualdade supõe ao menos dois termos. Resulta disso que, necessariamente, não somente o justo é ao mesmo tempo intermediário, igual, e também relativo, isto é, justo para algumas pessoas, mas também, enquanto intermediário, ele está entre certos extremos (que são o maior e o menor), e, enquanto igual, ele supõe duas coisas que são iguais, enquanto que o justo supõe algumas pessoas, para as quais ele é justo. O justo implica então necessariamente ao menos quatro termos: as pessoas para as quais ele é de fato justo, e que são duas, e as coisas nas quais ele se manifesta, que são igualmente duas. E será a mesma igualdade para as pessoas e para as coisas, pois a relação que existe entre os últimos, a saber, as coisas envolvidas, é também aquela que existe entre as pessoas. Se, com efeito, as pessoas não são iguais, elas não terão partes iguais; mas as contestações e as queixas nascem quando, sendo iguais, as pessoas recebem partes desiguais, ou quando as pessoas desiguais recebem partes iguais[12]

Em outras palavras, para o ilustre pensador antigo - porém atemporal -, a desigualdade subjetiva de um dos pólos da relação pressupõe prestação simétrica para se garantir a igualdade efetiva e pacificação social, isto é, deve-se atuar desigualmente para sanar o desequilíbrio.

Nesse sentido, a igualdade pressupõe desigualdade prestacional entre sujeitos subjetivamente diferentes , que estejam envolvidos na relação analisada, para que a igualdade seja alcançada e, com efeito, a justiça.

Como de praxe, o meio jurídico parte de termos ontológicos, de conceitos linguístico-filosóficos e atribui sentido próprio a cada um deles. Nessa toada, para o Direito, a vulnerabilidade adota contornos materiais e formais, relacionando-se as ideias de desigualdade material e de justiça distributiva aristotélicas, porém com maior abrangência e com maior detalhamento.

Com efeito, o século XX marca a história ocidental. O conceito de justiça passa a ser positivado em regras, em princípios e em postulados que denotam preocupação dos legisladores em garantir igualdade material, não apenas meros direitos positivados, sem utilidade prática ou sem abrangência fática.

É nesse contexto em que o Estado Social Constitucional de Direito (Welfare State) surge como garantidor de igualdade material e formal para todas as pessoas que se encontrem sob sua jurisdição.

a transição entre o Estado liberal e o Estado Social promove alteração substancial na concepção do Estado e de suas finalidades. Nesse quadro, o Estado existe para atender ao bem comum e, consequentemente, satisfazer direitos fundamentais e, em última análise, garantir a igualdade material entre os componentes do corpo social[13]

Por conseguinte, os conflitos são analisados integral e holisticamente, isto é, por transcenderem aos indivíduos, passam a demandar soluções coletivas. A tutela jurisdicional, com efeito, tem que se adequar à nova abordagem, in litteris:

Atacar essas vulnerabilidades é o início, é a construção de um ponto de partida (e não um ponto de chegada), onde se dará respaldo para o começo de uma luta contra a exclusão, o conservadorismo, este caracterizado pelo projeto colonialista e aristocrático (e por isso mesmo, paternalista e assistencialista). Neste sentido, qualquer interpretação retrógrada, paternalista e colonizada que pretende restringir a assistência jurídica prestada pela Instituição apenas ao patrocínio e à defesa das causas individuais, deve ser refutada. Nesse sentido, um caminho a ser mais bem explorado são as atuações em conflitos coletivos. A atuação estratégica judicial coletiva precisa se consolidar na realidade defensorial, cujo olhar do defensor deve ser macro, para além da pessoa que está sentada à sua frente, ou para além do problema apresentado. Enquanto agente político de transformação social, o membro possui a missão não só de resolver conflitos, mas de promover a justiça social. (CAMPOS, MAIA, SOUSA. 2021. Página 148. Grifo nosso)

Pois bem, ao se analisar as relações jurídicas existentes na sociedade, juristas, sociólogos, filósofos, historiadores e demais pesquisadores identificaram situações em que havia disparidade notória entre os envolvidos, por exemplo, em relações de consumo ou em situações de revelia processual.

Diante a essa manifesta desigualdade de fato, surgiram diversas análises nas ciências sociais sobre vulnerabilidade e meios de se equiparar os pólos das relações jurídicas, tanto substancial, quanto processualmente, com o fim de se garantir justiça social.

A jurisprudência e os legisladores, seguindo as tendências doutrinárias, expandiram a atuação da Defensoria Pública, instituição responsável pela defesa da democracia e pelo auxílio jurídico aos vulneráveis, in litteris:

A legitimação ativa da Defensoria Pública para a propositura da ação civil pública, mesmo antes de sancionada a lei 11448/07, que modificou a Lei de Ação Civil Pública, passando a incluí-la expressamente no rol dos legitimados, já vinha sendo admitida pela jurisprudência. Assim sendo, a alteração legislativa apenas concretiza o programa constitucional da assistência jurídica integral, dotando-o de maior abrangência ao direcionar instrumento processual da mais alta relevância para a proteção de direitos dos grupos em situação de vulnerabilidade. O Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais também já sedimentou entendimento reconhecendo a legitimidade da Defensoria Pública para a propositura da ação civil pública. A interpretação da norma legal pela perspectiva de sua maior eficácia não apenas garante a aplicação imediata e plena das garantias e direitos fundamentais, em consonância com o artigo 5º, § 2º, da Constituição Federal, como se reveste de inegável importância concreta. A atuação da Defensoria Pública, após a publicação da norma em comento, conheceu um salto qualitativo inegável, sendo inadmissível, pelas razões já expostas anteriormente, haver retrocesso[14]

Esclarecidos os conceitos e a correlação entre vulnerabilidade, igualdade, justiça social e Direito, discorreremos sobre custos vulnerabilis.

CUSTOS VULNERABILIS E DEFENSORIA PÚBLICA

Nesse ambiente de intensa deliberação acadêmica, o conceito de custos vulnerabilis foi gestado dentro das Defensoria Públicas.

É preciso ter em mente que custos vulnerabilis é um conceito criado doutrinariamente, com tímidos acenos jurisprudenciais. Atualmente, o Defensor Público Jorge Bheron Rocha é um dos expoentes sobre o tema. O ilustre Doutor ensina que, in litteris:

Para a consecução de suas missões, os defensores públicos, detentores de capacidade postulatória (artigo 4º, §6º, Lei Complementar 80/94), podem atuar: (a) como representante judicial, nos casos em que a parte comparece a Juízo em nome próprio para defender seus próprios interesses, inclusive curadoria especial; (b) em nome próprio para defender direito próprio, assim na hipótese (b.1) em que defende interesses institucionais primários, ou seja, visa a realização finalística de sua missão institucional de acesso à ordem jurídica e social justa às pessoas e coletividades vulneráveis, como parte ou interveniente, inclusive na modalidade de intervenção institucional denominada custos vulnerabilis, em processo penal ou civil, com atuação paralela, complementar ou suplementar às partes já representadas (TJCE HC 0620464-61.2017.8.06.0000), à semelhança da intervenção do Ministério Público como custos juris, que, embora ambos se relacionem com a fiscalização e o controle institucional do Estado e da sociedade, suas missões não se confundem; e na hipótese (b.2) em que defende interesses institucionais secundários, i.e., interesses instrumentais e organizacionais da própria instituição que visam indiretamente a realização de sua missão, como nos casos de executar e receber as verbas sucumbenciais decorrentes de sua atuação (artigo 4º, XXI, Lei Complementar 80/94) ou de impetrar Habeas Corpus, mandado de injunção, habeas data e mandado de segurança (STF - MS 33193 MC / DF) ou qualquer outra ação (STF - STA 800/RS) em defesa das funções institucionais e prerrogativas de seus órgãos de execução (artigo 4º, IX, Lei Complementar 80/94); (c) em nome próprio para defender direito alheio, quando autorizada pelo ordenamento jurídico (artigo 18, NCPC): (c.1) autorização expressa na lei, como no caso de ação civil pública (artigo 5º, II, lei nº 7.347/1985) ou na jurisdição voluntária (artigo 720, CPC); (c.2) autorização por interpretação sistêmica, decorre, dentre outros do 4º da Londep, que autoriza a atuação em todas as espécies de ações capazes de propiciar a adequada e efetiva tutela dos direitos fundamentais dos necessitados, abrangendo seus direitos individuais, coletivos, sociais, econômicos, culturais e ambientais, sendo admissíveis; (c.3) autorização por analogia; diante de uma lacuna, aplicar o regramento de outra norma (HC 143.641); e (c.4) autorização por negócio jurídico processual (artigo 190, CPC), com atribuição de legitimidade extraordinária negociada[15]

Ora, essa pretensa novidade doutrinária, apesar de muito bem vinda, nada mais é que decorrência lógica do conceito e da finalidade institucionais da Defensoria Pública, mormente delineados na Constituição Federal.

Art. 134. A Defensoria Pública é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe, como expressão e instrumento do regime democrático, fundamentalmente, a orientação jurídica, a promoção dos direitos humanos e a defesa, em todos os graus, judicial e extrajudicial, dos direitos individuais e coletivos, de forma integral e gratuita, aos necessitados, na forma do inciso LXXIV do art. 5º desta Constituição Federal (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 80, de 2014)[16]

Ora, faz parte da referida instituição representar e defender os necessitados; expressar a democracia; orientar, promover Direitos Humanos, isto é, assegurar a cidadania e, por conseguinte, a efetividade do Estado Social Constitucional de Direito.

Ao nosso ver, a inserção do termo expressão e instrumento do regime democrático consiste na visão da Defensoria Pública como um instrumento de garantia não apenas do acesso à justiça, mas sim da participação dos grupos vulneráveis nas políticas públicas implementadas pelo Poder Público. A Defensoria Pública, como órgão transformador da realidade social, configura verdadeira ponte de acesso da sociedade mais carente ao pleno exercício da cidadania, compreendida esta não apenas como o exercício dos direitos políticos, mas também o acesso e preservação dos direitos e garantias fundamentais previstos na Constituição Federal[17]

A Defensoria não é apenas advogado de pobre, como infelizmente se ouve de leigos e, surpreendentemente, de juristas. Não, a instituição goza de prerrogativas próprias, de representatividade per si, haja visto que assume princípios constitucionais sensíveis.

Portanto, custos vulnerabilis seria a prerrogativa, o direito, o poder-dever de a instituição Defensoria Pública presentar, em nome próprio, princípios sensíveis constitucionais extra ou judicialmente, sem necessidade de vincular-se a uma parte específica.

AMICUS CURIAE E CUSTOS VULNERABILIS

Muitos confundem amicus curiae com custos vulnerabilis. Apesar de conceitualmente parecidos, as diferenças são significantes e delineiam a atuação institucional em cada hipótese.

O amicus curiae seria uma intervenção de terceiros, admitida pelo Juiz, com possibilidades processuais estritas. Por outro lado, o custos vulnerabilis seria a atuação institucional em nome próprio, sem delibação pelo julgador, com poderes previstos ope legis.

Jorge Bheron Rocha ensina que, in litteris:

Por fim, há que se ressaltar que deve-se dar preferência à intervenção institucional da Defensoria Pública como custos vulnerabilis e não como amicus curiae pelas seguintes razões:

1) Simbolismo da atuação, se trata de uma intervenção enquanto guardiã dos vulneráveis e não como amiga da corte, pois, não obstante a contribuição com o debate, o robustecimento das informações e argumentos, a real influência no contraditório e ampla defesa tem a finalidade de equilibrar a balança da justiça e trazer luzes para o caminho da concretização dos direitos fundamentais dos indivíduos e coletividades acossados pelas vulnerabilidades, obtendo-se provimento e fixando-se precedentes que lhes sejam favoráveis;

2) A legitimidade de ingresso no amicus curiae na demanda depende de comprovação da relevância da matéria, sua relação com a especificidade do tema objeto da demanda ou a repercussão social da controvérsia. Já para o ingresso da Defensoria Pública como custos vulnerabilis basta a demonstração do interesse institucional na demanda, ou seja, que revele relação direta ou potencial com o plexo de direitos das pessoas em situação de vulnerabilidade;

3) O requerimento de ingresso do amicus curiae, neste prisma, pode ser indeferido, mesmo diante da comprovação dos requisitos, o que não poderia se dar em relação à Defensoria Pública custos vulnerabilis, demonstrada a relação estreita com a missão institucional, pois as normas constitucionais e infraconstitucionais que determinam sua intervenção são de ordem cogente e ligadas ao próprio regime democrático;

4) Ante a pluralidade de pedidos de admissão de amicus curiae, o magistrado pode deferir o ingresso apenas de um ou de alguns, atendo às efetivas contribuições de acordo com os critérios de admissão. Em relação ao custos vulnerabilis, o magistrado não poderia indeferir o ingresso de qualquer das Defensorias Públicas, em razão de que, não obstante regidas pelos princípios institucionais da unidade e indivisibilidade, cada exerce seu feixe de atribuições em determinado território e junto a determinados órgãos judiciais e administrativos, não sendo possível, em regra, a substituição de uma por outra;

5) Nos casos de ser indeferido o ingresso do amicus curiae, esta decisão é irrecorrível (artigo 138, CPC), o que não se dá em relação ao indeferimento do ingresso do custos vulnerabilis, haja vista que este ostenta todos os poderes no processo, inclusive o amplo leque recursal;

6) Enquanto os poderes do amicus curiae são definidos pelo magistrado; os poderes do custos vulnerabilis decorrem do ordenamento jurídico, podendo-se aplicar por analogia com o artigo 179, II que se refere aos poderes do Ministério Público enquanto interveniente. Importante relatar que os membros a Defensoria Pública surgiram de dentro do Ministério Público, como cargos iniciais do parquet, o que explica, em parte, sua histórica índole interventiva. Assim, a Defensoria Pública atuando como custos vulnerabilis 'poderá produzir provas, requerer as medidas processuais pertinentes e recorrer';

7) Enquanto o amicus curiae está submetido à restrição recursal, podendo manejar apenas embargos de declaração ou recorrer da decisão que julgar o incidente de resolução de demandas repetitivas (artigo 138, §1º e §3º, CPC), ao custos vulnerabilis é cabível interpor todo e qualquer recurso ou incidente caso haja interesse e legitimidade;

8) Por fim, vislumbramos ser uma excepcionalidade a migração de posição processual do amicus curiae, enquanto que, para a Defensoria Pública, a dinamicidade das posições processuais é uma regra geral, diante do imenso leque de atribuições de que é imbuída. Por exemplo, pode figurar no processo como representante de uma parte, mas entender estar diante de questão que envolva a necessária amplitude do contraditório, paridade de tratamento e isonomia entre todos os potencialmente atingidos pela decisão e ingressar como custos vulnerabilis; ou, ainda, já figurar no processo nesta condição e, diante da renúncia do patrono da parte, assumir sua representante processual[18]

Superada, mas não exaurida, a discussão acerca do conceito de custos vulnerabilis, passemos à sua estreita ligação com o Direito Penal.

DIREITO ADMINISTRATIVO E CUSTOS VULNERABILIS

A Defensoria Pública, no modelo salaried staff, é a escolha do constituinte originário para defesa dos vulneráveis em sentido amplo. Entretanto, infelizmente, no âmbito administrativo, o abandono estatal quanto aos cidadãos é uma realidade chancelada pelo próprio Estado, tanto sob análise material, quanto formal.

O Supremo Tribunal Federal, Corte Constitucional do país, demonstra corriqueiramente ser uma instituição dominada pela ideologia perversa neoliberal, patrimonialista, desumana e sectarista.

A mera existência da Súmula Vinculante 5 desnuda a lógica do capital presente em nossa pátria, avilta a cidadania e, se não bastasse, descaracteriza a finalidade social da advocacia e da própria Defensoria Pública em litígios administrativos. Ora, ao se tornar adiáfora a participação do jurisconsulto, vilipendia-se o devido processo legal previsto no artigo 5º da Constituição Federal e, pior, dificulta-se o acesso a direitos.

Súmula Vinculante 5: A falta de defesa técnica por advogado no processo administrativo disciplinar não ofende a Constituição[19]

Numa ótica estritamente formal, à Defensoria Pública é garantida pela Lei Complementar 80 a atuação em âmbito administrativo para tutela de direitos populares perante a órgãos da administração pública. Caso a análise siga além do positivado no ordenamento, a prática jurídica demonstra que a aplicabilidade do dispositivo legislativo é simplesmente inexistente em nossos dias.

Se não bastasse, no Brasil há o famigerado abismo socioestrutural entre seres humanos, fomentado pela lógica inadequada do capital, fato que desumaniza, que precariza e que banaliza a má prestação de direitos, os quais deveriam ser efetivos durante a vida do cidadão.

Diante ao cenário de Estado de Coisas Inconstitucional, a Defensoria Pública tem o dever de agir institucionalmente para garantir Direitos Fundamentais e Humanos no País. Quanto ao Direito Administrativo, não é diferente. De nada adianta previsão lacônica constitucional, discursos pomposos, muitas vezes eloquentes em altas cortes de justiça, porém sem aplicabilidade no mundo comum, no meio popular, o triste e sonoro descaso estatal.

Em concreto, há jurisprudência do Supremo Tribunal Federal no sentido de reconhecer e de garantir a Defensoria Pública como interveniente, em nome próprio, isto é, como instituição constitucional em processos judiciais. É pouco, mas é o início de uma revolução democrática no Direito Brasileiro, este marcado pelo reacionarismo, pela preservação de injustiças, pela manutenção de iniquidades, pela indevida distinção de pessoas e pela proteção de grupos sociais em detrimentos à população em geral.

Talvez o mais paradigmático dos julgados em que a Defensoria Pública atuou como terceiro interveniente foi no HC Coletivo nº. 143.641 em que foi requerida a substituição da prisão preventiva de todas as mulheres gestantes, puérperas ou mãe de crianças com até 12 anos de idade sob sua responsabilidade.

No referido julgado a expressão não fora empregada, porém o Supremo Tribunal Federal aceitou a intervenção de todas as Defensorias Públicas Estaduais na condição de amici curiae. O referido habeas corpus foi interposto pelo Coletivo de Advogados de Direitos Humanos (CADHu).

No curso de seu trâmite, as Defensorias Públicas dos Estados do Ceará e do Paraná postularam os seus ingressos na condição de terceiros intervenientes, tendo o relator Ministro Ricardo Lewandowski admitido intervenção das instituições na condição de assistentes. Posteriormente, houve uma movimentação das Defensorias Públicas Estaduais que aos poucos foram postulando a mesma intervenção que foi aceita pela Corte Maior na condição de amici curiae como dito[20]

O instituto dos custos vulnerabilis, portanto, mostra-se essencial para a cidadania e para a salvaguarda, tanto da democracia, quanto dos indivíduos e da coletividade, mormente no âmbito administrativo.

CONCLUSÃO

Apesar de ser considerada uma novidade, a atuação institucional da Defensoria Pública é decorrência inafastável da escolha constituinte.

É inquestionável que, pelas finalidades constitucional-institucionais, pelas previsões legislativas, pelos princípios doutrinários e pela interpretação unitária do ordenamento: tudo aponta à possibilidade de a Defensoria atuar como custos vulnerabilis, com intuito de afirmação democrática e civilizatória no Brasil.

O presente trabalho, com efeito, nada mais é que a ratificação e apologia da melhor interpretação conforme a constituição possível, já aplicada concretamente pelo País.


REFERÊNCIAS

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Assuntos relacionados
Sobre os autores
Fernando Luz Sinimbu Portugal

Graduado em Direito na Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (2015); especialista em Direito Público pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (2017); especialista em Direito Constitucional (2021); Direito Administrativo (2021); Direito Civil e Direito Processual Civil (2021) e em Ciências Criminais (2021); em Direitos Humanos (2023) e em Ensino à Distância (2023) no Centro Universitário União das Américas - Uniamérica; graduado em Teologia (2022), em História (2023) e em Administração (2023) na Universidade Estácio de Sá. Mestrando em Ciências Sociais na Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (2023-2025).

Mauro Luís Rocha Lopes

Professor orientador

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PORTUGAL, Fernando Luz Sinimbu ; LOPES, Mauro Luís Rocha. Defensoria Pública e direito administrativo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 27, n. 6872, 25 abr. 2022. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/97059. Acesso em: 24 abr. 2024.

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