Art. 20: motivação em valores jurídicos abstratos
A Lei nº 13.655/2018 acrescenta à LINDB o art. 20, cujo caput possui a seguinte redação:
Art. 20. Nas esferas administrativa, controladora e judicial, não se decidirá com base em valores jurídicos abstratos sem que sejam consideradas as consequências práticas da decisão.
Segundo a justificativa dos juristas que auxiliaram na elaboração do anteprojeto, "o art. 20. da LINDB tem por finalidade reforçar a ideia de responsabilidade decisória estatal diante da incidência de normas jurídicas indeterminadas, as quais sabidamente admitem diversas hipóteses interpretativas e, portanto, mais de uma solução".
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Esfera administrativa: consiste na instância que se passa dentro da própria Administração Pública, normalmente em um processo administrativo.
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Esfera controladora: aqui a Lei está se referindo precipuamente aos Tribunais de Contas, que são órgãos de controle externo.
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Esfera judicial: são os processos que tramitam no Poder Judiciário.
O que são valores jurídicos abstratos?
O Decreto nº 9.830/2019 fornece a seguinte definição:
Art. 3º (...)
§ 1º Para fins do disposto neste Decreto, consideram-se valores jurídicos abstratos aqueles previstos em normas jurídicas com alto grau de indeterminação e abstração.
O art. 20. da LINDB introduz a necessidade de o órgão julgador considerar um argumento metajurídico no momento de decidir, qual seja, as consequências práticas da decisão.
Em outras palavras, a análise das consequências práticas da decisão passa a fazer parte das razões de decidir.
Essa conclusão é reforçada pelo art. 3º do Decreto nº 9.830/2019, que regulamentou o dispositivo:
Art. 3º A decisão que se basear exclusivamente em valores jurídicos abstratos observará o disposto no art. 2º e as consequências práticas da decisão.
Não se decidirá com base em valores jurídicos abstratos sem que sejam consideradas as consequências práticas da decisão.
Isso vale para decisões proferidas nas esferas administrativas (ex: em um PAD), controladora (ex: julgamento das contas de um administrador público pelo TCE) e judicial (ex: em uma ação civil pública pedindo melhores condições do sistema carcerário)
Tentativa de mitigar a força normativa dos princípios
A Constituição Federal é repleta de valores jurídicos abstratos. São inúmeros exemplos: dignidade da pessoa humana (art. 1º, III), valores sociais do trabalho e da livre iniciativa (art. 1º, IV), moralidade (art. 37, caput), bem-estar e a justiça sociais (art. 193), meio ambiente ecologicamente equilibrado (art. 225).
Esses valores jurídicos abstratos são normalmente classificados como princípios. Isso porque os princípios são normas que possuem um grau de abstração maior que as regras.
Em um período histórico chamado de positivismo, que ficou no passado, os princípios, pelo fato de terem esse alto grau de abstração, não eram nem considerados como normas jurídicas.
Com base na força normativa dos princípios constitucionais, o Poder Judiciário, nos últimos anos, condenou o Poder Público a implementar uma série de medidas destinadas a assegurar direitos que estavam sendo desrespeitados. Vamos relembrar alguns exemplos:
Município condenado a fornecer vaga em creche a criança de até 5 anos de idade
(STF. RE 956475, Rel. Min. Celso de Mello, julgado em 12/05/2016).
Administração Pública condenada a manter estoque mínimo de determinado medicamento utilizado no combate a certa doença grave, de modo a evitar novas interrupções no tratamento
(STF. 1ª Turma. RE 429903/RJ, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, julgado em 25/6/2014).
Estado condenado a garantir o direito a acessibilidade em prédios públicos
(STF. 1ª Turma. RE 440028/SP, rel. Min. Marco Aurélio, julgado em 29/10/2013).
Poder Público condenado a realizar obras emergenciais em estabelecimento prisional
(STF. Plenário. RE 592581/RS, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, julgado em 13/8/2015).
Todas essas decisões foram proferidas com fundamento em princípios constitucionais, ou seja, com base em valores jurídicos abstratos. O que o legislador pretendeu, portanto, foi, indiretamente, tentar tolher o ativismo judicial em matérias envolvendo implementação de direitos.
Previsão contraditória
Vale ressaltar que esse art. 20. revela uma enorme contradição. Isso porque ele defende que o julgador não deve decidir com base em valores jurídicos abstratos sem que sejam consideradas as consequências práticas da decisão. Ocorre que a própria Lei nº 13.655/2018 introduz na LINDB uma série de expressões jurídicas abstratas, como por exemplo: segurança jurídica de interesse geral, interesses gerais da época, regularização de modo proporcional e equânime, obstáculos e dificuldades reais do gestor, orientação nova sobre norma de conteúdo indeterminado etc.
Art. 20, parágrafo único: motivação, necessidade e adequação
Veja o que diz o parágrafo único do art. 20. da LINDB:
Art. 20. (...)
Parágrafo único. A motivação demonstrará a necessidade e a adequação da medida imposta ou da invalidação de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa, inclusive em face das possíveis alternativas.
Todas as decisões sejam elas proferidas pelos órgãos administrativos, controladores ou judiciais, devem ser motivadas.
Isso significa que o administrador, conselheiro ou magistrado, ao tomar uma decisão, deverá indicar os motivos de fato e de direito que o levaram a agir daquela maneira.
Novo requisito da motivação
O administrador, conselheiro ou magistrado, quando for impor alguma medida ou invalidar ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa, deverá demonstrar que a decisão tomada é necessária e a mais adequada, explicando, inclusive, as razões pelas quais não são cabíveis outras possíveis alternativas.
Motivação = contextualização dos fatos + exposição dos fundamentos de mérito e jurídicos
Motivação per relationem
A motivação por meio da qual se faz remissão ou referência às alegações de uma das partes, a precedente ou a decisão anterior nos autos do mesmo processo é chamada pela doutrina e jurisprudência de motivação ou fundamentação per relationem ou aliunde. Também é denominada de motivação referenciada, por referência ou por remissão.
Art. 21: consequências da invalidação
Art. 21. A decisão que, nas esferas administrativa, controladora ou judicial, decretar a invalidação de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa deverá indicar de modo expresso suas consequências jurídicas e administrativas.
Parágrafo único. A decisão a que se refere o caput deste artigo deverá, quando for o caso, indicar as condições para que a regularização ocorra de modo proporcional e equânime e sem prejuízo aos interesses gerais, não se podendo impor aos sujeitos atingidos ônus ou perdas que, em função das peculiaridades do caso, sejam anormais ou excessivos.
Segundo a justificativa dos juristas que auxiliaram na elaboração do anteprojeto:
O art. 21. exige o exercício responsável da função judicante do agente estatal. Invalidar atos, contratos, processos configura atividade altamente relevante, que importa em consequências imediatas a bens e direitos alheios. Decisões irresponsáveis que desconsiderem situações juridicamente constituídas e possíveis consequências aos envolvidos são incompatíveis com o Direito. É justamente por isso que o projeto busca garantir que o julgador (nas esferas administrativa, controladora e judicial), ao invalidar atos, contratos, processos e demais instrumentos, indique, de modo expresso, as consequências jurídicas e administrativas decorrentes de sua decisão. (https://www.conjur.com.br/dl/parecer-juristas-rebatem-criticas.pdf)
Conjugando os arts. 20. e 21 da LINDB, podemos concluir que a decisão que acarrete a invalidação de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa deverá:
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demonstrar a necessidade e adequação da invalidação;
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demonstrar as razões pelas quais não são cabíveis outras possíveis alternativas;
indicar, de modo expresso, suas consequências jurídicas e administrativas.
Art. 21, parágrafo único: invalidação e condições para regularização
Art. 21. (...)
Parágrafo único. A decisão a que se refere o caput deste artigo deverá, quando for o caso, indicar as condições para que a regularização ocorra de modo proporcional e equânime e sem prejuízo aos interesses gerais, não se podendo impor aos sujeitos atingidos ônus ou perdas que, em função das peculiaridades do caso, sejam anormais ou excessivos.
Exemplo de aplicação do dispositivo: no caso de invalidação de contrato administrativo, a autoridade pública julgadora que determinar a invalidação deverá definir se serão ou não preservados os efeitos do contrato, como, por exemplo, se os terceiros de boa-fé terão seus direitos garantidos. Deverá, ainda, decidir se é ou não o caso de pagamento de indenização ao particular que já executou as prestações, conforme disciplinado pelo art. 59. da Lei nº 8.666/93. (https://www.conjur.com.br/dl/parecer-juristas-rebatem-criticas.pdf)
Art. 22: interpretação em favor do gestor
Art. 22. Na interpretação de normas sobre gestão pública, serão considerados os obstáculos e as dificuldades reais do gestor e as exigências das políticas públicas a seu cargo, sem prejuízo dos direitos dos administrados.
§ 1º Em decisão sobre regularidade de conduta ou validade de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa, serão consideradas as circunstâncias práticas que houverem imposto, limitado ou condicionado a ação do agente.
Uma das principais teses de defesa dos administradores públicos nos processos que tramitam nos Tribunais de Contas ou nas ações de improbidade administrativa é a de que não cumpriram determinada regra por conta das dificuldades práticas vivenciadas, em especial quando se trata de Municípios do interior do Estado. Alega-se, por exemplo, que não se apresentou a prestação de contas porque a internet no interior é ruim. Argumenta-se também que não se apresentou o balanço contábil porque no Município não há contadores e assim por diante.
Em geral, tais argumentos não são acolhidos porque os Tribunais de Contas e o Poder Judiciário entendem que essas dificuldades são previamente conhecidas e que os administradores públicos já deveriam se preparar para elas.
Assim, o objetivo do dispositivo foi o de tentar abrandar essa jurisprudência pugnando que o órgão julgador considere não apenas a literalidade das regras que o administrador tenha eventualmente violado, mas também as dificuldades práticas que ele enfrentou e que possam justificar esse descumprimento.
O grupo de juristas que auxiliou na elaboração do anteprojeto assim justificou a nova previsão legal:
(...) a norma em questão reconhece que os diversos órgãos de cada ente da Federação possuem realidades próprias que não podem ser ignoradas. A realidade de gestor da União evidentemente é distinta da realidade de gestor em um pequeno e remoto município. A gestão pública envolve especificidades que têm de ser consideradas pelo julgador para a produção de decisões justas, corretas.
As condicionantes envolvem considerar (i) os obstáculos e a realidade fática do gestor, (ii) as políticas públicas acaso existentes e (iii) o direito dos administrados envolvidos. Seria pouco razoável admitir que as normas pudessem ser ignoradas ou lidas em descompasso com o contexto fático em que a gestão pública a ela submetida se insere. (https://www.conjur.com.br/dl/parecer-juristas-rebatem-criticas.pdf)
Interessante também fazer um contraponto e trazer a crítica da Professora Irene Nohara a esse dispositivo:
Os elaboradores do texto normativo chamam essa exigência de primado da realidade. Todavia, podem existir vários olhares sobre essa previsão, por exemplo: (a) desnecessária, pois já deveria estar pressuposta na interpretação jurídica feita na área da gestão, que não pode se estabelecer sem que se considere a realidade; (b) ineficaz, porque podem existir interpretações variáveis e que não deixam de ser especulativas, abstratas, portanto, sobre quais seriam os obstáculos e dificuldades; e, por fim, (c) perigosa: se for utilizada como uma brecha capciosa para se alegar que, por exemplo, como a realidade não nos permitiu cumprir adequadamente as exigências legais, então, podemos nos eximir de garantir direitos
(...)
Aqui é interessante que essa determinação normativa não seja utilizada, portanto, como um pretexto para o argumento no sentido de que a realidade vence o direito ou seja, que se as circunstâncias de cumprimento da lei forem muito penosas, vamos questionar tal requisito, ou pior, negociar o seu cumprimento por um regime de transição, conforme será visto na sequência.
Art. 23: mudança de interpretação x modulação de efeitos
Art. 23. A decisão administrativa, controladora ou judicial que estabelecer interpretação ou orientação nova sobre norma de conteúdo indeterminado, impondo novo dever ou novo condicionamento de direito, deverá prever regime de transição quando indispensável para que o novo dever ou condicionamento de direito seja cumprido de modo proporcional, equânime e eficiente e sem prejuízo aos interesses gerais.
Se houver uma mudança na forma como tradicionalmente a Administração Pública, os Tribunais de Contas ou o Poder Judiciário interpretavam determinada norma, deverá ser previsto um regime de transição.
Este regime de transição representa a concessão de um prazo para que os administradores públicos e demais pessoas afetadas pela nova orientação possam se adaptar à nova interpretação. É como se fosse uma modulação dos efeitos.