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A duas faces de Ferdinand Lassalle: o agitador político e o jurista

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As reivindicações imediatas do movimento encabeçado pelo pensador prussiano, como o sufrágio universal, voto secreto, liberdades democráticas e melhoria das condições de vida dos trabalhadores foram paulatinamente conquistadas nas décadas que se seguiram após sua morte.

Figura 1: Selo postal comemorativo do centenário da morte de Ferdinand Lassalle (Alemanha Ocidental, 1964)[2].

Ferdinand Lassalle (1825-1864), foi um jurista, filósofo e ativista político de origem prussiana. Viveu na época em que a Alemanha estava em processo de unificação sob o comando de Otto von Bismarck. Curiosamente, morreu jovem, aos 39 de anos de idade, vítima dos ferimentos oriundos de um duelo travado com um nobre em nome do amor declarado por uma donzela da aristocracia alemã. Seus seguidores ficaram conhecidos como lassaleanos. Teve uma vida curta mas deixou o seu legado no direito e na ciência política. Foi justamente no campo da política que Lassalle se destacou como um dos mais importantes pensadores da questão social na Alemanha do Século XIX.

Ideológo da social-democracia, Lassalle tinha uma concepção estatista da política [...]. Os principais objetivos da sua organização [a Associação Geral dos Trabalhadores Alemães, criada em 1863] eram, na esfera política, o sufrágio universal, e, na esfera econômica, a criação de cooperativas de produção financiadas pelo Estado, visto como um organismo acima dos interesses privados. O fim da propriedade privada não estava no horizonte. Lassalle era a favor da unificação alemã sob a direção da Prússia e defendia uma organização operária centralizada (LOUREIRO, 2005, p. 33)[3]. Também é sua a formulação da Lei de Bronze dos Salários (Ehernes Lohngesetz)[4][5], criada em clara alusão aos princípios teóricos da economia política malthusiana e ricardiana (CASTELO BRANCO, 2006, p. 157)[6].

O mais célebre embate de Lassalle se deu com Karl Marx e Friedich Engels, seus contemporâneos. As diferenças ideológicas entre eles estão intrinsecamente ligadas a situação fática de exploração e a crise de representação política do proletariado alemão naquele período. Rodrigo Castelo Branco (2006, p. 156) explica que no último quartil do século XIX, o movimento operário alemão fortaleceu-se com a fusão das duas organizações trabalhistas mais importantes da época, o Partido Operário Social-Democrata, de inspiração marxista, dirigido por Karl Liebknecht e August Bebel, e a Associação Geral dos Operários Alemães, liderada por discípulos de Lassalle. Desta fusão surgiu, no Congresso de Gotha, em 1875, o Partido Socialista Operário da Alemanha.

Por ocasião da fundação do novo partido, os dirigentes operários redigiram um programa político sob inspiração lassalliana, o que Marx e Engels julgaram um retrocesso teórico e programático do movimento operário alemão. Os dois revolucionários, ao receberem cópias do programa de Gotha, colocaram-se a redigir uma crítica pois não estavam de acordo com o conteúdo e a forma do programa. O resultado foi a Crítica do Programa de Ghota[7], redigida por Marx.

Enquanto Lassalle discutia a Lei de Bronze dos Salários, o programa de Marx e Engels discutia a teoria da mais-valia e pregava a abolição do próprio sistema assalariado, bem como das classes e da propriedade privada dos meios de produção. Enquanto Lassalle defendia a criação das cooperativas de trabalhadores, trabalhadores esses que deveriam se organizar num partido político independente e atuante no seio do estado, o programa de Marx e Engels propugnava, de maneira mais radical, a ditadura do proletariado. Diferentemente das teorias marxianas - que seriam posteriormente visitadas e revisitadas por intelectuais como Kautsky, Bernstein,  Lukács e Gramsci o sindicalismo rudimentar de Lassalle foi perdendo seus adeptos e sua relevância ao longo do tempo. Não obstante, o famoso reformista Eduard Bernstein escreveria mais tarde a obra Ferdinand Lassalle as a social reformer (título da versão inglesa) publicada em 1893[8].

No campo do Direto, Lassalle tratou principalmente de questões constitucionais. Tais questões eram de fato importantes no contexto histórico de uma Alemanha em vias de unificação e industrialização. Sem embargo, Aurélio Wander Bastos (2007) é da opinião de que, além de constitucionalista, Lassalle também se consagrou como precursor da sociologia jurídica, enquanto teoria crítica da ordem jurídica[9].

O jurista, filósofo e político prussiano foi responsável pelo famoso opúsculo denominado Über die Verfassung, traduzido para a edição brasileira como A Essência da Constituição[10] ou ainda Que é uma Constituição?, obra originada em um discurso proferido em 1863[11]. Nele, Lassalle nega qualquer força normativa ao texto constitucional, pois para ele a Constituição consistiria em um conjunto de fatores reais de poder, escritos em uma folha de papel, de tal sorte que sem os primeiros, o texto constitucional perderia sentido e eficácia social, resumindo-se, tão somente, à sua expressão escrita, politicamente irrelevante, e, portanto, não passaria de uma mera folha de papel [ein Stück Papier] (SARLET; GODOY, 2021, p. 35-36)[12]. Trata-se do conceito sociológico de constituição, até hoje citado nas disciplinas de Teoria da Constituição das graduações em Direito.

Posteriormente, surgiriam novas concepções de constituição como a concepção positivista de Hans Kelsen e a concepção decisionista de Carl Schmitt. Todavia, a mais importante refutação do conceito sociológico desenvolvido por Lassalle foi feita por Konrad Hesse (1919-2005) em sua obra A Força Normativa da Constituição (1959). Apenas perfunctoriamente, vale apontar que nesta obra Hesse não ignora a existência dos fatores reais de poder (militar, social, econômico e intelectual), mas defende que a Constituição não pode ser considerada um mero pedaço de papel fruto da Realpolitik de um dado período, pois possui existência jurídica própria (separada da política) e é dotada de uma força normativa que aumenta conforme a eficácia de seus comandos[13][14].

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É interessante notar como a relevância das ideias de Lassalle não se dá de maneira autônoma talvez por seu caráter embrionário - mas sim quando são comparadas com as ideias de outros pensadores ou quando são por eles criticadas. Foi possível perceber que grande parte da produção científica sobre Lassalle segue essa mesma linha. Ainda assim, tal posicionamento é compreensível levando-se em conta a morte prematura do autor, que formulou seus ideais em obras curtas sem aprofundamento teórico, mais dadas a objetivos políticos concretos do que a erudição ou ao rigor científico.

As reivindicações imediatas do movimento encabeçado pelo pensador prussiano, como o sufrágio universal, voto secreto, liberdades democráticas e melhoria das condições de vida dos trabalhadores (LOUREIRO, 2005, p. 33), seriam paulatinamente conquistadas nas décadas que se seguiram após sua morte, num processo evolutivo que culminou na consagração dos direitos sociais e trabalhistas na Constituição de Weimar (1919).

De qualquer modo, o lassalismo - como ideologia política - ficou eminentemente restrito ao Século XIX, sem deixar de marcar o seu lugar nas páginas da história da social democracia alemã. É por essa razão que, em qualquer relato histórico sobre o pioneirismo na questão social, o nome de Lasssalle deve ser lembrado. Da mesma forma, ainda hoje as suas lições jurídicas não podem ser olvidadas nas discussões acadêmicas que versarem sobre o conceito de constituição.

  1. .
  2. https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Stamps_of_Germany_(BRD)_1964,_MiNr_443.jpg
  3. LOUREIRO, Isabel. A Revolução Alemã [1918-1923]. 2. ed. rev. São Paulo: Editora Unesp, 2020.
  4. Tese na qual defendia que os salários não devem estar abaixo de um mínimo vital, dado que aumentando a população trabalhadora de forma contínua, os salários, por força da lei da oferta e da procura, poderão ficar abaixo desse nível, dado que a população aumenta mais depressa que os postos de trabalho (MALTEZ, 2009).
  5. MALTEZ, José Adelino. Lei de bronze (ehernes Gesetz) dos salários. Maltez, 2009. Disponível em: http://maltez.info/aaanetnovabiografia/Conceitos/Lei%20de%20bronze%20dos%20salarios.htm#:~:text=Tese%20de%20Ferdinand%20Lassalle,depressa%20que%20os%20postos%20de. Acesso em: 31 mar. 2022.
  6. CASTELO BRANCO, Rodrigo. A QUESTÃO SOCIAL NA ORIGEM DO CAPITALISMO: pauperismo e luta operária na teoria social de Marx e Engels. 2009. Dissertação (Mestrado em Serviços Social) Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2006.
  7. Esta obra foi publicada no Brasil em língua portuguesa pela Editora Boitempo (2012).
  8. https://www.marxists.org/reference/archive/bernstein/works/1893/lassalle/index.htm
  9. BASTOS, Aurélio Wander. Prefácio. In: LASSALLE, Ferdinand. A Essência da Constituição. Tradução de Walter Stönner. 7. ed. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2007
  10. LASSALLE, Ferdinand. A Essência da Constituição. Tradução de Walter Stönner. 7. ed. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2007.
  11. Recomenda-se fortemente a leitura do prefácio escrito por Aurélio Wander Bastos para a versão deste livro editada pela Lumen Juris.
  12. SARLET, Ingo Wolfgang; GODOY, Arnaldo Sampaio de Moraes. HISTÓRIA CONSTITUCIONAL DA ALEMANHA Da Constituição da Igreja de São Paulo à Lei Fundamental. Porto Alegre: Editora Fundação Fênix, 2021.
  13. Embora a Constituição não possa, por si só, realizar nada, ela pode impor tarefas. A Constituição transforma-se em força ativa se essas tarefas forem efetivamente realizadas, se existir a disposição de orientar a própria conduta segundo a ordem nela estabelecida, se, a despeito de todos os questionamentos e reservas provenientes dos juízos de conveniência, se puder identificar a vontade de concretizar essa ordem. Concluindo, pode-se afirmar que a Constituição converter-se-á em força ativa se fizerem-se presentes, na consciência geral particularmente, na consciência dos principais responsáveis pela ordem constitucional - não só a vontade de poder (Wille zur Macht), mas também a vontade de Constituição (Wille zur Verfassung) (HESSE, 1991, p. 19).
  14. HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sergio Antônio Fabris Editor, 1991.
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Sobre o autor
Lucas Hendricus Andrade Van den Boomen

Advogado e Consultor Previdenciário. Mestrando em Direito na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Pós-graduado em Direito Previdenciário e Prática Previdenciária pela Faculdade Legale. Bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas). Associado efetivo da Sociedade Numismática Brasileira (SNB). Membro do Studium Iuris - Grupo de Pesquisa em História da Cultura Jurídica (CNPq/UFMG). Vice-Presidente da Comissão de Direito Constitucional da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB/MG) - Subseção Contagem. Membro da Comissão de Direito Previdenciário da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB/MG) - Subseção Contagem. Possui artigos publicados em jornais e revistas jurídicas. Perfil no academia.edu: https://pucminas.academia.edu/LucasVandenBoomen.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BOOMEN, Lucas Hendricus Andrade Van den. A duas faces de Ferdinand Lassalle: o agitador político e o jurista. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 27, n. 6881, 4 mai. 2022. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/97109. Acesso em: 25 abr. 2024.

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