Uma vez que as cotas em universidades e em concursos públicos, depois de muitas batalhas sociais, se tornaram realidade legislativa, juridicamente sedimentada, o momento é de reflexões em torno de novo desafio, que são as cotas nos cargos superiores da administração pública, sem prejuízo de outros âmbitos, obviamente!
Se for para lembrar dos obstáculos que existem no meio do caminho, assim como se deu com relação a alguns degraus já felizmente superados nesse campo das cotas, certamente eles existem, como se encontram retratados, por exemplo, a conferir, por quem queira, mediante a ação civil pública sob nº 0004525-86.2017.8.08.0048, que tramitou perante a Vara da Fazenda Pública Municipal da Serra-ES e visava que as normas relativas às cotas sirvam de parâmetro também para as contratações que independam de concurso público, notadamente para a ocupação de cargo comissionado.
A rigor, é muito mais uma questão de iniciativa e vontade política do que propriamente a possibilidade ou impossibilidade de sua instituição, já que, certamente, se algum óbice há, seja de que natureza for, ao invés de conduzir à resignação na omissão, deve ser enfrentado e superado, pois não está em sintonia com o planejamento e execução de políticas públicas voltadas para a promoção da igualdade racial, conforme emana da Carta Constitucional e legislação infraconstitucional decorrente.
Não parece razoável continuar a se contar nos dedos os negros que ocupam cargos superiores na administração pública - ou ocupavam, já que em alguns dos mais pujantes órgãos nem ali estão mais eles e nem a representatividade da raça.
Sem prejuízo de outros, evidentemente, pois o raciocínio é de que ocorra com todos, mediante ações que levem à superação dos eventuais óbices, identifico o Ministério Público, pelo seu perfil constitucional, como Órgão que muito se compatibiliza com iniciativas visando à consecução dos objetivos, inclusive com relação aos próprios cargos de Procuradores de Justiça, razão pela qual, passo a elencar balizas legais e possível forma de sua operacionalização quanto ao tema.
O grande marco legal, na linha traçada pelo Texto Constitucional, se deve à Lei nº 12.288, de 20.07.2010, que, ao instituir o Estatuto da Igualdade Racial, expressamente definiu, em seu artigo 1º, que o mesmo se destina, dentre outros objetivos, a "garantir à população negra a efetivação de igualdade de oportunidades". Por sua vez, o artigo 4º, ao disciplinar quanto à participação da população negra, em condição de igualdade de oportunidades, previu que a mesma será promovida, prioritariamente, dentre outras, por meio de "adoção de medidas, programas e políticas de ação afirmativa".
Posteriormente, por meio da Lei nº 12.990/2014, foi instituída a reserva aos negros de 20% das vagas oferecidas nos concursos públicos para provimento de cargos efetivos e empregos públicos no âmbito da administração pública federal, das autarquias, das fundações públicas, das empresas públicas e das sociedades de economia mista controladas pela União.
Vale destacar que uma vez instado, o Supremo Tribunal Federal, declarou a Constitucionalidade da referida "Lei de Cotas", no julgamento da Ação Declaratória de Constitucionalidade 41 DF (0000833-70.2016.1.00.0000).
No âmbito do Ministério Público, a Resolução nº 170, de 13.06.2017, do Conselho Nacional do Ministério Público, em seu artigo 2º, disciplinou que "serão reservadas aos negros o mínimo de 20% (vinte por cento) das vagas oferecidas nos concursos públicos para provimento de cargos efetivos do Quadro de Pessoal do Conselho Nacional do Ministério Público e do Quadro de Pessoal do Ministério Público, bem como de ingresso na carreira de membro dos órgãos enumerados no art. 128, incisos I e II, da Constituição Federal".
Ocorre que o presente texto não se propõe a discutir a reserva de vagas nos concursos públicos, o que, inclusive já se encontra juridicamente consolidado, mas sim, as cotas nos cargos superiores da Administração, partindo, devido ao seu perfil constitucional, pelo Ministério Público Brasileiro.
Para tanto, registre-se que acompanhando os rumos mais avançados quanto ao tema, no país, a Recomendação CNMP Nº 40, de 09.08.2016, recomendou, em linhas gerais, "a criação de órgãos especializados na promoção da igualdade étnico-racial, a inclusão do tema em editais de concursos e o incentivo à formação inicial e continuada sobre o assunto."
Pontue-se, por sua vez, que a Recomendação nº 41, também de 09.08.2016, "define parâmetros para a atuação dos membros do Ministério Público brasileiro para a correta implementação da política de cotas étnico-raciais em vestibulares e concursos públicos".
Já na esteira das referidas Recomendações, bem como da mencionada Resolução nº 170, tocante à reserva de vagas nos concursos públicos, adveio a Recomendação nº 79, de 30 de novembro de 2020, recomendando "a instituição de programas e ações sobre equidade gênero e raça no âmbito do Ministério Público e dos Estados".
Tal documento, em seu artigo 1º, recomenda "a todos os ramos e unidades do Ministério Público brasileiro que constituam programas e ações sobre gênero e raça, para que elaborem, promovam e concretizem práticas de gestão de pessoas e de cultura organizacional visando à igualdade de oportunidades profissionais entre todas as pessoas no âmbito da Instituição, sem preconceitos de qualquer natureza ou quaisquer outras formas de discriminação."
Embora a mesma Recomendação se destine à constituição de programas e ações sobre equidade gênero e raça, considera-se importante registrar, a propósito, a bem da verdade, que de forma que ora não se compreende, nenhum artigo aborda, especificamente, quanto a questões de raça, enquanto tanto o artigo 2º, em seus incisos, cuida em definir diretrizes para a "política institucional de promoção de equidade de gênero", como o artigo 3º, em seus incisos, leva em consideração, também, proposição de medidas e práticas adequadas para implementação "da igualdade de gênero, tendo presentes a dimensão relacional do gênero e da diversidade entre as mulheres".
Por fim, contudo, a Resolução nº 244, de 27.01.2022, ao dispor sobre critérios para fins de promoção e de remoção por merecimento e para permuta de integrantes do Ministério Público, no parágrafo único do artigo 5º estabeleceu: "na aferição do merecimento, dever-se-ão observar as ações sobre equidade de gênero e de raça, bem como os mecanismos e as normas que garantem a efetiva observância dos princípios constitucionais da impessoalidade, da moralidade, da isonomia, da eficiência, da legalidade e da transparência do processo de apuração do mérito".
Desta forma, enquanto não se avança sobre normas legislativas tocantes à instituição de cotas nos cargos superiores da administração pública, cuja provocação pode, inclusive, se dar a partir das próprias instâncias do Ministério Público Brasileiro, como delineado, o Órgão, entretanto, possui mecanismos para a implementação, desde logo, de tal política em seu âmbito.
Ora, se o parágrafo único do artigo 5º da Resolução CNMP nº 244, de 27.01.2022, estabelece que na aferição do merecimento, dever-se-ão observar as ações sobre equidade de gênero e de raça (...), tratando-se de norma imperativa, por mais repetitivo que realmente seja a presente afirmação, ela verdadeiramente impõe, desde logo, o dever de observar as ações sobre equidade de gênero e de raça na aferição do merecimento!
Desta forma, entende-se:
1. QUANTO AO GÊNERO E À RAÇA: pressupõe, fundamentalmente, necessário levantamento no tocante ao gênero e à raça dos Membros do Ministério Público Brasileiro, divididos por área de abrangência, na forma do artigo 128 da Constituição Federal.
2. QUANTO AO DEVER DE OBSERVÂNCIA DE EQUIDADE NA AFERIÇÃO DO MERECIMENTO: pressupõe necessária observância de parâmetros para tal, entendendo-se como critério mais objetivo possível, no tocante à raça negra, aquele que considere as mesmas balizas estabelecidas a título de cotas mediante concurso público, logo, um mínimo de 20% também no preenchimento dos cargos superiores existentes em cada Ministério Público.