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O jurista e o canto das sereias

28/04/2022 às 17:15
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Em época de dogmatismo jurídico exacerbado, de apego à filosofia da consciência, da doutrina dos precedentes, de uso corrente de decisões estandardizadas de juízos monocráticos e de tribunais, cabe ao jurista, de fato comprometido com seu tempo, se posicionar.

O texto que segue foi por mim publicado neste importante sítio Jus Navigandi em 06/07/2020 e já se passaram quase dois anos.

Resolvi revisitá-lo, a fim de incorporar algumas reflexões que reputo importantes e atuais, considerando a hodierna realidade.

Meu modesto objetivo é contribuir para que se mantenha acesa a chama do indispensável otimismo, no que diz com o modo de produção do Direito em tempos pós-modernos. Vem a calhar o formidável pensamento do prof. Dr. Haroldo Malheiros Duclerc Verçosa, que li hoje:

Nesse universo jurídico estruturalmente autônomo o ilícito deixa de ser ilícito; o crime deixa de ser crime; o consumidor é toda pessoa natural ou jurídica considerada como coitadinho pelo julgador; as normas se transformam em conselhos não seguidos pelo destinatário; os contratos passam a ser apenas cartas de intenção sem criar responsabilidades; as sociedades são tomadas como ajuntamentos livres sem geração de direitos, obrigações e responsabilidades; a boa-fé objetiva é tão somente um adjetivo nas relações jurídicas; os títulos estão em descrédito; a taxa de juros é sempre a média; a recuperação judicial é uma dívida da sociedade civil em benefício do titular da empresa inadimplente; as normas realizam congressos de congraçamento, dialogando entre si; a arbitragem é instituto judicial; a certeza e a segurança jurídicas são luxos supérfluos; os seguros são dívidas das seguradoras; para que haja adimplemento contratual eficaz basta ser parcial, etc.,  etc., etc.[1]

Confesso que há certo desencanto, para não dizer certa angústia quanto a formação acadêmica dos jovens, esses mesmos jovens que viverão, certamente, outro Direito, que não exatamente aquele que aprendi nos tempos de faculdade, há mais de quatro décadas e que a ele me dedico.

Dou prosseguimento ao escrito.

O livro Odisseia - escrito em forma de poema por Homero -, é obra clássica da literatura mundial, perene, que deveria ser lida e relida.

No Capítulo XII desse épico de fôlego o autor trata da passagem de Ulisses por uma ilha repleta de sereias. Com metáforas, busca demonstrar que há armadilhas e encantos em cada esquina da vida.

Também expõe as precauções utilizadas pelo herói para não se deixar seduzir pelas miragens e cantos, a fim de ultrapassar a barreira de forma tranquila.

Apresento um pequeno fragmento da obra-prima:

Agora, escuta: o que te vou dizer um deus mesmo te fará lembrar. Primeiro, encontrarás as duas Sereias; elas fascinam todos os homens que se aproximam. Se alguém, por ignorância, se avizinha e escuta a voz das Sereias, adeus regresso! não tornará a ver a esposa e os filhos inocentes sentados alegres a seu lado, porque, com seu canto melodioso, elas o fascinam, sentadas na campina, em meio a montões de ossos de corpos em decomposição, cobertos de peles amarfanhadas. Toda em diante; amassa cera doce de mel e veda os ouvidos de teus tripulantes para que mais ninguém as ouça[2]

De fato, o poder de sedução dos seres míticos - com seus cantos capazes de enfeitiçar os homens - era tanto que embarcações foram jogadas contra as pedras encarpadas da ilha. Os tripulantes simplesmente perderam a razão e morreram, diante da melodia mortal e envolvente das sereias. Sim, as sereias...

Em tempos pós-modernos, com os formidáveis recursos tecnológicos ao alcance da mão, o jurista também pode ceder ao canto das sereias e por elas ser seduzido; pode ser atraído e cair em grandes armadilhas do mundo virtual, ao dispor de todos. O canto das sereias está em todos os lugares, podendo ser ouvido ao fazer uma simples pesquisa acadêmica.

Afinal, são infinitas as ferramentas de pesquisa na internet; livros inteiros são acessados por estudantes de Direito e profissionais das mais variadas áreas; há livre acesso (e compartilhamento) das recentes decisões dos tribunais, considerando os tempos pós-modernos; há os que ensinam a redigir petições e modelos destas são colocados à disposição dos que por eles procuram. Basta um clique para ser seduzido por bancos de petições. Isso mesmo! São outros os tempos. Há de se reconhecer.

Os códigos e leis esparsas estão nas telas de celulares e não mais se vende grande quantidade de livros e códigos jurídicos (raras as livrarias especializadas, sem descuidar que algumas naufragaram); dicionários físicos (sim, aqueles pesados volumes) são desprezíveis, porquanto de somenos importância.

Proliferam apresentações de PowerPoint nas salas de aulas, talvez por ser mais fácil a transmissão de conteúdos quiçá difíceis; os alunos, especialmente dos primeiros períodos de faculdade, ficam, não raro, sem base em disciplinas propedêuticas relevantes (introdução ao estudo do direito e hermenêutica jurídica, por exemplo); não se descuidando do linguajar e palavras eminentemente técnicas, que soam estranhas aos acadêmicos.

A falha na formação acadêmica e humanista de muitos juristas começa quiçá nos bancos de faculdade, onde é mais importante a leitura de textos legais, deixando-se de lado a compreensão efetiva daquilo que se leu; impera a reprodução do conhecimento. Como diz Paulo Freire, ensinar não é transferir conhecimento, mas sim criar possibilidades para sua produção.

No tempo em que estive em sala de aula - e já se vão mais de quarenta anos, havia uma cadeira no Curso de Direito denominada Linguagem Forense, ministrada pelo ilustre professor Ayrton Gonçalves Celestino.

Sim, aprendíamos em sala de aula os primeiros passos de como deveria ser redigida uma petição inicial, uma contestação, um recurso de apelação e um simples pedido de instauração de inquérito policial. As aulas eram vibrantes porquanto tínhamos mais contato com a realidade; vivenciamos o Direito na prática e não a abstração de determinados temas.

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Evidentemente, inexistiam as facilidades tecnológicas de hoje, onde basta uma simples pesquisa na internet para tudo localizar. Naquele tempo era muito diferente. Aos alunos, disponíveis apenas os códigos secos e cada um, considerando sua capacidade intelectual, deveria redigir texto jurídico, mediante linguagem adequada, a fim de demonstrar conhecimento.

O art. 282 do Código de Processo Civil era vivo na minha mente dos acadêmicos e me recordo muito bem do esmero que havia ao redigir à mão uma petição inicial. Bons e velhos tempos da pena e do papel. Sou de outra época acadêmica.

A meu sentir, não é correto - por exemplo - pura e simplesmente chegar na sala de aula e solicitar que os alunos redigiam uma petição inicial ou um recurso de apelação, sem que haja sido ensinado o que fazer e como fazer.

Em época de dogmatismo jurídico exacerbado, de apego à filosofia da consciência, da doutrina dos precedentes (a propósito: Lenio Streck), de uso corrente de decisões estandardizadas de juízos monocráticos e de tribunais, cabe ao jurista, de fato comprometido com seu tempo, se posicionar; não se deve seduzir por cantos estranhos e envolventes, os cantos das sereias, que estão por aí.

Tal como fez Ulisses, o jurista pós-moderno, em tempos de lives e ferramentas técnicas variadas, bem poderia colocar cera doce de mel nos ouvidos, a fim de não ouvir e ler certas idiossincrasias jurídicas que andam por aí.

Também seria interessante se amarrar firmemente ao mastro do bom senso e do equilíbrio jurídico a fim de, mesmo ouvindo o canto mortal das sereias, rumar para porto seguro, que se traduz no saber, no conhecimento científico, no redigir técnico e sem o maltrato da Língua Pátria.

Afinal, todo jurista quer acabar na sabedoria científica que é o máximo de liberdade ao real, às coisas, aos fatos, dentro de si. Um subir que é um lento descer em duas profundidades: a do mergulho na realidade e a do domínio de si[3].

Cabe repensar a respeito do atual momento de produção do Direito em tempos pós-modernos.

Os acadêmicos de hoje serão os profissionais do Direito amanhã[4].


  1. https://www.migalhas.com.br/depeso/364693/crescimento-desordenado-do-universo-juridico-e-suas-consequencias. Acesso: 28/04/2022.
  2. São Paulo: Editora Abril, 2010, p. 192. Clássicos Abril Coleções, vol. 35.
  3. PONTES DE MIRANDA. O problema fundamental do conhecimento. 2ª edição. Rio de Janeiro: Editor Borsoi, 1972, p. 8. Sobre o grande Pontes de Miranda, o jurista Nabor Bulhões assentou que:

ConJur Pontes de Miranda hoje é pouco lido no Brasil?

Nabor Bulhões Muito pouco. Muito pouco. Muito, muito pouco. E os grandes cultores da ciência jurídica no Brasil se ressentem muito disso. O professor Souto Maior Borges, por exemplo, fez a apresentação de um magnífico livro do professor Humberto Ávila, grande cultor do Direito germânico, chamado "Sistema Constitucional Tributário". E Souto Maior registrou na apresentação isso que eu estou dizendo, lamentando que a superficialidade dominante hoje na produção de monografias, de compêndios, que essa produção superficial tenha esquecido Pontes de Miranda. Ele diz que isso é absolutamente inexplicável e faz um chamamento à necessidade de revigorar, de reler Pontes de Miranda e verificar o quanto de atualidade existe na obra dele. Então, na realidade, Pontes não é apenas pouco lido, ele está sendo esquecido. Nós estamos vivendo uma época de cultura de superficialidade no estudo da ciência jurídica. E superficialidade não só no estudo, mas na produção da ciência jurídica. Aquela abrangência e aquela completude da obra de Pontes não se repetem hoje. Exatamente é por isso que eu louvo essa iniciativa da ConJur de retomar, relembrar o quanto Pontes de Miranda representou e representa pela sua obra imorredoura, que está ao nosso alcance, para a ciência jurídica do Brasil e do mundo.

Prossegue o pensador: Acredito que o espírito verticalizado de Pontes iria estranhar muito a cultura da superficialidade dominante no presente. Isso o incomodaria profundamente, pelo contexto em que hoje nós temos apenas compêndios e monografias. Então eu acho que ele estranharia muito a superficialidade do nosso mundo de hoje, tanto na área jurídica quanto na área não jurídica. Os tutores, os grandes tutores dos diversos aspectos do conhecimento humano, estão diminuindo, na verdade eles são raríssimos. A ligeireza dos tempos modernos está comprometendo esse sentido de completude e de profundidade que sempre marcou a vida e a obra de Pontes Miranda, o que nos permite a ela nos referir como uma obra monumental.

https://www.conjur.com.br/2021-dez-12/entrevista-nabor-bulhoes-advogado

Acesso: 28/04/2022. Destaque no original.

4. https://www.conjur.com.br/2022-fev-13/segunda-leitura-formado-direito-aprovado-exame-ordem-agora#:~:text=Segundo%20reportagem%20de%20J%C3%BAnior%20Borneli,no%20Brasil%22%20%5B1%5D. Acesso: 28/04/2022.

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Sobre o autor
Carlos Roberto Claro

Advogado em Direito Empresarial desde 1987; Ex-Membro Relator da Comissão de Estudos sobre Recuperação Judicial e Falência da OAB Paraná; Mestre em Direito; Pós-Graduado em Direito Empresarial; Professor em Pós-Graduação; Parecerista; Pesquisador; Autor de onze obras jurídicas sobre insolvência empresarial.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CLARO, Carlos Roberto. O jurista e o canto das sereias. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 27, n. 6875, 28 abr. 2022. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/97563. Acesso em: 26 abr. 2024.

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