Direito Sistêmico: uma nova perspectiva para o processo de formação do profissional de Direito

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Resumo: A partir dos conceitos desenvolvidos por Bert Hellinger, é possível promover dentro da dinâmica das constelações, intervenções no meio jurídico, referente aos aspectos relacionados a resolução de conflitos. Este método vem sendo trazido para o âmbito do direito, diante de uma cultura de paz, que remete a busca por soluções pacíficas dos conflitos. É notável a presença do Direito sistêmico em um novo movimento aliado as práticas já existentes nos tribunais. Muitos são os tribunais Brasileiros que aderiram e, inclusive, demonstram resultados a respeito dos acordos estabelecidos diante desta prática resolutiva e pacífica de controvérsias. Este estudo tem por objetivo compreender, diante da ótica do Direito Sistêmico, as perspectivas acerca do processo de formação dos profissionais de Direito. A metodologia utilizada para elaboração e concretização da pesquisa, foi a revisão bibliográfica. Conclui-se que não é unanime a utilização das constelações nos tribunais, menos ainda a incorporação dos princípios sistêmicos à prática jurídica. Ainda, percebeu-se a necessidade em se falar de uma nova consciência jurídica e também social.

Palavras-chave: Constelação familiar; Direito sistêmico; Prática jurídica; Resolução de conflitos.

Sumário: 1. Introdução. 2. Direito Sistêmico: aspectos históricos e conceituais. 2.1 As constelações sistêmicas de Bert Hellinger. 2.1.1 Como se realiza uma constelação. 2.1.2 As bases científicas das constelações familiares. 2.1.3 Constelações sistêmicas no contexto jurídico. 3. Realização do Direito Sistêmico no brasil. 3.1 A expansão das comissões de Direito Sistêmico no país. 4. Discussões adversas sobre a utilização das constelações familiares no Judiciário. 5. Aspectos relacionados a formação do futuro operador do Direito. 6. A nova consciência jurídica. 7. Considerações finais. 8. Referências.


1. INTRODUÇÃO

A ciência jurídica é uma área das mais antigas e tradicionais que se constituiu e se cristalizou com uma imagem social engessada em princípios e normas legais. Esta ciência sempre buscou a solução dos conflitos sociais através da aplicabilidade da pura e simples da lei. No entanto, novas demandas sociais imprimem dinamicidade para aplicação desta ciência.

Desde a Constituição de 1988, já em seu preâmbulo ela aponta que os conflitos sejam solucionados de maneira pacífica, de fato ensejando abertura de novas alternativas para solucionar as lides. Segue em seu artigo 4º, VII, reafirmando a proposta de criar alternativas pacíficas para solucionar questões conflitantes, como se observa a seguir:

nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembleia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, [...] com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte Constituição da República Federativa do Brasil, [...] art. 4º A República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos seguintes princípios: [...] VII - solução pacífica dos conflitos.

Em 2010, surge a resolução 125 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que tem por finalidade tratar a respeito das práticas de resolução de conflitos: art. 1º Fica instituída a Política Judiciária Nacional de Tratamento Adequado dos Conflitos de Interesses, tendente a assegurar a todos o direito à solução dos conflitos por meios adequados à sua natureza e peculiaridade (CNJ, 2020), conforme redação dada pela resolução nº 326, de 26 de junho de 2020, bem como, explica em seu parágrafo único:

Parágrafo único. Aos órgãos judiciários incumbe, nos termos do art. 334 do Código de Processo Civil de 2015, combinado com o art. 27 da Lei 13.140, de 26 de junho de 2015 (Lei de Mediação), antes da solução adjudicada mediante sentença, oferecer outros mecanismos de soluções de controvérsias, em especial os chamados meios consensuais, como a mediação e a conciliação, bem assim prestar atendimento e orientação ao cidadão.

Em 2015 surge a lei de mediação nº 13.140 de 2015, para definir a ritualista dos procedimentos de mediação e conciliação, com a finalidade de: art. 1º - esta Lei dispõe sobre a mediação como meio de solução de controvérsias entre particulares e sobre a autocomposição de conflitos no âmbito da administração pública. Desde então, várias são as opções de uso de técnicas e práticas que auxiliam o judiciário na resolução de controvérsias, de maneira pacífica, de modo que evite a judicialização da causa e diminua a demanda excessiva de processo que o judiciário brasileiro enfrenta diariamente.

Neste contexto é notável a presença do Direito sistêmico em um novo movimento aliado as práticas já existentes nos tribunais. Muitos são os tribunais Brasileiros que aderiram e, inclusive, demonstram resultados a respeito dos acordos estabelecidos diante desta prática resolutiva e pacífica de controvérsias.

A respeito da metodologia, entende-se por pesquisa bibliográfica a revisão da literatura sobre as principais teorias que norteiam o trabalho científico. Essa revisão é o que chamamos de levantamento bibliográfico ou revisão bibliográfica, a qual pode ser realizada em livros, periódicos, artigo de jornais, sites da Internet entre outras fontes (BOCCATO, 2006).

Diante do contexto atual, de pandemia do covid19, esta foi a melhor opção para realização deste estudo, a revisão bibliográfica, partindo do pressuposto que é pertinente revisar não só o que existe em periódicos e literatura, mas também em sites ou revistas, para ter maior amplitude acerca da temática.

Ademais, este estudo tem por objetivo compreender, diante da ótica do Direito Sistêmico, as perspectivas acerca do processo de formação dos profissionais de Direito. Diante disso, serão discutidos em primeiro tópico, aspectos conceituais e históricos do Direito Sistêmico, em seguida, num segundo tópico, serão retratadas as experiências realizadas em tribunais Brasileiros e seus resultados, no terceiro tópico serão abordadas posições contrárias a esta prática no judiciário. Em quarto e quinto tópico, serão apresentados aspectos notoriamente relevantes para formação do profissional de Direito, a partir de uma perspectiva humanista e sistêmica e, por fim, serão apresentadas as conclusões diante da discussão em foco.


2. DIREITO SISTÊMICO: ASPECTOS HISTÓRICOS E CONCEITUAIS

Falar de Direito Sistêmico, é antes de tudo, trazer à lume a ideia das Constelações Sistêmicas. Esta se constitui como um método fenomenológico terapêutico breve com uso de representação de imagens. A partir dos conceitos desenvolvidos por Bert Hellinger, o disseminador do método, cabendo a ressalva que ele se baseou em várias outras técnicas, é possível promover dentro da dinâmica das constelações, intervenções no meio jurídico, referente aos aspectos relacionados a resolução de conflitos.

Este método vem sendo trazido para o âmbito do direito, diante de uma cultura de paz, que remete a busca por soluções pacíficas dos conflitos. Deste modo, para melhor compreender o conceito de Direito Sistêmico, faz-se necessário uma breve contextualização sobre as constelações, em seguida de sua trajetória no âmbito jurídico.

Bert Hellinger nasceu em 16 de dezembro de 1925, em Leimen, Alemanha. Nascido em uma família católica, aos 10 anos foi enviado para o Monastério Católico escolar para estudar. Mais tarde, foi ordenado e seguiu para África, como missionário. Em 1942 foi para a guerra, onde acabou prisioneiro na Bélgica, em um campo de concentração. Conseguiu escapar e retornou para Alemanha, onde entrou na ordem dos Jesuítas. Dentro deste caminho, foi enviado para África para trabalhar como missionário nas tribos Zulus.

Permaneceu na África por 16 anos. Lá, também estudou na Universidade da África do Sul onde se formou em Educação. Durante este tempo, chegou a ser o administrador responsável por mais de 150 escolas da diocese. Nos anos 60, entrou em contato com grupos de estudos onde começou a perceber a fenomenologia como fonte de conhecimento. Neste período ele saiu do seu trabalho como missionário e como padre.

No começo dos anos 70, estudou psicanálise em Viena, completando os estudos dessa vertente em Munique. Em 73, foi para os EUA estudar com Arthur Janov a Terapia Primal. Também encontrou em Eric Berne e sua Análise Transacional algumas bases que mais tarde serviriam para o insight da Constelação Familiar. Aos 70 anos, ainda não havia escrito nenhum dos livros que conhecemos hoje. Então, por um convite de Gunthard Weber, psiquiatra alemão, gravou e transcreveu uma série de workshops que se tornou seu primeiro livro (SILVA, 2017).

2.1 AS CONSTELAÇÕES SISTÊMICAS DE BERT HELLINGER

Para Hellinger, existem dentro de um sistema familiar, leis ocultas que regem seu funcionamento harmônico. O sistema se encontra em ordem, caso uma destas leis sejam desrespeitadas, o sistema entra em desequilíbrio e desarmonia, propiciando compensações para manter o equilíbrio.

Dentre tantas obras de sua autoria, ele descreve quais são estas ordens, denominadas de Ordens do amor. Nas relações afetivas o comportamento humano é regido por três leis: a lei do pertencimento, que diz respeito a ninguém poder ser excluído do sistema familiar. Quando isso ocorre, alguém em outra geração repete o destino do excluído. A lei da hierarquia, estabelecida pela ordem de chegada, que indica o lugar certo que cada um ocupa no sistema familiar.

Por fim, a lei da compensação, referente ao equilíbrio entre o dar e receber. O desequilíbrio coloca a relação em risco. Diz Bert Hellinger: penetrar as Ordens do Amor é sabedoria. Segui-las com amor é humildade (HELLINGER, 2006, p.15). Estes são princípios basilares das constelações, porém, existem vários outros conceitos importantes que não serão tratados nesta pesquisa, por não serem foco desta discussão.

2.1.1 Como se realiza uma constelação

Pode ser realizada em consultório, de forma individual, através de bonecos, de preferência o Playmobil, ou âncoras de solo que representam membros da família, assim como doenças, vícios, situações e sentimentos. Da mesma forma, pode ser realizada em grupo, em workshop, com pessoas representando os familiares da pessoa constelada.

Em grupo, a pessoa que quer trabalhar um tema (pessoa que quer ser constelada) escolhe, entre os participantes do grupo, representantes para os membros de sua família e para si mesmo, posicionando-os no campo mórfico, de acordo com suas imagens internas da família. Os representantes sentem e pensam semelhantes com o dos membros verdadeiros, mas sem conhecimento prévio, somente pela memória do campo que está aberto.

O constelador observa atentamente cada detalhe, após entender o padrão dos conflitos de relacionamento existentes, faz as propostas de intervenção através de frases de cura e movimentos corporais, para trazer a luz, as causas que estavam ocultas, invisíveis, possibilitando assim a solução, ou seja, restabelecer as ordens do amor, pelo movimento de cura. Ursula Franke-Bryson descreve sobre o trabalho das constelações e afirma:

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O trabalho de constelações de Bert Hellinger é uma forma de terapia breve, orientada pelas soluções. Traz à luz, de forma rápida e precisa as dinâmicas que ligam o cliente de uma forma disfuncional ao seu sistema de referência, que o limitam em suas possibilidades de ação e desenvolvimento pessoal, impedindo-o de estruturar a sua vida de uma forma positiva. No método das constelações são incluídas experiências técnicas e formas de procedimento de outras abordagens e escolas de psicoterapia, por exemplo, a hipnose, a terapia comportamental, a terapia gestalt e a terapia sistêmica (FRANKE-BRYSON, 2006, p.21).

Para explicar a possibilidade de os representantes terem sintomas e comportamento de pessoas que ele nem conhece, Hellinger, em seus seminários, alega não estar capacitado para explicar tal fenômeno, sabe que existe e utiliza. Porém, outros estudiosos se aprofundaram no assunto, como o biólogo Rupert Sheldrake, que propõe a ideia dos campos morfogenéticos. Sua ideia auxilia na compreensão dos sistemas que adotam comportamentos repetitivos de geração após geração.

São campos de memórias dotados de informações, onde o passado se torna presente pela ressonância mórfica. Sheldrake afirma: O método da Constelação estimula o pensamento multigeracional e possibilita a compreensão de problemas que atravessam gerações (SHELDRAKE, 2012, p.195). Acrescenta ainda:

Sendo um método que funciona parcialmente sem palavras, ele ajuda a acessar sentimentos que ficam gravados inconscientemente e antes do uso da palavra. O método da constelação proporciona a muitas pessoas o acesso a seus processos interiores, que eles de fato percebem em si, porém não entendem adequadamente e não conseguem articular. Muitas vezes, basta que o paciente veja os representantes em sua constelação, para que sejam ativados em seu interior padrões emocionais sepultados. Com a ajuda do método da Constelação é possível ter acesso a estruturas psíquicas que jamais estariam acessíveis por meio de intervenções verbais. Essa vantagem do método tem um valor inestimável, de modo especial, para elaboração de experiências traumáticas da primeira infância. (SHELDRAKE, 2012, p. 196).

O próprio Freud, criador da psicanálise já citava em seus trabalhos o processo de transgeracionalidade, e como é possível observá-lo. A transmissão psíquica, para Freud, envolve a questão do sujeito com sua herança psíquica, social, religiosa e cultural, mas também a descoberta do complexo de Édipo e tudo que daí deriva. Em sua obra A interpretação dos sonhos, Freud (1900), inaugura um novo caminho, ainda ligado à questão da histeria, ou seja, da transmissão inconsciente por identificação com o objeto ou com a fantasia do desejo do outro.

A discussão refere-se à imitação e ao contágio psíquico entre os sujeitos, mas também às modalidades intrapsíquicas da transmissão dos pensamentos (do sonho). A transmissão intersubjetiva no movimento pelo qual o sujeito se identifica com o desejo ou com o sintoma do outro. O que se transmite, de um a outro, é um traço inconsciente comum. Em sua obra Totem e tabu, Freud (1913) aponta para as investigações sobre a transmissão transgeracional de patologias:

[...] podemos presumir, com segurança, que nenhuma geração pode ocultar à geração que a sucede nada de seus processos mentais mais importantes, pois a Psicanálise mostrou que todos possuem, na atividade mental inconsciente, um "apparatus" que os capacita a interpretar as reações de outras pessoas, isto é, a desfazer as deformações que os outros impuseram à expressão de seus próprios sentimentos (FREUD, 1913, p. 11).

Freud inaugura outro percurso, o que se transmite de geração em geração: a transmissão do tabu, do crime e da culpa. Retoma o debate sobre o que é inato e o que é adquirido, a noção de patrimônio e de herança arcaica, considerando os fatores da história pessoal e da etiologia específica. Discrimina a transmissão por identificação aos modelos parentais (história do indivíduo) da transmissão genética, constituída por traços mnemônicos das relações com as gerações anteriores (pré-história do indivíduo). Na pré-história inclui-se a transmissão dos objetos perdidos, enlutados, fatos congelados e enigmáticos, sobre os quais não houve elaboração nem simbolização.

2.1.2 As bases científicas das constelações familiares

Rupert Sheldrake estudou filosofia e história das ciências, entre vários outros conteúdos, desenvolveu diversos trabalhos, inclusive a ideia dos campos morfogenéticos que ajudam compreender como os organismos adotam as suas formas e comportamentos característicos. A expressão morfo vem da palavra grega morphe que significa forma. Segundo o autor, os campos morfogenéticos são campos de forma, campos padrões ou estrutura de ordem. Estes campos organizam não só organismos vivos, mas também de cristais e moléculas.

Ele ainda descreve que os campos morfogenéticos ou campos mórficos são campos que levam informações, não energia, e são utilizáveis através do espaço e do tempo sem perda nenhuma de intensidade depois de terem sido criados. Eles são campos não físicos que exercem influência nos sistemas que apresentam algum tipo de organização inerente. Sheldrake afirma que a característica principal é que a forma da sociedade, ideias, cristais e moléculas dependem do modo em que tipos semelhantes foram organizados no passado. Há uma espécie de memória integrada nos campos mórficos de cada coisa organizada.

Para Sheldrake, os organismos vivos não herdam só os genes, mas também os campos mórficos, por meio de ressonância mórfica, de forma não material, não somente dos antepassados diretos, mas também dos antepassados da espécie. Entende-se que os campos mórficos funcionam modificando eventos probabilísticos. Quase toda natureza é inerentemente caótica. Os campos mórficos são uma estrutura inalterável, mas muda ao mesmo tempo em que muda o sistema o qual está associado. A palavra-chave é hábito, sendo este o fator que dá origem aos campos morfogenéticos.

Depois de muitos anos de pesquisa, chegou-se à conclusão que a chave deste mistério estaria numa espécie de memória, uma memória coletiva e inconsciente que faz com que as formas e hábitos sejam transmitidos de geração em geração. O campo morfogenético seria um campo de influência que atua dentro e em torno de todo organismo vivo. Para o cientista, cada grupo de animais, plantas, etc., estão cercados por um campo invisível que contém uma memória que todos usam. Estes campos são o meio pelo qual os hábitos se formam, se mantém e se repetem.

O processo de coletivização das informações foi batizado por Sheldrake como ressonância mórfica, em que, por meio dela, as informações se propagam no interior do campo mórfico, alimentando uma espécie de memória coletiva. Outra teoria como a de Carl Jung, que enfatiza as experiências transpessoais da psique, sem excluir outros fatores o processo de ressonância mórfica, forneceria um novo e importante ingrediente para compreensão de patologias coletivas como o sadomasoquismo, o morbismo e a violência que assumiram proporções epidêmicas na sociedade contemporânea, e poderia propiciar a criação de métodos mais efetivos para o tratamento.

Segundo Jung, o inconsciente coletivo não deve sua existência a experiências pessoais; ele não é adquirido individualmente. O inconsciente pessoal, segundo o autor é representado pelos sentimentos e ideias reprimidas, que são desenvolvidas durante a vida de um sujeito, já o inconsciente coletivo não se desenvolve individualmente, ele é herdado. Este é um conjunto de sentimentos, pensamentos e lembranças compartilhadas por toda a humanidade.

O inconsciente coletivo é um reservatório de imagens latentes, chamadas de arquétipos ou imagens primordiais, que cada pessoa herda de seus ancestrais. A pessoa não tem lembrança das imagens de forma consciente, no entanto, herda uma predisposição para reagir ao mundo da forma que seus ancestrais faziam. Deste modo, a teoria estabelece que o ser humano nasce com muitas predisposições para pensar, entender e agir de certas formas.

Este pensamento não requer esforço, afasta-se da realidade para fantasias do passado e do futuro. Aqui termina o pensamento em forma de linguagem, imagem segue imagem, sensação segue sensação [...] trabalha sem esforço, espontaneamente, com conteúdos encontrados prontos e é dirigido por motivos inconscientes [...] afasta-se da realidade, liberta tendências subjetivas e é improdutivo em relação à adaptação (JUNG, 1986, p. 16).

Existem vários arquétipos na mente humana, relacionados principalmente a situações típicas da existência humana: nascimento, morte, casamento, doenças e outros (JUNG, 1950/1988). Jung levanta a hipótese de que eles se constituíram pela repetição do rito por várias gerações. O arquétipo não é acessível de forma direta, somente por suas manifestações: biológica, em padrões de comportamento, e psíquica, em imagens, representações e produções humanas, formando um substrato comum à humanidade.

[...] parece se constituir de motivos mitológicos ou imagens primordiais, razão pela qual os mitos de todas as nações são seus reais representantes. De fato, a mitologia como um todo poderia ser tomada como uma espécie de projeção do inconsciente coletivo [...]. Portanto, podemos estudar o inconsciente coletivo de duas maneiras: ou na mitologia ou na análise pessoal (JUNG, 1924/1986, p.325).

Esse conceito foi elaborado por Jung a partir da observação de muitos temas repetidos em mitologias, contos de fadas, literatura universal, bem como nos sonhos e fantasias de seus pacientes. Ele observou que as imagens que apareciam estavam relacionadas, principalmente, com situações comuns da existência humana, tais como o nascimento, a iniciação social, o relacionamento sexual e afetivo, assim como as perdas, entre outros. Assim, existem tantos arquétipos quantas são as situações típicas da existência humana, formando substrato psíquico comum a toda humanidade.

[...] eles [os arquétipos] só são determinados em sua forma e assim mesmo em grau limitado. Uma imagem primordial [arquétipo] só tem conteúdo determinado a partir do momento em que se torna consciente e é, portanto, preenchida pelo material da experiência consciente (JUNG, 1951/2000, p. 352).

Neste sentido, ao se deslocar a discussão para Bert Hellinger, criador das constelações familiares, é notório que ele percebeu três necessidades que regem os relacionamentos humanos dentro e fora ligado ao campo familiar, ou campo mórfico, a saber: hierarquia, estabelecida pela ordem de chegada, pertencimento, estabelecido pelo vínculo e, por fim, equilíbrio, estabelecido pela dinâmica de dar e receber. Quando tais necessidades são violadas, não respeitadas, surgem comportamentos compensatórios que atuam através do campo mórfico com outros membros da outa família. A constelação permite enxergar onde está o problema e desfazer esta conexão de desequilíbrio.

2.1.3 Constelações sistêmicas no contexto jurídico

Os métodos de solução consensual de conflitos não se limitam à mediação, conciliação e arbitragem. No Brasil, desde 2014 foi adotada uma abordagem sistêmica do direito, que propõe a aplicação da ciência jurídica com um olhar mais humanizado. É o chamado Direito Sistêmico, que tem por finalidade utilizar as leis desdobradas por Bert Hellinger, criador das Constelações Familiares, para tratar sobre questões geradoras de conflito no sistema judiciário.

O juiz brasileiro Sami Storch foi o pioneiro da utilização da abordagem sistêmica para trabalhar com os conflitos, que tem um imenso potencial de uso na área jurídica. Direito sistêmico é a denominação criada pelo juiz Sami Storch para denominar o uso da técnica Constelações Familiares, sistematizada por Bert Hellinger no âmbito do Judiciário brasileiro, assim como o uso de posturas sistêmicas para a solução de conflitos judiciais.

A expressão Direito Sistêmico, termo cunhado por mim quando lancei o blog Direito Sistêmico (direitosistemico.wordpress.com), surgiu da análise do Direito sob uma ótica baseada nas ordens superiores que regem as relações humanas, conforme demonstram as constelações familiares desenvolvida por Hellinger (STORCH, 2010).

A conciliação no âmbito judicial está instituída há bastante tempo na legislação brasileira, é largamente aplicada nas causas cíveis e, com mais ênfase, naquelas relativas à Vara de Família. No entanto, outros métodos se fazem necessários para desafogar os tribunais e resolver os conflitos. De acordo com o juiz, as leis positivadas nem sempre guiam as relações pessoais.

Para ele, os conflitos entre grupos, pessoas ou internamente em cada indivíduo, são provocados, em geral, por causas mais profundas do que um mero desentendimento pontual e, os autos de um processo judicial dificilmente refletem essa realidade complexa. Nesses casos, uma solução simplista imposta por uma lei ou por uma sentença judicial pode até trazer algum alívio momentâneo, uma trégua na relação conflituosa, mas, às vezes, não é capaz de solucionar verdadeiramente a questão, de trazer paz às pessoas (STORCH,2010).

O direito sistêmico se propõe, então, a encontrar a verdadeira solução, uma que considere todo o sistema envolvido no conflito. Como o Código de Processo Civil prevê que os operadores do direito estimulem os métodos de solução consensual de conflitos:

Art. 3º Não se excluirá da apreciação jurisdicional ameaça ou lesão a direito.

§1º É permitida a arbitragem, na forma da lei.

§2º O Estado promoverá, sempre que possível, a solução consensual dos conflitos.

§3º A conciliação, a mediação e outros métodos de solução consensual de conflitos deverão ser estimulados por juízes, advogados, defensores públicos e membros do Ministério Público, inclusive no curso do processo judicial.

[...]

O Direito Sistêmico se encaixa nessa regra, como menciona Sami Storch:

Há 12 anos utilizo técnicas de constelações familiares sistêmicas, obtendo bons resultados na facilitação das conciliações e na busca de soluções que tragam paz aos envolvidos nos conflitos submetidos à Justiça, em processos da Vara de Família e Sucessões e também no tratamento de questões relativas à infância e juventude e à área criminal, mesmo em casos considerados bastante difíceis (STORCH, 2010).

Da mesma forma, segundo o juiz Storch, o direito sistêmico percebe as partes em conflito com os membros de um mesmo sistema, ao mesmo tempo em que percebe cada uma delas vinculada a outros sistemas dos quais façam parte paralelamente, como a família, profissão, etnia, religião, entre outros, e busca encontrar a solução que, considerando os diversos contextos, possa trazer equilíbrio ao sistema.

Ele ainda faz ressalvas a respeito de temas mais comuns, sendo estes temas os que se apresentam com mais frequência, a saber: como lidar com os filhos na separação, as causas e soluções para a violência doméstica, questões voltadas para guarda e alienação parental, problemas decorrentes do vício, que em geral são problemas relacionados às dificuldades na relação com o pai, litígios em inventários nos quais se observa alguém que foi excluído ou desconsiderado no passado familiar, entre outras questões.

Cada um dos presentes, mesmo os que se apresentavam apenas como vítimas, pode frequentemente perceber de forma vivenciada que havia algo em sua própria postura ou comportamento que, mesmo inconscientemente, estava contribuindo com a situação conflituosa. Essa percepção, por si só, é significativa e naturalmente favorece a solução.

Em ações de família, muitas vezes uma constelação simples, colocando representantes para o casal em conflito e os filhos, é suficiente para evidenciar a existência de dinâmicas como a alienação parental e o uso dos filhos como intermediários nos ataques mútuos, entre outros emaranhamentos possíveis. Essas explicações têm se mostrado eficazes na mediação de conflitos familiares e, em cerca 90% dos casos, as partes reduzem resistências e chegam a um acordo (STORCH, 2010).

Afirma Storch que em alguns tribunais, no Ministério Público e na Defensoria Pública, vêm sendo realizadas experiências na área criminal, com o objetivo de facilitar a pacificação dos conflitos e a melhoria dos relacionamentos, incluindo réu, vítima e respectivas famílias. As constelações têm servido de prática auxiliar no trabalho com a justiça restaurativa, ajudando a preparar as partes e a comunidade envolvidas para que possam dar um encaminhamento adequado à questão. No âmbito penitenciário, multiplicam-se as práticas visando proporcionar aos presos uma oportunidade de compreender as dinâmicas ocultas por trás do padrão criminoso e enxergar onde está o amor que, de forma cega, os fez repetir os comportamentos antissociais já ocorridos em gerações passadas, na história da própria família. As reações dos participantes têm indicado resultados notáveis.

Independentemente da aplicação da lei penal, acredito que as constelações possam reduzir as reincidências, auxiliar o agressor a cumprir a pena de forma mais tranquila e com mais aceitação, aliviar a dor da vítima e, quem sabe, desemaranhar o sistema de modo que não seja necessário outra pessoa da família se envolver novamente em crimes, como agressor ou vítima, por força da mesma dinâmica sistêmica (STORCH, 2010)

Por meio de questionários respondidos após a audiência de conciliação, por pessoas que participaram das vivências de constelações, foram obtidas as seguintes respostas:

  • 59% das pessoas disseram ter percebido, desde a vivência, mudança de comportamento do pai/mãe de seu filho que melhorou o relacionamento entre as partes. Para 28,9%, a mudança foi considerável ou muita;

  • 59% afirmaram que a vivência ajudou ou facilitou a obtenção do acordo para conciliação durante a audiência. Para 27%, ajudou consideravelmente. Para 20,9%, ajudou muito;

  • 77% disseram que a vivência ajudou a melhorar as conversas entre os pais quanto à guarda, visitas, dinheiro e outras decisões em relação ao filho das partes. Para 41%, a ajuda foi considerável; para outros 15,5%, ajudou muito;

  • 71% disseram ter havido melhora no relacionamento com o pai/mãe de seu(s) filho(s) após a vivência. Melhorou consideravelmente para 26,8% e muito para 12,2%;

  • 94,5% relataram melhora no seu relacionamento com o filho. Melhorou muito para 48,8%, e consideravelmente para outras 30,4%. Somente 4 pessoas (4,8%) não notaram tal melhora;

  • 76,8% notaram melhora no relacionamento do pai/mãe de seu(ua) filho(a) com ele(a). Essa melhora foi considerável em 41,5% dos casos e muita para 9,8% dos casos;

  • 55% das pessoas afirmaram que desde a vivência de constelações familiares se sentiram mais calmas para tratar do assunto; 45% disseram que diminuíram as mágoas; 33% disseram que ficou mais fácil o diálogo com a outra pessoa; 36% disseram que passaram a respeitar mais a outra pessoa e compreender suas dificuldades; e 24% disseram que a outra pessoa envolvida passou a lhe respeitar mais (STORCH, 2010).

Inicialmente, a aplicação sistêmica se deu às questões familiares, mas a abordagem pode ser utilizada com sucesso em qualquer área do direito. Nos direitos difusos e coletivos, por exemplo, pode ser uma importante ferramenta para o trabalho do Ministério Público, diz Storch:

O potencial das constelações como método de conciliação e resolução de conflitos é imenso, uma vez que estes surgem no meio de relacionamentos e, nas palavras de Bert Hellinger, os relacionamentos tendem a ser orientados em direção a ordens ocultas. [...] O uso desse método faz emergir novas possibilidades de entender o contexto dos conflitos e trazer soluções que causam alívio a todos os envolvidos (STORCH, 2010).

Desde o meu ingresso na magistratura, em 2006, venho utilizando a visão e a abordagem sistêmica fenomenológica para tratar as questões da Justiça, explicar sobre as ordens que regem os relacionamentos (segundo Bert Hellinger) e colocar constelações com as pessoas envolvidas, como forma de evidenciar as dinâmicas ocultas por trás das situações, trazer à tona as ordens que prejudicam e as que curam, e sensibilizar as pessoas para que se conduzam a uma solução (STORCH, 2010).

Como já mencionado anteriormente, várias áreas no direito estão se direcionado para o direito sistêmico, como o próprio advogado, o profissional da ponta, o que está no início da lide com o cliente. Este operador do direito também precisa ter uma postura sistêmica para ajudar seu cliente. Como aborda o juiz Sami Storch:

Quem está emaranhado pode ser um terapeuta dedicado, um advogado combativo, pode ganhar causas por ter vocação. Mas, sem perceber, ele reforça o padrão do cliente de vítima, de revolta, de dependência. O cliente ganha a indenização, porém se torna ainda mais infeliz e insatisfeito. O advogado emaranhado sistemicamente pode ganhar a causa e assim ajudar seu cliente no nível daquilo para o qual foi contratado livrá-lo da prisão ou colocar alguém nela, ganhar a guarda do filho, obter a indenização por uma injustiça sofrida ou se livrar de um pagamento, etc. Mas não é uma ajuda real, pois é limitada e deturpada pelo emaranhamento do cliente e do próprio advogado que com ele se identifica. Na verdade, ajuda o cliente a se tornar mais vítima, mais insatisfeito, mais reclamão, mais acusador. A ajuda real só vem de alguém que não esteja envolvido no mesmo padrão do cliente (STORCH, 2010).

O autor completa dizendo que:

Em ações de família, muitas vezes uma constelação simples, colocando representantes para o casal em conflito e os filhos, é suficiente para evidenciar a existência de dinâmicas como a alienação parental e o uso dos filhos como intermediários nos ataques mútuos, entre outros emaranhamentos possíveis.Independentemente da aplicação da lei penal, acredito que as constelações possam reduzir as reincidências, auxiliar o agressor a cumprir a pena de forma mais tranquila e com mais aceitação, aliviar a dor da vítima e, quem sabe, desemaranhar o sistema de modo que não seja necessário outra pessoa da família se envolver novamente em crimes, como agressor ou vítima, por força da mesma dinâmica sistêmica (STORCH, 2010).

Diante de tantos apontamentos referentes à conceituação e eficácia do direito sistêmico, como uma nova forma de olhar para os conflitos dentro do contexto jurídico, allures, é necessário trazer à lume alguns exemplos, além dos tribunais baianos que seguem esta nova postura para lidar com os conflitos levados ao judiciário.

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Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Mais informações

Projeto de Pesquisa apresentado em 2020 à disciplina Trabalho de Conclusão de Curso I do colegiado de Direito do Centro Universitário Dom Pedro II (UNIDON), como requisito parcial para obtenção de título de Bacharel em Direito. Orientadora: Nislane Magalhães.

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