Evangelização e Direito Canônico "caminham" juntos?
No ano 1975 o Papa Paulo VI redigiu para toda a Igreja Católica Apostólica Romana a Exortação Apostólica Evangelii Nuntiandi, na qual o Sumo Pontífice chamava a atenção para a realidade da evangelização de todos os povos no mundo contemporâneo, ou seja, a difusão do conteúdo deixado por Jesus Cristo aos seus discípulos, através do mandado universal à missão: Ide pelo mundo inteiro e proclamai o Evangelho a toda criatura! (Mc 16, 15). Reconhecendo a necessidade de seu tempo, o Papa exortou os católicos do mundo inteiro que, tendo Jesus Cristo como o Senhor de suas vidas, tomassem consciência que são enviados a uma missão específica: anunciar o Reino de Deus nos ambientes do cotidiano, ou seja, a mensagem de Jesus não deve limitar-se ao espaço da Igreja, mas atingir as casas de famílias, os escritórios e as universidades, de maneira que, conduzidos pelo Espírito Santo e auxiliados pela Igreja, os fiéis devem anunciar o Cristo Ressuscitado onde quer que estejam, pois a Igreja existe para evangelizar, ou seja, para pregar e ensinar, ser o canal do dom da graça (EN, nº 14, pg. 18).
Naturalmente, com o decorrer do tempo e os mais variados avanços sociais e culturais, a Igreja Católica, governada pelos homens, embora orientada pelo Espírito Santo, percebeu a necessidade urgente de melhor instruir os fiéis e manter a ordem em sua estrutura, tendo em vista que possui a responsabilidade e o poder de governar uma determinada porção de pessoas, as quais, livre e conscientemente, aderem aos seus ensinamentos e preceitos. No entanto, é de conhecimento geral que, onde existem grupos de pessoas, as diferenças de costumes e pensamentos são mais evidentes, o que torna necessária a existência de um ordenamento social, ou seja, um código de condutas que determine os deveres, salvaguarde os direitos e oriente as ações dos indivíduos. No âmbito interno da Igreja Católica isso é perceptível através do cumprimento das leis mosaicas, ou seja, os mandamentos entregues por Deus a Moisés e escritos por ele nas tábuas da Lei, bem como algumas outras orientações e preceitos presentes nas Sagradas Escrituras, deixados pelos profetas, pelos Apóstolos, ou pelo próprio Jesus Cristo.
Ainda que haja nas Sagradas Escrituras um extenso conteúdo sobre a mudança de comportamento humano que deveria ser adotado por aqueles que passavam a seguir Jesus Cristo, a Igreja Católica Apostólica Romana entregou o poder de governo àquele que, instruído pelo Espírito Santo e auxiliado pelo Colégio Universal dos Bispos, fosse escolhido para conduzir o povo de Deus por um período de sua vida, o Sumo Pontífice, que deve ser uma espécie de modelo humano para os demais fiéis católicos. Assim, o Santo Padre, em razão do cargo que exerce goza na Igreja do poder ordinário, supremo, pleno, imediato e universal, que pode exercer sempre livremente (CIC, 1987, Cân. 331) e, por isso, tem o poder de declarar e sentenciar assuntos para toda a extensão da Igreja Católica sem que haja quaisquer tipos de apelação ou recurso, conforme o Cân. 333, § 3º do Código de Direito Canônico.
O Senhor deixou o ensinamento sobre a impossibilidade de contradições: ninguém pode servir a dois senhores (Mt 6, 24). É nesse sentido que a Igreja, ao criar para si um Código de Direito que expressa os direitos e deveres de todos os fiéis católicos, clérigos ou leigos, busca unir a obediência à lei a necessidade do cumprimento da vontade de Deus, de maneira que sobressaia o maior de todos os mandamentos deixados por Jesus Cristo aos discípulos em sua hora derradeira: que vos ameis uns aos outros. Como eu vos amei, assim também vós deveis amar-vos uns aos outros (Jo 13, 34), e seja este o fundamento de todas as normas e apontamentos da Igreja ao decorrer dos séculos, pois é pelo amor vivido entre os homens, que Jesus Cristo deseja ser reconhecido nos cristãos: Nisso conhecerão todos que sois meus discípulos: se tiverdes amor uns para com os outros (Jo 13, 35). Portanto, ao criar para si, enquanto instituição de governo, e para os seus seguidores, enquanto instituição religiosa, um conjunto de normativas, não quer a Igreja endurecer os corações dos fiéis ou sobrecarregá-los com fardos insuportáveis, tampouco burocratizar os costumes, mas favorecer melhores condições para o cumprimento dos preceitos deixados pelo próprio Deus e vivenciados por Jesus Cristo e seus primeiros seguidores.
Não pensem que eu vim abolir a Lei e os profetas. Não vim abolir, mas lhe dar pleno cumprimento (Mt 5, 17). Essas palavras de Jesus, deixam cristalina a fundamentação de todas as leis e preceitos da Igreja Católica em seu Direito Canônico, ou seja, o fundamento e o cumprimento das leis da Igreja têm por princípio e fim o próprio Jesus Cristo, ou seja, todos aqueles que desejam reunir-se em torno Dele, devem subordinar-se às leis instituídas por Ele mesmo e aquelas que, com o passar do tempo, foram acrescentadas pelo Magistério da Igreja que Jesus mesmo instituiu e entregou o poder de governar, associando a figura do Sumo Pontífice a de Pedro, escolhido por Jesus para liderar, como cabeça da Igreja nascente, todo o grupo dos Apóstolos e futuros seguidores de seus ensinamentos. Eu te darei as chaves do Reino dos Céus: tudo o que ligares na terra, será ligado nos céus, e tudo o que desligares na terra, será desligado nos céus (Mt 16, 19) e para afirmar a perpetuidade do poder de Pedro de governar a Igreja e transmiti-lo futuramente aos demais, diz-lhe: e as portas do inferno nunca prevalecerão contra ela (Mt 16, 18).
Possivelmente, a pergunta que poderia permear a presente leitura é sobre a necessidade real e objetiva de um Código de Direito em âmbito religioso, visto que cada país possui a sua Constituição própria e, algumas delas, versa sobre a importância das religiões e o lugar delas na sociedade, ou sobre o devido respeito que se deve a todas as religiões e/ou crenças locais. A explicação é simples, e, talvez, já tenha sido identificada no corpo do texto. Deve-se ter em conta que a Igreja Católica Apostólica Romana está presente em muitos países do mundo. Quando não, ao menos alguma de suas doutrinas ou ensinamentos já foram apresentados ou influenciaram a sociedade em algum momento da história, visto que, em tempo remotos, era a Igreja Católica quem possuía o governo de muitos territórios. Assim, uma das necessidades para a existência do Direito Canônico é a união dos povos que desejam aderir os ensinamentos de Jesus. Diante das diferenças entre as culturas e classes sociais, o Direito Eclesiástico tem como missão resguardar a união de todos os católicos espalhados pelo mundo inteiro em torno da Igreja que é una e universal.
O Direito Canônico também apresenta, como as Constituições e Códigos Penais dos países, as sanções devidas aos delitos ocorridos no seio da Igreja e da sociedade. Tais leis não são impostas para a mera punição de clérigos ou fiéis, mas possuem um caráter disciplinar e educacional. O Cân. 1312, § 1º do Código de Direito Canônico alude às penas canônicas como medicinais e expiatórias. A divisão do que se enquadra como pena medicinal e pena expiatória está contida nos cânones 1331-1338, e pode ser resumida nas penas ferendae sententiae, que são aquelas impostas pela autoridade competente como consequência de algum delito, e as penas latae sententiae, resultado automático da ação gravíssima cometida.
Dessa maneira, torna-se evidente que a Igreja, enquanto instituição deixada por Jesus Cristo, deve levar em consideração os princípios deixados pelo próprio Senhor que, em toda a sua vida terrestre, quis salvar o homem e libertá-lo do poder do pecado e do maligno. Assim, a missão de Jesus Cristo é confiada à Igreja através dos Apóstolos, primeiros seguidores de Jesus, e deve ser priorizada acima de quaisquer leis e atividades pastorais, uma vez que o sentido delas é a missão do Salvador feito homem no seio de Maria: a salvação das almas, pois, o Filho do Homem veio procurar e salvar o que estava perdido (Lc 19, 10). Dessa maneira, cumprindo a ordem do Senhor, a Igreja perpetua a missão salvífica de Cristo e fundamenta a sua missão própria no mesmo desejo do Senhor pela salvação das almas. Por esse motivo é que a Igreja Católica, consciente de seu dever, descreve a salvação das almas como sua lei suprema no último cânon do Código de Direito Canônico (CIC, 1987, Cân. 1752), e ensina a cada um de seus fiéis o verdadeiro sentido de ser cristão: amar a Jesus Cristo e pôr em prática todos os seus ensinamentos. Somente assim é que poderá existir uma relação real entre a ação pastoral (evangelização) e as normas descritas (Leis da Igreja).
Lista de siglas:
EN - Exortação Apostólica Evangelii Nuntiandi
CIC - Codex Iuris Canonici [Código de Direito Canônico]
Cân. - Cânon
Mc - Marcos (evangelista)
Mt - Mateus (evangelista)
Jo - João (evangelista)
Lc - Lucas (evangelista)
CNBB - Conferência Nacional dos Bispos do Brasil
Referências bibliográficas:
BÍBLIA SAGRADA, Tradução Oficial da CNBB, Brasília 2019 (2° Edição).
Paulo VI, EVANGELII NUNTIANDI, Roma, 1975.
João Paulo II, CÓDIGO DE DIREITO CANÔNICO, Tradução Oficial da CNBB, Loyola, 1987 (2ª edição).