O direito e a história da ética cristã
Partindo das palavras éthos e mos (grega e latina, respectivamente) definimos ética como a ciência que trata do emprego que o homem deve fazer de sua liberdade, para conseguir o seu fim último.
A sua originalidade não está no fato de ser uma filosofia em si, mas de fundar-se numa revelação. No Antigo Testamento Deus revela-se e estabelece com seu povo escolhido (Israel) uma aliança (Gn 6, 18+). No Novo Testamento, Jesus é a nova e definitiva aliança (Mt 26, 28+; Hb 9, 15+), o centro de tudo; o elemento decisivo está no seguimento de Jesus, ser seu discípulo, escolher a boa nova, entrar no Reino de Deus e assumi-lo, eis a grande convocação.
No período patrístico (do século 1º ao 6º), os cristãos souberam captar o evento da encarnação de Jesus Cristo e traduzi-lo na vida, mediante os esquemas morais da justiça de Deus, da condição de discípulo, da fé, do amor, da filiação divina e do Espírito Santo.
Entre os séculos 6º e 11, numa época de decadência do império romano e de invasão dos povos bárbaros, popularizou-se por toda a Europa a confissão auricular feita aos sacerdotes. Nessa fase foram escritos os Penitenciais, livretos com lista de pecados e as respectivas penitências. Tudo feito de modo simplificado, sem uma reflexão ética e teológica.
Nos séculos 12 e 13, houve um retorno ao Evangelho. Como a Igreja tinha muito poder e muitas posses, diversos grupos buscaram uma vida simples, pobre e de fraterna comunhão de bens. Aí é que aparecem São Francisco de Assis, São Domingos e outros. A teologia recebeu grande impulso nas universidades. Destacou-se a Suma Teológica de Santo Tomás de Aquino, cujo esquema de fundo era: a) tudo procede de Deus Criador; b) tudo deve retornar a Ele; e c) através ou por meio de Jesus Cristo.
Em 1600 surgiram as Instituições Sagradas de Teologia Moral, data da publicação do primeiro manual exclusivamente dedicado à moral.
Nos séculos 17 e 18, várias tendências marcaram a teologia moral. O probabilismo, o tuciorismo, o laxismo e o eqüiprobabilismo abordavam à sua maneira os temas da ética, criando grande confusão na mente das pessoas.
Nos séculos 19 e 20, até o Concílio Vaticano II, procurou-se dar um princípio unitário à teologia moral, cujos valores foram: a busca do que é universal, do que é perene, da importância do agir, da responsabilidade individual e da lei de Deus.
De 1962 a 1965, o Concílio Vaticano II solicitou um cuidado especial ao aperfeiçoamento da teologia moral. Valorizou a Sagrada Escritura, apresentou uma visão integral do ser humano, apontou para a noção de aliança, na qual Deus mais convida do que obriga e Jesus mais propõe do que impõe.
Essa ética renovada tem como pontos iluminadores (riquezas): uma moral mais inspirada na Sagrada Escritura; o chamado a produzir frutos para a vida do mundo (e não fugir do mundo); a ênfase no Cristo que abraçou o mundo e o ser humano; o cultivo de uma visão unitária do ser humano; o acento na maleabilidade do amor e na capacidade de dar a vida pelo próximo, pelos irmãos, pelos que amamos; o chamado a colaborar com os projetos de Deus por um mundo novo, transformado e justo.
Em Medellín (1968), Puebla (1979) e em Santo Domingo (1992), surgiu a necessidade de articular a fé com as situações históricas atuais, apreendendo nas feições dos pobres o rosto dos privilegiados de Deus.
Hoje a ética quer investir fortemente na presença cristã na cidade. Quer ser sal e fermento, dando sentido à vida, superando vazios existenciais.
O direito e a ética social cristã
Cada um de nós é portador de uma dignidade que não se vende, não se transfere e não se abdica.
A tradição bíblico-cristã resgata esta dignidade no fato de termos sido criados à imagem e semelhança de Deus (Gn 1, 27), para amar, filhos do mesmo Pai, membros de uma fraternidade sem fronteiras de povo, raça e nação (Lv 19, 18; Mt 22, 39; Rm 13, 8-10).
A Declaração Universal dos Direitos do Homem (Universal Declaration of Human Rights) afirma esta dignidade em variados aspectos, como base da liberdade, da justiça e da paz (arts.1, 22 a 28).
Como membro da sociedade, a pessoa tem a obrigação de contribuir para o bem comum ou o bem de todos (que deve redundar no bem de cada membro), ainda que lhe custe a renúncia a interesses particulares; assim toca-lhe o dever de pagar seus impostos, de respeitar as leis de trânsito, do comércio, de eleger seus governantes... Uma vez cumpridos os deveres de cidadão ou de sócio, a pessoa conserva a liberdade para atender a seus interesses particulares (emprego do seu dinheiro, do seu lazer, desejo de viajar, de informar-se...).
Nos primeiros séculos da era cristã, os escritores eram movidos pela concepção grandiosa, formulada no Antigo Testamento (Ex 20 ,15.17), segundo a qual o Senhor Deus é o único proprietário de todos os bens e o homem é ministro do Altíssimo na gestão desse mundo. Isso implica reconhecer que a propriedade privada deve ser subordinada ao seu originário destino comum dos bens.
O capitalismo entende que o trabalho é o caminho para o lucro. Na visão cristã, o trabalho é um bem do ser humano, não é uma mercadoria ou um simples instrumento de produção. É por meio dele que o ser humano, homem e mulher, completa e prolonga a obra criadora de Deus e se realiza como pessoa e como membro de uma comunidade, quer familial quer nacional. Exemplo disso se vê no Filho de Deus feito homem, que houve por bem trabalhar como carpinteiro (Mt 13, 55; Mc 6, 3). Isso significa que o valor do trabalho humano não é o seu gênero mas o fato de aquele que o executa ser uma pessoa.
Os romanos distinguiam as coortes em ação na frente de batalha (prima acies) e as coortes de reserva (subsidiarii cohortes). Essa ajuda da tropa de reserva é o que se chama de subsidiariedade, do latim subsidium. É a ajuda complementar que uma sociedade maior e mais poderosa pode prestar a indivíduos ou grupos menores e mais fracos. É reconhecer a cada instância do corpo social as suas próprias atribuições, sua capacidade de iniciativa, quer sejam pessoas, grupos diversos ou o próprio Estado. Ficam assim reguladas as relações do Estado com as pessoas e os grupos intermediários ou comunidades. No máximo, uma instância superior ajudará os membros de uma determinada instância social a fazerem o que em si compete a eles mesmos realizar; não lhe cabe tomar o lugar deles e muito menos destruí-los ou absorvê-los.
Se a pessoa é tendente à sociedade e esta se constitui de pessoas, compreende-se que deva existir solidariedade entre as pessoas membros da sociedade.
Solidariedade é a união recíproca dos membros da sociedade, que faz com que os interesses de uns sejam, em certo grau, os interesses de todos.
Este princípio é fundamental para o destino comum da humanidade. Isso nos envolve nas relações humanas fundamentais, não só no nível pessoal, mas nos níveis pessoa-pessoa, homem-mulher, pai-filho, capital-trabalho, mundo desenvolvido-mundo subdesenvolvido, ser humano-meio ambiente, nas relações com os mais diversos grupos comunitários e organizações sociais, com os diferentes níveis e instâncias de poder.
O direito e a ética cristã hoje
Na ética cristã de nossos dias não podem faltar algumas colunas mestras..
A Sagrada Escritura ajuda na compreensão e na realização dos projetos que Deus tem em relação à humanidade. O Antigo Testamento nos aponta a Aliança de Deus com Israel, seu povo (Gn 6, 18; 15; 17; Ex 19, 1 +). O Novo Testamento sublinha o Reino de Deus, aberto a todos os povos, constituindo-se no centro da mensagem de Jesus (Mt 3,2; 4, 17).
A expressão Aliança ocorre 286 vezes no Antigo Testamento. Trata-se da iniciativa livre e gratuita de Deus, que revela o plano de salvação para o seu povo. Esse plano tem um caráter religioso e político-social. Deus lança o povo a caminho.
A religião busca revigorá-la no compromisso de construir uma vida de sociedade fraterna e justa, sem discriminações. Os órfãos, as viúvas e os estrangeiros têm predileção. Ninguém é excluído. Respeitar o direito e a justiça é o programa político-social.
Diante das rupturas freqüentes da Aliança, os profetas denunciam os abusos e clamam por conversão. Deus, paciente e rico em misericórdia, convida o seu povo a escolher a vida. Os dez mandamentos (Ex 20, 1) e as alianças com Noé (Gn 6, 18), Abraão (Gn 15; 17) e a do Sinai (Ex 19, 1.2) apontam para o compromisso de vida a ser assumido pelo povo de Deus.
O termo Reino de Deus acontece 123 vezes no Novo Testamento. Trata-se do coração do anúncio de Jesus. Aponta para a proposta das bem-aventuranças. Jesus dirige-se aos pobres, aos opositores e aos seguidores, indicando o amor, a justiça e a fidelidade como o coração do seu Evangelho (Mt 23,23). Seguir a Jesus constitui-se no elemento central para a nossa vida cristã.
Imprescindível para a moral é a consciência. Ela é um julgamento prático proferido pela inteligência sobre a honestidade ou desonestidade de cada um dos nossos atos; é um testemunho que, pronunciado no íntimo de cada pessoa, distingue entre o bem e o mal moral e tende a levar cada qual a praticar o bem e evitar o mal. Ela é o fundamento da própria dignidade humana e, por isso, precisa ser bem formada numa educação que leva cada pessoa a uma opção fundamental de vida baseada no amor, na bondade, na justiça, sendo uma opção para Deus.
Essa consciência precisa ser apoiada por um bom discernimento moral, para analisar as situações concretas, iluminadas pela fé, abrindo-se à palavra da Sagrada Escritura, ouvindo a Tradição e o Magistério da Igreja, prestando atenção às normas morais.
O discernimento moral costuma identificar os valores que dão solidez às ações. Eles orientam a preferência básica de vida e iluminam as escolhas que nela se realizam e que se traduzem em múltiplas ações. Em Jesus Cristo temos tudo plenamente (Cl 2 10), sendo Ele o valor supremo a ser buscado, pois somos filhos da luz (Ef 5, 8).
A ética cristã, fundada na Sagrada Escritura, concebe o ser humano como uma unidade totalizada ou uma unidade vivente. A visão só pode ser integral, pois Deus solicita o ser humano por inteiro; ele é um ser que tem corpo, conhece, quer, ama, fala, vive em sociedade, é um ser culto, ele se diverte, trabalha e é religioso.