A abertura judicial da falência, por sentença, implica na nomeação de administrador judicial[1], que deverá ser imediatamente intimado, diante do princípio da celeridade processual. A nomeação está entre os requisitos indispensáveis da sentença [art. 99 da Lei 11.101/05], que se traduz no terceiro pressuposto do estado falimentar.
Aceitando o encargo, cumpre-lhe assinar [em 48 horas] o termo de compromisso. Aqui não é o caso de discorrer a respeito dos critérios e exigências da lei para que alguém postule ser auxiliar do juízo - órgão da falência e do regime recuperatório -, mas cabe sinalar, uma vez, mais, que o Brasil está extremamente atrasado em relação às legislações modernas, de ponta, como a francesa[2] - quanto a questão em exame.
Em tal sistema normativo os requisitos são maiores, mais profundos, mais abrangentes em relação aos contidos no simplório art. 21 da Lei 11.101/05. A técnica legislativa nacional ainda não chegou ao nível da legislação estrangeira, no que diz a tal aspecto. Cabe a revisão de determinados temas, qual o do administrador judicial, critérios de nomeação e responsabilização pessoal.
Insiste-se apenas numa questão, uma vez mais, muito embora a doutrina de ponta não se atente: quem anela ser administrador judicial, que pretende atuar como órgão do processo, há de ter idoneidade moral e financeira[3], até e principalmente para arcar com eventuais prejuízos causados à massa falida, credores, falido e terceiros, em decorrência de atos comissivos ou omissivos seus[4].
A propósito, idoneidade moral e financeira não carece estar expressamente fixada na lei, qual enfatizado. Há requisitos peremptórios, por assim dizer, que se não dizem na lei, porquanto se traduzem em pressupostos evidentes. Da lei deveria constar, por mero exemplo, a exigência de que o pretendente ao cargo de administrador judicial comprovasse documentalmente [e outros meios probatórios] tanto a idoneidade moral sólida [certidões negativas de cartórios distribuidores, inclusive criminais, por exemplo] quanto a financeira [declaração de imposto de renda dos últimos três exercícios], antes de assumir o cargo. A ideia é lançar luzes ao debate sobre este importante órgão dos regimes de liquidação e de reestruturação.
Volto minhas lentes ao que de fato é importante no presente texto.
Uma das primeiras obrigações do administrador judicial - este importante órgão da execução forçada concursal, consoante Pontes de Miranda[5]- é justamente cumprir prazos legais e processuais [óbvio ululante] e, em especial, para o exame que aqui interessa, o constante do art. 22, inc. III, letra “e” da Lei 11.101/05[6]. Em linhas gerais, estabelece a necessidade de que em 40 (quarenta) dias [prorrogável por igual prazo[7]], a contar da assinatura do termo de compromisso, seja apresentado nos autos do processo falimentar, relatório aceca das causas e circunstancias que levaram a entidade à falência, incumbindo a ele, o administrador judicial, apontar eventual responsabilidade civil e penal e nomes dos envolvidos [sócios, acionistas, controlador, diretor, administrador, credores ou terceiros estranhos ao processo], em decorrência de crimes pré-falimentares e pós-falimentares[8].
Tal relatório há de ser acompanhado de laudo do perito contador, pelo administrador judicial contratado, mediante prévia autorização judicial (art. 22, inc. I, “h” da lei], sendo que não impede a juntada de documentos outros que corroborem a prática de eventuais crimes[9].
A obrigação, por parte do administrador judicial, sem dúvida, há de ser por ele rigorosamente cumprida, dentro do prazo, pena de destituição, sem descuidar da correlata responsabilização por desídia e descumprimento das obrigações legais. Nessa esteira, se o não fez - cumprimento da obrigação estabelecida em lei [o texto legal expressa e taxativamente lho impõe deveres e obrigações, cf. art. 22, v.g.] -, haverá de responder judicialmente.
Os dispositivos legais em análise deram nova roupagem ao art. 103 do ab-rogado Dec.-Lei 7.661/45 - inquérito judicial - sendo que, pela Lei 11.101/05, eventuais crimes falimentares são apurados pela polícia judiciária - mediante requisição do Ministério Público [art. 187 da Lei 11.101/05 e art. 5º, inc. II, do CPP], o que se nos parece incorreto.
Deveras, o texto legal de 2005, a toda evidência, é permeado de equívocos, sem descuidar das lacunas e ausência de ampliação [necessária] do rol de requisitos para atuação como administrador judicial, por exemplo.
Cabe ao órgão judicial imediatamente levar a efeito uma (pré)investigação, por assim dizer, acerca dos atos e fatos ocorridos, apresentar verdadeira auditoria, podendo contar com o concurso de auxiliares por ele contratados, mediante prévia autorização judicial.
Mas, não é dado só a ele, o administrador judicial, o direito/obrigação de averiguar os atos, fatos e eventuais crimes das mais variadas naturezas, sendo que seguimos o entendimento esposado por Marlon Tomazette:
Outrossim, o administrador deverá permitir aos credores a realização da mesma investigação, informando, por meio de publicação no órgão oficial, o lugar e a hora em que os credores terão acesso aos livros e documentos dos falido[10]
Destaque-se também que o Ministério Público não precisa aguardar necessariamente o cumprimento do prazo por parte do administrador judicial, podendo atuar imediatamente, ou seja, agir tão logo tenha ciência da abertura judicial da falência, promovendo ação penal ou requisitando abertura de inquérito policial perante a autoridade competente [arts. 99, inc. XIII e 187 da Lei 11.101/05].
Nessa esteira, com arrimo no art. 183 da lei de regência, o representante do Ministério Público que oficiar no âmbito da falência poderá não ser o mesmo que atuará na esfera criminal; a investigação e a persecução penal será perante o juízo criminal competente.
Destarte, sem embargo do que foi exposto, observa-se que é imprescindível a apresentação do relatório previsto em lei, a fim de que perquira acerca de eventuais crimes perpetrados antes ou após a abertura judicial da falência. A obrigação legal recai na pessoa do administrador judicial.
Eram estas as considerações a respeito dos quarenta dias de prazo que devem ser cumpridos pelo administrador judicial tão logo seja compromissado na falência.
[1] Não se olvide dos efeitos/impactos práticos da decisão judicial de nomeação de administrador judicial (Dec.-Lei 4.657/1942, art. 20).
[2] Em França há critérios/requisitos/exigências mais complexas para que haja nomeação de administrador judicial. Lá, de fato, é profissão o importante cargo.
[3] Ainda volto inexoravelmente aos clássicos do direito falimentar. Pontes de Miranda, por exemplo, discorre sobre o tema: ‘Idoneidade moral’ é apara o exercício da função de síndico, a exatidão no cumprimento dos deveres, a probidade no trato dos dinheiros alheios. “Idoneidade financeira’ é a situação econômica que assegure aos credores e ao falido, bem como a outros interessados na falência, a indenização de qualquer prejuízo que cause à massa e, por lei, seja reparável. Não há só indenizabilidade por negligência ou má administração, de modo que se pode falar apenas em culpa. Tratado de direito privado. Parte Especial. Tomo XXIX. 3ª ed., 2ª reimpressão. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1984, p. 12. Grifos no original. Assenta Emilio Betti: A destinação inerente à função comporta, para o investido, o dever de desenvolver uma atividade de gestão vinculada objetivamente à preocupação com o interesse alheio e, ao mesmo tempo, uma discricionariedade técnica na apreciação dos meios idôneos para satisfazê-lo no caso concreto: discricionariedade cujo controle em âmbito jurisdicional exige uma interpretação que ultrapasse o significado literal das normas em discussão, para indaga-lo à luz do interesse a ser tutelado. Interpretação da lei e dos atos jurídicos: teoria geral e dogmática. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 245. A idoneidade moral guarda ligação direta com a honestidade do postulante ao cargo. Tem relação com o próprio texto constitucional, especialmente com o art. 37, que se aplica indisfarçavelmente ao administrador judicial, enquanto órgão do processo de falência [e regime recuperatório], auxiliar do juízo, exercendo evidente função pública, mesmo não o sendo. A exigência de comportamento ético e idôneo se impõe, mesmo que não o diga expressamente a lei. Não carece dizer.
[4] Aliter, inexistindo idoneidade financeira, poderá haver mais prejuízos ao processo falimentar como um todo.
[5] Tratado de direito privado. Parte Especial. Tomo XXIX. 3ª ed., 2ª reimpressão. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1984, passim.
[6] A abertura judicial da falência é condição objetiva de punibilidade de crimes falimentares [art. 180 da Lei 11.101/05], como consabido. Consoante Nilo Batista, constitui grave erro do legislador equiparar à sentença que decreta a falência aquela que defere a recuperação judicial ou a que homologa recuperação judicial. Toda condição objetiva de punibilidade cumpre uma função político-criminal de contenção do poder punitivo, ao suspender a punibilidade que regra geral deriva da constatação de um injusto culpável. No caso da falência, o objetivo da condição objetiva não se restringe, como supôs Binding, à mera qualificação do sujeito ativo especial do delito (Charakterisierung der Subjekte). [...] Outorgar à sentença que homologa a recuperação extrajudicial ou defere a recuperação judicial o status de condição objetiva de punibilidade, ao lado da sentença que decreta a falência, viabilizará iniciativas criminais potencialmente capazes de perturbar gravemente o procedimento de recuperação empresarial, acelerando quebras que talvez fossem evitáveis. Lições de direito penal falimentar. Rio de Janeiro: Editora Revan, 2006, passim.
[7] Nessa esteira, o apontamento preciso de Haroldo Malheiros D. Verçosa: Mesmo havendo a presente Lei admitido a possibilidade da prorrogação do prazo inicial para apresentação do relatório vertente para outro período igual (o que daria um total de 80 (oitenta) dias, contados da assinatura do termo de compromisso pelo administrador judicial), pode-se esperar que ele será de obediência impossível no caso de grandes falências, nas quais as informações e documentos a serem processados alcançarão grande volume e complexidade, e espalhados eventualmente por dezenas de estabelecimentos do devedor. Nos casos acima, não terá o juiz como deixar de conceder prazos excepcionais, a seu critério, uma vez demonstrada a necessidade, neste sentido, pelo administrador judicial. Disto decorrerá uma desnecessária desmoralização do referido prazo, que poderia ter sido evitada pela outorga ao juiz de sua fixação segundo as justificadas necessidades de cada massa, no caso concreto, fixando-se as exigências de celeridade e de economia do processo falimentar, conforme previsto no art. 75, parágrafo único. SOUZA JUNIOR, Francisco S. de; PITOMBO, Antônio S. A. de Moraes. (coord). Comentários à Lei de recuperação de empresas e falência: Lei 11.101/05 - artigo por artigo. 3ª edição. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007, p. 173.
[8] Cabe uma advertência desde logo. De acordo com o ensinamento esposado por Luiz Inácio Vigil Neto, com a nova Lei, abriu-se uma discussão de caráter conceitual: o que propriamente está reprimido por este Direito Penal? Os crimes falimentares? Os crimes de gestão empresarial? Ou apenas condutas cujo resultado finalístico afronta à normatização penal? A análise detida de todos os tipos penais, admite a prevalência da terceira tese. Isto porque, ainda que existam crimes praticados no contexto da falência, antes ou após a decretação do regime liquidatório e que existam condutas puníveis praticadas no exercício da gestão empresarial, a repressão penal alcança também os fatos delituosos praticados no contexto temporal da solicitação e da execução dos regimes recuperatórios. Além disso, várias condutas puníveis não são praticadas pelo empresário em crise, mas por terceiros que praticam condutas conspiratórias à estabilidade da empresa ou se aproveitam oportunisticamente de sua crise para obtenção de vantagens indevidas. Teoria falimentar e regimes recuperatórios: estudos sobre a Lei n. 11.101/05. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2008, p. 302. Com efeito, investigam-se e eventualmente punem-se crimes ligados à falência.
[9] A propósito, se o crime está provado sem constar do laudo do perito contador, podem ser requeridos exames e diligencias que sejam ou não contabilísticos e, depois da denúncia ou da queixa, no juízo criminal, tudo se passa conforme a lei processual penal. Pontes de Miranda, op. cit., p. 272. Da densa obra de Nelson Abrão extrai-se importante excerto, deveras atual: Constituem os delitos falimentares o que se convencionou chamar de “delinquência do colarinho branco”. Com efeito, a prática criminosa por empresário reveste-se de certos requintes que, não só pelas causas, como também pelo evento, a distingue da delinquência comum. Curso de direito falimentar. 5ª edição, revista, atualizada e ampliada por Carlos Henrique Abrão. São Paulo: Livraria e Editora Universitária de Direito, 1997, p. 371. Destaques no original.
[10] Curso de direito empresarial, volume 3: falência e recuperação de empresas. 4ª edição. São Paulo: Atlas, 2016, p.. 125. Sobre a questão, art. 22, inc. III, letra “a” da lei de regência.