3. CONSENSUALISMO E ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA
3.1. Regime Jurídico-Administrativo e a Supremacia do Interesse Público
A Administração pode se submeter tanto a um regime jurídico de direito público quanto de direito privado, cuja opção, em obediência ao princípio da legalidade, deve ser feita pela Constituição Federal ou pela Lei.
Importante observar que, mesmo atuando mediante o regime jurídico de direito privado, a Administração Pública nunca se submete inteiramente à ele, conservando prerrogativas e restrições, impondo desvios ao direito privado, para permitir à Administração adequar o meio utilizada para alcançar os fins públicos determinado por lei.
Dessa forma, o regime jurídico-administrativo trata do conjunto de princípios e regras que regem a atuação da Administração Pública.
Para Mello (2019), o regime jurídico-administrativo seria formado por princípios magnos, chamados de pedras de toque do Direito Administrativo, aos quais todos os demais princípios se organizariam, devendo pautar a atuação da Administração Pública. Seriam eles: a Supremacia do interesse público sobre o privado e a Indisponibilidade do interesse público.
Se por um lado, a supremacia confere à Administração Pública uma série de prerrogativas para atingir o melhor de suas atribuições, a indisponibilidade do interesse público apresenta limites, visando atingir a finalidade pública.
Considerando que o Direito Administrativo surgiu sob a proteção do Estado Liberal, Di Pietro (2020) explica:
O Direito Administrativo nasceu e se desenvolveu baseado em duas ideias opostas, se por um lado, a proteção dos direitos individuais frente ao Estado, que serve de fundamento ao princípio da legalidade, um dos esteios do Estado de Direito; de outro lado, a necessidade de satisfação dos interesses coletivos, que conduz à outorga de prerrogativas e privilégios para a Administração Pública [...] (DI PIETRO, 2020)
Assim, a Administração Pública é pautada na dualidade prerrogativas e restrições, enquanto os primeiros colocam a Administração em posição de superioridade em relação ao particular com o objetivo de beneficiar a coletividade, os últimos limitam sua atividade a princípios e finalidades.
Como já mencionado, na concepção defendida pela doutrina majoritária, capitaneada por Celso Antônio Bandeira de Mello, os princípios da Supremacia do Interesse Público sobre o Privado e da Indisponibilidade do Interesse Público se erigem como pedras angulares do Direito Administrativo. Ainda de acordo com Mello (1967, p. 11), tais princípios “desempenham uma função explicadora e aglutinadora mais eficiente que as noções de serviço público, ‘puissance publique’, ou utilidade pública.”
A Supremacia do Interesse Público surge como um pressuposto de uma ordem social estável, pois a prevalência do interesse da coletividade garante uma sociedade resguardada e protegida contra arbítrios.
Desse princípio procede a posição de supremacia e privilegiada da Administração Pública, que se expressa na verticalidade nas relações entre Administração e particulares, posicionando-se uma situação autoritária como condição indispensável para gerir os interesses entre confronto.
Assim, subsiste a possibilidade da Administração impor obrigações positivas aos particulares por meio de ato unilateral, bem como, de modificar unilateralmente as relações já estabelecidas, decorrendo o poder de polícia, a exigibilidade dos atos administrativos e o poder de autotutela da Administração.
Já a posição privilegiada se traduz em benefícios que a ordem jurídica confere para assegurar a proteção aos interesses público, ou seja, tratam-se de privilégios que lhes são atribuídos, manifestando-se em diversos campos como a presunção de legitimidade e veracidade dos atos administrativos e prazo em dobro nas intervenções judiciais.
Conforme já mencionado, intimamente ligado à supremacia do interesse público, está o da indisponibilidade do interesse público que significa:
[...] sendo interesses qualificados como próprios da coletividade – internos ao setor público – não se encontram à disposição de quem quer que seja, por inapropriáveis. O próprio órgão administrativo que os representa não tem disponibilidade sobre eles, no sentido que lhe incumbe apenas curá-los – o que também é um dever – na estrita conformidade o que dispuser a intentio legis. (MELLO, 1967, p. 14).
“Assim, a autoridade não pode renunciar ao exercício das competências que lhe são outorgadas por lei”, como afirma Pietro (2020).
Esse entendimento é fruto de profundas transformações sociais, econômicas e políticas, que ocorreram no final do século XIX, em decorrência de reações contra o individualismo jurídico. O Direito, passa a partir desse momento, de ser um instrumento de garantia do direito do indivíduo e volta seu olhar para a consecução de uma justiça social, do bem-comum e bem-estar social coletivo.
O Estado, portanto, abandona sua posição passiva e começa a atuar em nome do primado do interesse público. Nesse diapasão, Almeida (2017, p.10) explicita o pensamento de Otto Mayer, um dos grandes expoentes da época: “[...] destaca-se no pensamento de Mayer uma visão excessivamente pendente a dar relevo às prerrogativas do poder estatal.”
Houve, então, inúmeras transformações nas atividades estatais que foram ampliadas para atender às necessidades coletivas em nome do interesse público que cabe o Estado tutelar, podendo-se afirmar, em concordância com Pietro (2020) que é “no âmbito do direito público, em especial do Direito Constitucional e Administrativo, que o princípio da supremacia do interesse público tem a sua sede principal.”
De qualquer modo, o interesse público possui uma funcionalidade complexa no Direito Público e no ordenamento jurídico-administrativo, sendo enquadrado como um princípio constitucional implícito. É, portanto, o suporte justificatório da Administração Pública, como conhecemos, a qual que sem ele não poderia funcionar.
3.2. Crise dos paradigmas: A superação da Supremacia
Em que pese grande parte da doutrina e jurisprudência brasileiras sustentarem a existência do princípio da supremacia do interesse público sobre o privado como um princípio implícito no texto constitucional, existe na atualidade vertente que demonstra a inconsistência teórica do dito princípio.
A crise dos paradigmas do direito administrativo, como afirma Binenbojm (2005, p.6), decorre especialmente de um vício de origem. A história de que o direito administrativo teria nascido da subordinação do poder à lei e da definição de uma pauta de direitos individuais que vinculam a Administração pública, dando ao direito administrativo uma noção garantista e prerrogativas exorbitantes com a justificativa teórica de atender à consecução do interesse público, seria uma ilusão.
Nas palavras de Binenbojm (2005, p.3): “A associação da gênese do direito administrativo ao advento do Estado de Direito e do princípio da separação dos poderes [...] caracterizaria erro histórico e reprodução acrítica de um discurso de embotamento da realidade.”
O surgimento do direito administrativo, e de suas categorias jurídicas peculiares (supremacia do interesse público, prerrogativas da Administração, discricionariedade, indisindicabilidade do mérito administrativo, dentre outras), representou antes uma forma de reprodução e sobrevivência das práticas administrativas do Antigo regime e a sua superação. (BINENBOJM, 2005, p.3)
Aliado à esse fato, as transformações ocorridas no Estado Moderno e a ideia incipiente da constitucionalização do direito administrativo (grifo nosso), agravaram a discrepância entre as velhas categorias e, as novas e reais, necessidades e expectativas da sociedade contemporânea perante a Administração Pública.
Na doutrina brasileira contemporânea, como afirma Almeida (2017, p.24): “identifica-se nitidamente uma tensão entre uma corrente de pensamento que, para compreender cientificamente o direito administrativo, invoca como elemento principal os direitos fundamentais, e outra que o faz mediante o elemento interesse público.”
Assim, a teoria do direito administrativo brasileira cria um debate análogo ao ocorrido na França, entre a Escola do Serviço Público e a Escola da Pussaince Publique. Essa última assemelha-se a Escola do Interesse Público, enxergando o direito administrativo pelo viés dos meios pelos quais age, ou seja, pelo seu regime jurídico-administrativo de prerrogativas e sujeições. Enquanto que, a Escola dos Direitos Fundamentais se conecta com a lógica da finalidade do direito administrativo da Escola do Serviço Público, embora extraia seu elemento finalístico de maneira diversa, pela ótica do direito administrativo pelas lentes do direito constitucional.
Nesse contexto, são identificados três paradigmas clássicos do direito administrativos que se encontram questionados na atualidade, sendo eles: o princípio da supremacia do interesse público sobre o privado como fundamento e legitimação para o regime jurídico-administrativo, a legalidade administrativa como vinculação ao estritamente estabelecido em lei e a intangibilidade do mérito administrativo.
Nessa nova abordagem destaca-se o importante e consistente trabalho do autor brasileiro Humberto Bergmann Ávila no qual refuta a ideia da supremacia como princípio constitucional e demonstra, nas palavras de Binenbojm (2005) o “vazio conceitual do dito princípio da supremacia do interesse público sobre o privado”. Afirma, portanto, que a aludida supremacia não pode nem ser havida como um postulado do direito administrativo. Ósorio (2000, p. 71), ao cita o autor, pontua que de tal pensamento Ávila conclui três assertivas que merecem visibilidade.
a) não há uma “norma-princípio” da supremacia do interesse público sobre o particular, no Direito Brasileiro; b) a Administração não pode exigir um comportamento do particular (ou direcionar a interpretação das regras existentes) com base nesse “princípio”; c) a única ideia apta a explicar a relação entre interesses públicos e privados, ou entre o Estado e o cidadão, é o postulado da unidade da reciprocidade de interesses, o qual implica uma principal ponderação entre interesses reciprocamente relacionados (interligados) fundamentada na sistematização de normas constitucionais. (OSORIO, 2000, p.71)
Como visto, na desconstrução de antigos paradigmas, a estrutura constitucional, na ideia da constitucionalização do direito administrativo, assume um papel determinante na legitimação dos novos paradigmas construídos, em que as feições jurídicas da Administração Pública estão alicerçadas na própria estrutura constitucional. Os sistemas de direitos fundamentais e da democracia, instituídos pela Constituição, passam a ser o alicerce para a atuação da Administração Pública.
Tomando como partida a sistemática constitucional vigente, o princípio da supremacia do interesse público carece de fundamento de validade, vez que a Constituição brasileira é voltada precipuamente a proteção dos interesses dos indivíduos, tendo como princípio orientador a dignidade da pessoa humana, conforme disposto no art. 1º, III da CF/88.
Ademais, pelo princípio da unidade constitucional, é impossível separar a supremacia do interesse público do conjunto normativo constitucional, de modo que se nega a colisão entre interesses públicos e privados, havendo na verdade uma conexão estrutural entre eles, pois ambos estão enraizados na CF/88 na forma de princípios. Como descreve Binenbjom ao citar entendimento de Ávila:
O interesse privado e o interesse público estão de tal forma instituídos pela Constituição brasileira que não podem ser separadamente descritos na análise da atividade estatal e de seus fins. Elementos privados estão incluídos nos próprios fins do Estado.” (BINENBJOM, 2005, p. 15)
Assim, pode-se concluir que a realização de interesses particulares, ainda que em confronto com interesses públicos, não constitui em desvio de finalidade para a Administração Pública, uma vez que aqueles também são fins públicos, podendo representar a realização de um interesse público, pois ao contrário do que se acredita, a realização de um pode representar igualmente o sucesso do outro.
Prossegue Ávila em sua tese de descaracterização da supremacia do interesse público, ao afirmar a sua incompatibilidade com os postulados normativos da proporcionalidade e da concordância prática, que viabilizam o exercício da ponderação, ou seja, “a interpretação e aplicação de normas no sentido de acomodar os bens jurídicos em jogo, sem que se exclua um em prol da substância do outro”.
Desse modo, não há como conciliar um princípio que ignora as especificidades de cada caso e impõe uma única e invariável prevalência do interesse público. A supremacia do interesse público acaba por se afastar do princípio da proporcionalidade, especialmente no que tange às suas acepções: adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito.
Cumpre ressaltar que ambas visões, tanto do regime jurídico quanto dos direitos fundamentais, convivem no ordenamento jurídico, tratando-se de diferentes enfoques científicos para explicar o direito administrativo como fenômeno social.
3.2.1. O postulado da Proporcionalidade
O Constitucionalismo moderno tem como cerne o homem no centro do ordenamento jurídico, do qual se originam os direitos fundamentais, primados nas ideias da dignidade da pessoa humana e no Estado Democrático de Direito. Ao mesmo tempo, como condição à vida em sociedade e à própria proteção e promoção de tais direitos fundamentais, faz-se necessária tutelar interesses coletivos que ultrapassem a esfera individual do cidadão. Assim, infere-se que no texto constitucional os aspectos individuais e coletivos convivem harmonicamente.
Para essa linha de pensamento, o interesse público, nada mais seria que representação dos valores adotados constitucionalmente nos fundamentos, fins e limites aos quais se subordinam o Poder Público e, partindo-se da premissa acima explanada, na coexistência entre interesses públicos e privados, o interesse público também abarcaria ambos como metas e diretrizes a serem alcançadas pela Administração.
Destarte, não se presta a negar a existência do conceito de interesse público, e sim afirmar que comporta, em sua configuração constitucional, uma ligação entre interesse individuais e privados e interesses difusos e coletivos, não podendo se conceber a prevalência de um sobre o outro e, consequentemente, inviabiliza o reconhecimento de uma regra de supremacia do interesse público sobre o individual.
Com efeito, a Administração Pública ao proferir decisões e atos administrativos em um dado confronto de interesses deverá auferir a prevalência entre eles a partir de um sistema de ponderações estabelecido na Constituição e realizar seu próprio juízo de ponderação guiado pelo princípio da proporcionalidade. Dessa forma, permite-se às flexibilizações das decisões da Administração atendendo as peculiaridades de caso concreto e evita a incerteza jurídica provocada por juízos de ponderação discricionários.
[...] Tal raciocínio ponderativo funciona como verdadeiro requisito de legitimidade dos atos da Administração Pública, traduzindo postura mais objetivamente comprometida com a realização de princípios, valores e aspirações sociais expressos no documento constitucional. (BINENDJORM, 2005, p.20)
O princípio da proporcionalidade, em seus três aspectos: adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito, é o instrumento da ponderação que guiará o administrador a alcançar solução que realize o máximo de interesses públicos em jogo, com vistas a realizar o melhor interesse público, ou seja, o fim que orienta toda a atuação da Administração Pública.
Ocorre que, as prerrogativas processuais e materiais, especialmente estas utilizadas nos contratos administrativos (como cláusulas exorbitantes, alteração e extinção unilateral do contrato pela Administração, entre outras), eram alicerçadas no princípio da supremacia do interesse público e justificadas com base na relação de verticalidade praticada entre a Administração e o particular, obstaculizando a aplicação da proporcionalidade como um juízo de ponderação.
De fato, as prerrogativas da Administração Pública, tidas como uma discrepância entre o Poder Público e os particulares, não podem ser fundamentadas em uma regra de prevalência absoluta do interesse coletivo em face dos particulares. Isso porque os direitos individuais também constituem o próprio interesse público, vez que é meta do Poder Público, na ordem constitucional vigente, tanto viabilizar o funcionamento da Administração através de suas prerrogativas, como preservar e promover os interesses dos particulares.
Além disso, a CF/88 também consagra o princípio da isonomia, de tal modo que as hipóteses de tratamento diferenciado da Administração Pública em relação aos particulares devem obediência ao princípio constitucional da igualdade, devendo ser instituída por lei e guardar a proporcionalidade no caso concreto.
Portanto, para que um privilégio da Administração se faça constitucionalmente legítimo é necessário que se observe o princípio da isonomia, de modo que a discriminação criada em desfavor dos particulares seja apta a possibilitar o cumprimento pelo Estado dos seus próprios fins, como também a medida da compreensão dessa isonomia, que deverá observar o limite do estritamente necessário e exigível para se alcançar o fim estatal, compensado pela importância da utilidade gerada.
3.3. Tendências do Direito Administrativo
A consensualidade surge do reconhecimento da possibilidade de potencializar o interesse público e da maior igualdade na relação entre Administração e administrados. Decerto, não se destina a substituir a força imperativa da Administração mas representa mudança substancial em diversas modalidades de atuação, auxiliando na diminuição do arbítrio e conflitualidade, preponderantes em ações unilaterais da Administração Pública.
A abertura do direito administrativo à uma certa consensualidade é guiada pela revisão doutrinária acerca do conteúdo original da indisponibilidade do interesse público, vez que a celebração de um acordo com particular pode melhor atender, em certos casos, a finalidade do interesse público do que a imposição unilateral.
É pois, no âmbito do Estado Democrático de Direito que a Administração Pública supera o modelo autoritário de atuação por mecanismos consensuais de satisfação dos interesses da sociedade, prestigiando a participação dos administrados nas decisões públicas.
Até a década de 1980, não havia na legislação brasileira permissivo que uma decisão administrativa, decorrente do exercício legitimo de uma função administrativa, em face a um fim público, não poderia estar sujeita à consensualidade entre a Administração Pública e o particular.
A inserção do princípio da eficiência no art. 37. da CF/88, com a Emenda Constitucional nº 19 de 4 de junho de 1998, guarda relação com a nova concepção de Administração Pública ao exigir, aliado a ideias democráticas, uma maior participação social institucionalizada, ou seja, uma maior participação do particular na construção das decisões administrativas.
O princípio da eficiência estabelece uma postura da Administração voltada à resultados concretos materializados em uma boa e justa atribuição de bens às pessoas, reproduzindo um modelo adequado de gestão baseado na satisfação do administrado. Ou seja, dá-se início a uma ruptura de um modelo burocrático de Administração para um modelo gerencial, que almejava mais qualidade e efetividade e menos formalidades na atuação da Administração Pública.
Com essa nova roupagem, a Administração Pública em vez de impor unilateralmente sua vontade, passa a buscar o diálogo, utilizando-se de instrumentos consensuais, como os contratos, para o alcance da satisfação das necessidades públicas. É por meio de acordos que há a disposição de diversos interesses públicos para a definição do caminho mais adequado para a atingir a finalidade pública por meio de cláusulas compactuadas. Assim, crescem os instrumentos de parcerias entre a Administração Pública e os particulares, como os acordos, os contratos de gestão, os termos de fomento e de colaboração.
Do ressurgimento da contratualidade administrativa, a consensualidade evoluiu para outros tipos de atos, fazendo-se presente na tomada de decisões (plebiscito, consulta pública), na execução de atos (concessões e permissões de serviço público) até a solução de conflitos de forma consensual (mediação e arbitragem). Iniciando, dessa forma, uma atuação administrativa consensual.
Essa consensualidade é que irá caracterizar a Administração Pública dialógica, inserida no regime democrático, como uma evolução da Administração gerencial.
3.3.1. A Lei de Arbitragem e a Administração Pública
A arbitragem foi introduzida no ordenamento jurídico brasileiro pela Lei nº 9.307, de 23 de setembro de 1996, comumente utilizada para resolução de conflitos no âmbito do direito privado, especificamente nos direitos civil e empresarial. Contudo, tradicionalmente, sempre houve questionamento e resistência acerca da sua aplicação para a solução de contendas entre a Administração Pública e particulares.
De acordo com Cunha (2020, p. 148), formaram-se três correntes doutrinárias: a primeira delas apoia-se na ideia da indisponibilidade do interesse público e não admite que a arbitragem envolva o Poder Público; a segunda corrente admite a aplicação da arbitragem sempre, mesmo que não haja lei específica, sendo suficiente a própria lei da arbitragem, pautada no conceito que o interesse da Administração não equivale ao interesse público. E por fim, a que admite desde que condicionada a existência de uma lei específica para determinada atividade pública, apoiada no princípio da legalidade, como no caso que o juízo arbitral só poderia ser acionado quando da execução indireta do serviço público.
Oliveira (2015, p.62) ainda destaca haver três obstáculos tradicionais à aplicação da arbitragem nos contratos da Administração Pública, quais sejam: o princípio da legalidade, a indisponibilidade do interesse público e o princípio da publicidade, em confronto à confidencialidade, típica do instituto arbitral.
Com o advento da Lei nº 13.129, de 2015, promoveu-se alteração na Lei de Arbitragem - Lei nº 9.307/96 – passou a haver disposição expressa prevendo a arbitragem pelo Poder Público, e assim, cessava o argumento contrário baseado na legalidade estrita, conferindo-se segurança jurídica à celeuma. Com acréscimo dos parágrafos, o art. 1º da Lei de Arbitragem, passou a ter a seguinte redação:
Art. 1º As pessoas capazes de contratar poderão valer-se da arbitragem para dirimir litígios relativos a direitos patrimoniais disponíveis.
§ 1º A administração pública direta e indireta poderá utilizar-se da arbitragem para dirimir conflitos relativos a direitos patrimoniais disponíveis.
§ 2º A autoridade ou o órgão competente da administração pública direta para a celebração de convenção de arbitragem é a mesma para a realização de acordos ou transações.
Importante destacar que, mesmo antes da alteração legislativa supra mencionada, não havia impedimentos na Lei nº 9.307/96 para a aplicação da arbitragem pela Administração Pública na resolução de conflitos, bem como há outros dispositivos legais prevendo a sua utilização por entidades integrantes da Administração Pública.
Dentre os quais merecem destaquem o art. 11. da Lei 11.079/2004, que institui normas gerais de licitação e contratação de parcerias público-privadas pela Administração Pública, o art. 23, XV da Lei nº 8.987/1995, ao estabelecer como cláusula essencial a que diz respeito ao modo amigável de solução das divergências contratuais nas concessões e permissões de serviços públicos, a Lei nº 13.800/2019 que autoriza a Administração Pública a firmar instrumento de parceria, por meio de compromisso arbitral, com organizações gestoras de fundos patrimoniais e a Lei nº 13. 867/2019 que alterou o Decreto-lei 3.365, de 1941, ao acrescentar os 10-A e 10-B, que passou a prever a possibilidade de arbitragem em caso de desapropriação.
Ademais, constam-se julgados dos Tribunais Superiores que autorizavam o uso da arbitragem pela Administração Pública nas contratações administrativas com particulares. O STF já enfrentou a questão e admitiu, no julgamento do Agravo de Instrumento nº 52.181, a legalidade e consagração do juízo arbitral no ordenamento jurídico brasileiro, inclusive nas causas. Oliveira (2015, p.62), menciona entendimento do STJ, no julgamento do Mandado de Segurança (MS) nº 11.038/DF, de relatoria do Ministro Luiz Fuz, ao enaltecer o uso da arbitragem pelas empresas estatais, especificamente as Sociedades de Economia Mista, e em especial enfoque aos direitos disponíveis transacionáveis pela Administração Pública. Ainda, Cunha (2020, p.150), destaca o Recurso Especial nº 904.813/PR do STJ, que admitiu como válidas as cláusulas compromissórias previstas em editais convocatórios de licitação e contratos, não necessitando de expressa previsão no edital.
Outro óbice à aplicação da arbitragem na Administração Pública encontra-se na sua submissão aos princípios constitucionais constantes no art. 37, caput, da CF/88, em especial ao princípio da publicidade. Ocorre que, em contraponto, normalmente a arbitragem é submetida à confidencialidade, exigindo que sejam feitas algumas adaptações.
Entende-se que não há obstáculo à utilização da arbitragem nas contratações públicas, pois, primeiramente, a confidencialidade, apesar de ser a regra, não é atributo obrigatório e impositivo do procedimento arbitral. Segundo, a própria Lei de arbitragem no §3º do seu art. 2º, dispõe que:
Art. 2º A arbitragem poderá ser de direito ou de eqüidade, a critério das partes.
[...]
§3º A arbitragem que envolva a administração pública será sempre de direito e respeitará o princípio da publicidade.
Diante disso, a arbitragem, em observância ao princípio da publicidade, não poderá ser sigilosa, nem confidencial, além disso pela leitura que se faz do dispositivo em comento, a arbitragem pelo Poder Público só é permitida se for determinada legalmente, em atendimento ao princípio da legalidade.
Importante atentar que, o princípio da publicidade não impede o sigilo, seja de documentos, seja de procedimentos, em casos excepcionais. Em consonância com a Lei nº 12.527, de 2011, a lei de acesso à informação, a publicidade na arbitragem envolvendo a Administração pública não afasta a decretação de sigilo em casos de informações imprescindíveis à segurança da sociedade e do Estado e informações pessoais que envolvam a intimidade, à vida privada, a imagem e a honra das pessoas envolvidas.
A mesma lei, entretanto, assegura a publicidade garantindo o acesso a qualquer interessado o pedido à acesso à informação à entidades e órgãos da Administração Pública direta ou indireta, abrangendo os casos de arbitragem, pois destaca-se que a publicidade e transparência na atuação administrativa são fundamentais para o devido controle social e institucional.
Mister atentar para o fato que, embora encontre respaldo no ordenamento jurídico, a arbitragem nas relações estatais ainda encontra severas críticas, as quais são enumeradas por Oliveira (2015, p. 68):
a) receio quanto à independência dos árbitros e possível tratamento preferencial aos interesses privados em detrimento aos interesses públicos; b) inexistência de mecanismos constitucionais de garantia de “coerência jurisprudencial”, com a prolação de decisões diferentes para casos semelhantes; e c) déficit de responsabilidade democrática (accountability). (OLIVEIRA, 2015, p.68)
Na prática, as vantagens da arbitragem superam as críticas. Em relação à imparcialidade do árbitro, essa questão é garantida por meio da consensualidade entre as partes no momento de sua escolha, além de que, em sua atuação, o árbitro não pode desconsiderar a legislação e jurisprudência dominante. E ainda, a utilização da arbitragem é passível de controle pelos órgãos controladores, compatibilizando-se formal e materialmente com a juridicidade.
Além disso, é possível vislumbrar outros benefícios da arbitragem nas relações jurídico-administrativas, como: a celeridade; a flexibilidade procedimental com prazos reduzidos, limitação de recursos e possibilidade de fixação de regras sobre o procedimento pelas próprias partes; tecnicidade; confiabilidade; e maior potencial de aceitabilidade entre as partes.
3.3.2. A LINDB e o Direito Administrativo
Inicialmente denominada Lei de Introdução ao Código Civil, apesar de não fazer parte deste e disciplinar a aplicação das leis em geral, a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB), Decreto-Lei nº 4.657, contém normas que dispõem sobre o funcionamento de normas e atos no Direito brasileiro, seja público ou privado, indicando critérios para a sua interpretação e integração.
A LINDB, recentemente, sofreu alterações pela Lei nº 13.655/2018 (regulamentada pelo Decreto nº 9.830/2019) com a introdução de dispositivos que se inserem no âmbito do Direito Público, mais especificamente no Direito Administrativo.
Entre as inovações, encontram-se também alterações que reforçam e complementam princípios administrativos, previstos tanto na Constituição quanto na legislação infraconstitucional, especialmente com a premissa de trazer eficiência e segurança jurídica para o Direito Público. Aliás, pode-se afirmar que o grande objetivo da Lei é a proteção à segurança jurídica.
Ademais, a alteração ocasionada pela Lei nº 13.655/2018 representou um “grande marco à consensualidade administrativa”, nas palavras de Guerra e Palma (2018, p.130).
Especificadamente o seu artigo 26, prevê a celebração de compromisso nesses termos:
Art. 26. Para eliminar irregularidade, incerteza jurídica ou situação contenciosa na aplicação do direito público, inclusive no caso de expedição de licença, a autoridade administrativa poderá, após oitiva do órgão jurídico e, quando for o caso, após realização de consulta pública, e presentes razões de relevante interesse geral, celebrar compromisso com os interessados, observada a legislação aplicável, o qual só produzirá efeitos a partir de sua publicação oficial.
§ 1º O compromisso referido no caput deste artigo:
I - buscará solução jurídica proporcional, equânime, eficiente e compatível com os interesses gerais;
II – (VETADO);
III - não poderá conferir desoneração permanente de dever ou condicionamento de direito reconhecidos por orientação geral;
IV - deverá prever com clareza as obrigações das partes, o prazo para seu cumprimento e as sanções aplicáveis em caso de descumprimento.
§ 2º (VETADO).
Assim, a inclusão desse dispositivo acaba por criar um novo regime jurídico geral autorizando o administrador público a promover negociações com os particulares, visando pôr fim a irregularidades, incertezas jurídicas e situações contenciosas.
Ainda, importa destacar que a alteração promovida pela Lei 13.655/2018 confere “importantes diretrizes para a prática consensual com negociação mais pública e paritária, visando ao efetivo atendimento de interesses gerais. Assim, trabalha para o desenvolvimento da consensualidade administrativa com maior efetividade e segurança jurídica”, conforme entende Guerra e Palma (2018, p.140).
De maneira geral, o grande mérito do artigo 26 da LINDB é superar a dúvida jurídica acerca da possibilidade da Administração Pública para transacionar, ao conferir, expressamente, competência consensual geral para que qualquer órgão ou ente administrativo celebre acordo e compromissos sem a necessidade de edição de Lei específica para tanto. A LINDB, portanto, torna-se o fundamento de validade da consensualidade administrativa.
Afirma, ainda, Palma e Guerra:
A LINDB sepultou qualquer ordem de discussão sobre a tal da indisponibilidade do interesse público e o decorrente entendimento esposado por parte (minoritária) da doutrina no sentido de que os assuntos públicos são indisponíveis, negociáveis e transacionais.”(GUERRA; PALMA; 2018, p.150).
Conforme já mencionado, a LINDB condiciona a celebração do compromisso à finalidade de pôr fim à irregularidade, incerteza ou situação contenciosa. Essas situações jurídicas, entretanto, estão agrupadas em duas dinâmicas consensuais.
É certo que o texto normativo em comento, ao estabelecer um permissivo geral para que a Administração Pública celebre compromissos com o particular, consagra uma dinâmica de atuação consensual, já tratada em normas esparsas, que conforme já mencionado, possui a finalidade de pôr fim à irregularidade, incerteza ou situação contenciosa.
Desse modo, envolvem a celebração de acordos substitutivos, prática observada na atuação das agências reguladoras, se destina a eliminar irregularidade e situação contenciosa do Poder Público, funcionando como uma conciliação e tem como principal efeito a extinção do processo administrativo contencioso, em um verdadeiro substituto processual, bem como compromissos de ajustamento de comportamento, concretizados na forma de acordos integrativos, integrando o conteúdo discricionário do ato administrativo, proporcionando visibilidade e clareza, uma vez que os termos para a edição do ato final estão traduzindo em compromissos celebrados entre a Administração e o particular.
O dispositivo traz, também, requisitos mínimos de validade, imprescindíveis à garantia e efetividade de interesses gerais, tais como a oitiva do órgão jurídico e a realização de audiência pública se prevista em lei ou for do interesse das partes.
A oitiva do órgão jurídico, apesar de não especificada o momento de sua realização, desponta como importante requisito de validade do compromisso, pois é a partir de sua manifestação que se pode conferir maior segurança jurídica à celebração, uma vez que possibilita uma melhor compreensão do cenário em que o compromisso irá se inserir. Ressalta-se, porém, que embora a oitiva do órgão jurídico seja um requisito de validade, a sua manifestação não vincula a autoridade administrativa.
No tocante a realização de audiência pública, é possível que o conteúdo do compromisso a ser celebrado afete interesse de terceiros, fazendo-se necessária a realização de consulta pública, sempre discricionária, disciplinada no artigo 29 da LINDB e que tem a finalidade de legitimar o acordo ao fazer um mapeamento de eventuais conflitos e interesses afetados que possam prejudicar sua celebração.
Por fim, a LINDB coloca o dever de motivar o compromisso demonstrando as razões de relevante interesse geral que determinaram a preferência da administração pela via consensual. Assim, a motivação trata-se de uma justificação à crítica de que a Administração não poderia dispor de interesse público que não lhe pertença, ao demonstrar que o compromisso é de interesse público no caso concreto, e também, a exposição das razões de relevante interesse geral apresenta um plano de compromisso para que possa ser posteriormente avaliado.
Portanto, a solução jurídica apresentada deverá ser proporcional, equânime eficiente e compatível com os interesses gerais, ou seja, trata-se de uma medida de salvaguarda dos direitos dos interessados, pois deverá ser endereçada ao caso concreto e não servir somente a satisfação do plano de compromisso, trabalhando efetivamente para a eliminação de incertezas jurídicas, irregularidades ou situação contenciosa.
Em seu art. 26, §1º, a LINBD, além de reforçar os requisitos de validade, também apresenta vedações e cláusulas obrigatórias à celebração de compromissos. As vedações dizem respeito à proibição de desoneração permanente do dever da Administração Público, ou seja, veda-se a renúncia de competência do Poder Público ao modo de exercício de suas prerrogativas, e ao condicionamento de direitos do compromissário, proibindo a criação de condições para a efetivação desses direitos.
As cláusulas obrigatórias surgem como resposta à prática da celebração de acordos com cláusulas indeterminadas, reforçando a necessidade das obrigações serem definidas com clareza, possibilitando uma definição mais objetiva do marco do cumprimento do compromisso, ao qual a definição de prazos e sanções consistem em medidas de incentivo.
Ademais, ainda no art. 27, §2º da LINDB, determina que, a decisão de processo, seja nas esferas administrativa, controladora ou judicial, poderá impor compensação por benefícios indevidos ou prejuízo anormais, e nesses casos poderá ser celebrado compromisso entre os envolvidos para determinar a forma como a compensação será feita. Sendo assim possível observar mais uma tendência ao consensualismo na Administração Pública em detrimento às decisões unilaterais, trazida pela alteração da LINDB.