4. O REGIME DE CONTRATAÇÃO E LICITAÇÕES PÚBLICAS
O termo contrato pode ser conceituado como o acordo de vontades que se destina a disciplinar os interesses de cada parte por meio do estabelecimento obrigações recíprocas.
Ocorre que, quando uma das partes é a Administração Pública os contratos celebrados podem ser feitos tanto sob o regime do direito público como sob o regime de direito privado. Os contratos da Administração, portanto, constituem todos os contratos celebrados pela Administração seja sob o regime público ou privado.
Os contratos de direito privado são caracterizados pela horizontalidade da relação jurídica formada com o particular, na qual a Administração Pública nivela-se a este, exemplificado no contrato de locação de imóvel destinado a uma repartição pública. Por sua vez, os contratos que seguem o regime jurídico de direito público, denominados de contratos administrativos, são os ajustes celebrados pela Administração, nesta qualidade, com pessoas físicas ou jurídicas, públicas ou privadas, para o alcance dos fins públicos, como definida no art. 2º, parágrafo único da Lei nº 8.666/93:
Art. 2º [...]
Parágrafo único. Para os fins desta Lei, considera-se contrato todo e qualquer ajuste entre órgãos ou entidades da Administração Pública e particulares, em que haja um acordo de vontades para a formação de vínculo e a estipulação de obrigações recíprocas, seja qual for a denominação utilizada. (grifo nosso)
Como já tratado, sabe-se que a Administração Pública sujeita-se ao regime jurídico-administrativo caracterizado por prerrogativas e sujeições que lhes atribuem poderes e limites à sua atuação administrativa, respectivamente. No tocante à questão contratual, tanto os contratos privados quanto os administrativos realizados pela Administração Pública obedecem às sujeições impostas pelo regime jurídico-administrativo, não havendo diferenças quanto às exigências de forma, competência procedimento e finalidade.
No entanto, a diferença encontra-se presente no que concerne às prerrogativas conferidas à Administração no seu regime de direito público, exteriorizadas por meio das cláusulas exorbitantes ou de privilégio, que são definidas por Di Pietro (2020) como “aquelas que não são comuns ou não seriam lícitas nos contratos entre particulares, por encerrarem prerrogativas e privilégios de uma das partes em relação à outra”.
Cabe destacar que, as cláusulas exorbitantes podem estar presentes nos contratos sob o regime de direito privado, porém elas devem estar expressamente previstas e mediante aceitação do particular contratante. Contudo, como são indispensáveis para assegurar a posição de supremacia da Administração, as cláusulas de privilégios são inerentes aos contratos administrativos, estando presentes ainda que implicitamente.
Assim, pode-se afirmar que o contrato administrativo, em sentido próprio e restrito, possui características específicas além da presença da Administração como Poder Público, finalidade pública e obediência da forma prescrita em lei.
Como já mencionado, a principal e mais importante característica dos contratos administrativos está na presença das cláusulas exorbitantes ou leoninas, que conferem uma série de prerrogativas somente à Administração em detrimento do contratado. De igual modo, os contratos administrativos se comportam como verdadeiros contratos de adesão, vez que quase totalidade das suas cláusulas são impostas unilateralmente pela Administração.
Em razão desse poder conferido à Administração quando da celebração dos contratos, ela pode exigir garantia do particular, direito à fiscalização da execução do contrato, pode aplicar penalidades quando da inexecução total ou parcial do contrato, podendo ensejar até em anulação e retomada do objeto do contrato.
Entretanto, a característica mais marcante dos contratos administrativos atribuída pelas cláusulas exorbitantes é a sua mutabilidade, decorrente da poder dado à Administração de, unilateralmente, alterar as cláusulas regulamentares do contrato ou rescindir o contrato antes do prazo previsto, sempre em atendimento aos fins públicos.
Ademais, conforme nos ensina Di Pietro (2020) “o que se considera essencial para a caracterização do contrato administrativo é a utilidade pública que resulta diretamente do contrato”, e nesse contexto os interesses são conflituosos, o particularvisa à consecução do seu interesse individual e a Administração objetiva o atendimento do interesse da coletividade, demandando que atue sobre o seu Poder de Império para assegurar a observância do seu regime jurídico-administrativo.
Todo contrato administrativo está adstrito aos procedimentos obrigatórios para a celebração do contrato de determinados por lei, que pode compreender medidas como autorização legislativa, indicação de recursos orçamentários, entre outros. Porém, como regra geral, o procedimento que precede a celebração de um contrato administrativo é a licitação.
4.1. Licitações e Contratos na Lei nº 8.666/93
A licitação pode ser conceituada como o procedimento administrativo pelo qual um ente público, no exercício de sua função administrativa, por meio de um instrumento convocatório, abre a possibilidade aos interessados que se sujeitem às condições fixadas no edital de abertura, de formularem propostas dentre as quais a Administração selecionará a mais conveniente para a celebração do contrato.
Di Pietro (2020) complementa esse conceito ao aduzir que “licitação é o procedimento prévio à celebração dos contratos administrativos, que tem por objetivo selecionar a proposta mais vantajosa para a Administração, promover o desenvolvimento nacional e garantir a isonomia entre os licitantes”.
Até a Constituição de 1967 não havia uma disciplina ritualista para as contratações da Administração Pública, os processos seletivos eram bastante simplificados o que culminava na celebração de contratos regidos pelo Código Civil. Somente com a Constituição de 1967 surgiram as primeiras normas acerca das licitações e contratos da Administração Pública, o Decreto-Lei 200, que instituiu o procedimento licitatório propriamente dito, e o Decreto-Lei 2.300/1986 que disciplinava exclusivamente as licitações e contratos da Administração Federal.
Em que pese já havia disciplina regulamentando o procedimento licitatório e contratações para a Administração Pública, não havia norma estabelecendo a competência para legislar sobre elas, ocasionando insegurança jurídica e formação de controvérsia na doutrina. Uma corrente entendia que licitação era matéria de direito financeiro e a competência cabia à União de normas gerais e os Estados, normas supletivas, enquanto segunda corrente via a licitação como matéria de direito administrativo, cuja competência legislativa cabia a cada uma das unidades da Federação.
Essa controvérsia só foi solucionada com a promulgação da CF/88 onde foram positivadas normas específicas sobre licitação e contratação pelo Poder Público. O art. 22, inciso XXVII, conferiu à União competência privativa para legislar sobre “normas gerais de licitação e contratação, em todas as modalidades, para as administrações públicas diretas, autárquicas e fundacionais da União, Estados, Distrito Federal e Municípios, obedecido o disposto no art. 37, XXI, e para as empresas públicas e sociedades de economia mista, nos termos do art.173, §1º,III.”
Prosseguindo, o art. 37, inciso XXI, definiu que:
Art. 37. [...]
XXI - ressalvados os casos especificados na legislação, as obras, serviços, compras e alienações serão contratados mediante processo de licitação pública que assegure igualdade de condições a todos os concorrentes, com cláusulas que estabeleçam obrigações de pagamento, mantidas as condições efetivas da proposta, nos termos da lei, o qual somente permitirá as exigências de qualificação técnica e econômica indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações.
De vácuo normativo à norma constitucional, assim o tema licitações públicas assumiu grande importância no ordenamento jurídico brasileiro, alçado ao status de norma constitucional tanto em termos de norma legislativa específica como matéria formalmente constitucional.
Desse modo, as normas gerais acerca da necessidade de realização prévia de licitação à contratação por todos os entes da Administração Pública passaram a ser disciplinadas pela Lei nº 8.666/93, a Lei Geral de Licitações e Contratos administrativos. Naquilo que for norma específica, os demais entes poderão legislar sobre assunto, vedando-se, porém, a criação de novas modalidades de licitação e os casos de contratação direta sem licitação, já que se tratam de normas gerais.
Para Santos de Aragão (2021), a “licitação não é um princípio, mas sim uma regra, impositiva de obrigação de fazer, que densifica os princípios da igualdade, moralidade, impessoalidade e economicidade em relação aos contratos do estado.”
Posteriormente, principalmente após à Emenda Constitucional nº 19/98, com o estabelecimento de um novo modelo de Administração baseada na efetividade, foram editados outros diplomas legais que trouxeram novas faces para a licitação, tais como a Lei nº 10.520/2002 (que instituiu a modalidade de licitação pregão) e a Lei nº 12.462/2011 (que criou o RDC-Regime Diferenciado de Contratações Públicas), aliado às normas pertinentes à tipos específicos de contratação, como a Lei nº 8.987/1995, a Lei Geral das Concessões, a Lei 11.079/2004, a Lei de Parcerias Público-Privadas e a Lei 13.303/2013, que regula a licitação das empresas públicas e sociedade de economia mista.
Diante desse cenário, de ausência de uniformização legislativa, a Lei nº 8.666/93 continuava sendo retaliada e mesmo promovendo inúmeras alterações no seu texto, acaba por ser responsabilizada pelos contratempos que ocorrem nas contratações públicas, em geral pautadas no excesso de formalismo do procedimento licitatório, exigências exageradas e lentidão dos procedimentos.
4.2. Consensualidade e Contratações Públicas
Conforme já exposto, a utilização de métodos consensuais não é novidade para a Administração Pública, de fato foi através de uma recontratualização da Administração que possibilitou a busca pelo diálogo e a utilização de instrumentos consensuais para o alcance da satisfação das demandas públicas. Afinal, o elemento que caracteriza um contrato administrativo é a vinculação direta e imediata ao interesse público.
Em razão da relevância do interesse público perseguido pela Administração, tanto na formação quanto na execução dos contratos administrativos, evidenciava-se uma desigualdade contratual entre as partes de modo que a Administração possui prerrogativas de atuação sobre o particular, independentemente de sua concordância.
No entanto, quando se direciona para uma negociação para a composição de eventual conflito entre as partes pressupõe o reconhecimento da autonomia das partes envolvidas. E ainda que relativizada pelo regime jurídico-administrativo, é incabível se pensar em uma relação de total subordinação do particular à Administração, uma vez que nesse contexto se vislumbra a necessidade de realização de parcerias.
Desse modo, uma vertente de transformação do direito administrativo consiste em demonstrar que mesmo em âmbitos habitualmente ocupados pela imperatividade administrativa há abertura para a consensualidade. Surge, portanto, um novo direito administrativo, em busca de uma maior participação do particular nas decisões administrativos, compatibilizando os institutos da imperatividade e unilateralidade com a negociação e multilateralidade.
A doutrina passou então a discutir novos paradigmas do Estado em que se coloca em xeque todas as noções clássicas do direito público. Nesse sentido, expõe Oliveira (2005, p. 246) “um dos novos paradigmas do Estado está atrelado ao fortalecimento da negociação na esfera da Administração Pública, expressada por via de acordos, em que passam ao primeiro plano a negociação em lugar de procedimento, a liberdade das formas em lugar de tipicidade e a permuta em lugar da ponderação”.
Saad (2019, p.77) admite a existência de uma autonomia administrativa contratual que se articula em dois pilares, quais sejam, o dever de eficiência da administração pública e o respeito inegociável aos direitos e garantias individuais.
Tecnicamente, a autonomia da vontade do administrador público caracteriza-se pela possibilidade de criação no âmbito de atos e contratos administrativos, “de efeitos de direito não predeterminados por normas jurídicas e a titularidade e exercício do correspondente poder, ou por outras palavras, a margem de livre decisão na criação de efeitos de direito nas situações concretas regidas pelo Direito Administrativo”. (SAAD, 2019, p.78)
Assim, reproduz entendimento traçado por José Manuel Sérvulo Correia na identificação de uma autonomia pública em oposição a uma autonomia privada. Essa autonomia revela-se na liberdade de contratar, liberdade para definição do objeto a ser contratado, liberdade de tratativas e liberdade de formas.
É bem sabido que, pelo princípio da eficiência, a Administração tem o dever de desempenhar suas competências da maneira mais eficaz para a criação da utilidade pública e por essa razão, em face da presunção de eficiência que vigora a favor do setor privado, a Administração não deve prescindir tal colaboração. A iniciativa privada está intimamente relacionada ao dinamismo do mercado e tecnologia e a Administração, devido a sua gerencialidade, necessita de utilizar a negociação em prol do emprego de tais benefícios para a coletividade.
Assim, em busca da eficiência é imprescindível que a Administração se desfaça da postura de autossuficiência e superioridade e se abra a uma relação junto à iniciativa priva em busca das melhores soluções para as necessidades públicas.
Saad (2019, p.83) se manifesta acerca da necessidade de diálogo entre a Administração e particulares afirmando:
No mundo real, Administração e particular se conversam. A Administração verifica com os particulares se as soluções que imagina para a solução dos problemas coletivos é viável. O particular submete projetos à Administração, que podem constituir alternativas benéficas para o interesse público. Este trânsito [...] é absolutamente normal e desejável. Somente assim, são trazidas para o interior da Administração Pública informações e soluções para os problemas coletivos. (SAAD, 2019, p. 83).
Essa liberdade de negociação além de se legitimar no princípio da eficiência, também se encontra positivada na Lei nº 9.784/1999, a Lei de Processo Administrativo, que não somente admite a participação de particulares nos assuntos administrativos como também impõe o dever para a Administração de criar procedimentos necessários para viabilizar essa atuação privada.
E como corolário da negociação surge a ideia de colaboração, que deverá incidir não somente na fase de execução contratual, sendo necessária também na fase de elaboração do contrato, formulando as cláusulas do edital de licitação quanto a do contrato administrativo, pois em face da complexidade do objeto, o êxito do contrato depende das avenças pré-contratuais, e a essa faceta das liberdades de negociação, chama-se de liberdade de tratativas.
É nesse contexto de ligação de interesses públicos e privados que se insere uma nova contratualização administrativa, baseada no fortalecimento da utilização de instrumentos de negociação na Administração Pública, indicando uma maior paridade entre a Administração e o particular.
4.3. Parcerias Público-Privadas
Embora haja diversas Leis aprovadas pelas unidades federativas sobre a matéria, as parcerias público-privadas – PPPs – foram instituídas no ordenamento jurídico brasileiro pela Lei nº 11.079, de 30 de dezembro de 2004, como nova modalidade de contratos administrativos que visa instituir e formalizar uma relação jurídica entre a Administração Pública e particulares, a partir de uma base normativa diversa da expressa na Lei nº 8.666/93, elegendo normas gerais acerca da licitação e contratação de tais parcerias.
As parcerias público-privadas surgiram para suprir a carência de alguns segmentos cuja escassez de recursos orçamentários impossibilitava o Estado de atender, especialmente o setor execução de projetos de alto custos, de obras de infraestrutura e serviços de saneamento básico e saúde. O exercício compartilhado dessas atividades com a atuação direta do particular, mostrava-se com uma forma de assegurar serviços público de melhor qualidade e com menores custos.
Nos termos do art. 2º da Lei nº 11.079/04, “parceria público privada é o contrato administrativo de concessão nas modalidades concessão-patrocinada e concessão administrativa”. Na concessão-patrocinada a remuneração do particular, pela prestação de um serviço público precedido ou não de obra pública, dá-se através da cobrança de tarifa do usuário e da contraprestação pecuniária do parceiro público. Já a concessão administrativa consiste na prestação de um serviço público no qual a Administração seja usuária direta ou indireta, com ou sem execução de obra, no qual a contraprestação seja exclusivamente proveniente do parceiro público.
Assim, as PPS são parcerias entre entes públicos e empresas ou investidores do setor privado com o fim de planejar, financiar e executar projetos de alta complexidade para a prestação de serviço público que habitualmente seguiria o rito tradicional dos contratos administrativos.
Implicitamente à essa modalidade contratual encontra-se um elevado nível de riscos a serem enfrentados pelos parceiros público e privado, em função da alta complexidade do objeto do contrato, do montante de recursos financeiros envolvidos e a dificuldade em atingir um equilíbrio contratual em relação aos interesses envolvidos. Importante lembrar, portanto, que a repartição de riscos se encontra entre as diretrizes das PPPs, elencadas no art. 4º da Lei 11.079/04:
Art. 4º Na contratação de parceria público-privada serão observadas as seguintes diretrizes:
I – eficiência no cumprimento das missões de Estado e no emprego dos recursos da sociedade;
II – respeito aos interesses e direitos dos destinatários dos serviços e dos entes privados incumbidos da sua execução;
III – indelegabilidade das funções de regulação, jurisdicional, do exercício do poder de polícia e de outras atividades exclusivas do Estado;
IV – responsabilidade fiscal na celebração e execução das parcerias;
V – transparência dos procedimentos e das decisões;
VI – repartição objetiva de riscos entre as partes;
VII – sustentabilidade financeira e vantagens socioeconômicas dos projetos de parceria. (grifo nossos)
Diferentemente dos contratos disciplinados na Lei nº 8.666/93, as chamadas cláusulas exorbitantes não se encontram tão presentes nos contratos das PPPs, vez que a questão gira em torno da ampliação das bases de negociação das cláusulas contratuais que estabelecerão a regulamentação dos interesses em jogo, sejam do parceiro público, do parceiro privado e da coletividade.
Como forma de possibilitar o equilíbrio de todos esses interesses, as cláusulas contratuais das PPPs se assemelham às cláusulas típicas dos contratos sinalagmáticos, no qual as partes, no caso os parceiros público e privado, ocupam simultaneamente a posição de credor e devedor, constituindo em um regime de obrigações recíprocas. Assim, na PPPs há uma mitigação da verticalização das relações jurídicas que ocorre tradicionalmente nos contratos administrativos.
Ademais, o contrato administrativo realizado nas parcerias público-privadas caracteriza-se pelo estabelecimento de garantias especiais conferidas pelo parceiro público ao parceiro privado, destinadas a assegurar o cumprimento das obrigações assumidas pela Administração.
Desse modo, a conformação jurídica de um contrato de Parceria Público-Privada se insere no contexto de uma discussão acerca da aproximação entre o regime de direito público e o regime de direito privado, que constitui temática de estudo da Administração Pública contemporânea, não havendo uma oposição, nem uma supremacia entre o público e o privado.
Nesse sentido, atualmente é possível a Administração escolher por formas de organização e de atuação típica do direito privado, desde que, em obediência ao princípio da legalidade, não haja vedação legal para isso, sem olvidar certas normas e princípios gerais do Direito Público a par das normas privadas.
Não obstante, a própria Lei nº 11.079/04 traz a possibilidade da aplicação de mecanismos privados de resolução de conflitos, incluindo a arbitragem para dirimir conflitos decorrentes do contrato, assim disposto no art. 11:
Art. 11. O instrumento convocatório conterá minuta do contrato, indicará expressamente a submissão da licitação às normas desta Lei e observará, no que couber, os §§ 3º e 4º do art. 15, os arts. 18, 19 e 21 da Lei nº 8.987, de 13 de fevereiro de 1995, podendo ainda prever:
[...]
III – o emprego dos mecanismos privados de resolução de disputas, inclusive a arbitragem, a ser realizada no Brasil e em língua portuguesa, nos termos da Lei nº 9.307, de 23 de setembro de 1996, para dirimir conflitos decorrentes ou relacionados ao contrato.
Assim, a viabilidade de negociação entre a Administração Pública e o particular e a maior paridade entre eles alcança terreno fértil no âmbito das contratações públicas visando alcançar a melhor solução para o interesse público.
4.4. A nova lei de licitações e contratos – Lei nº 14.133/21 e a aplicação de métodos consensuais na Administração Pública
A Lei 14.133/21, publicada em 01 de abril de 2021, conhecida como Nova lei de licitações e contratos, surgiu como um novo marco legal ao regime de contratações públicas brasileiro, revogando por completo a antiga Lei nº 8.666/93.
Entre as novidades da lei destaca-se mecanismos consensuais e de negociação inaugurando uma participação dialógica com o particular no procedimento licitatório. Com efeito, a consensualidade no contexto licitatório pode obter um resultado bastante vantajoso para o interesse público ao abrir margem para o diálogo entre o Estado contratante e os contratados particulares.
Saad (2019, p.85) demonstra a falibilidade da ideia de enrijecimento da fase interna da licitação, na qual pode se vislumbrar o déficit de eficiência da Administração Pública em relação à iniciativa privada, uma vez que os projetos não se adequam nem as necessidade da própria Administração, e em suas palavras: “as licitações desertas ou fracassadas, os contratos que não conseguem ser concluídos, os projetos de engenharia que produzem obras arruinadas, [...] elementos presentes em todas as esferas do governo, são provas indiscutíveis do que se vem expor”.
A primeira das novidades trazidas pela Lei nº 14.133/21 no tocante à matéria afeta à consensualidade, está a previsão de nova modalidade licitatória, por meio da qual as partes, Administração Pública e os particulares licitantes, desenvolvem após negociações mútuas, soluções técnicas capazes de atender às necessidades do contratante, que ensejaram a abertura do procedimento licitatório.
Em verdade, a inauguração do diálogo competitivo sinaliza para a agregação da gestão de inovação do Direito Público, na qual a interações entre os atores podem fortalecer o desenvolvimento e uso de inovações tecnológicas. Nesse sentido, consta a sua disciplina legal, trazida no art. 32. da Lei nº 14.133/21, demonstrando tratar-se de uma modalidade licitatória excepcional, cabível em hipóteses específicas:
Art. 32. A modalidade diálogo competitivo é restrita a contratações em que a Administração:
I - vise a contratar objeto que envolva as seguintes condições:
a) inovação tecnológica ou técnica;
b) impossibilidade de o órgão ou entidade ter sua necessidade satisfeita sem a adaptação de soluções disponíveis no mercado; e
c) impossibilidade de as especificações técnicas serem definidas com precisão suficiente pela Administração;
II - verifique a necessidade de definir e identificar os meios e as alternativas que possam satisfazer suas necessidades, com destaque para os seguintes aspectos:
a) a solução técnica mais adequada;
b) os requisitos técnicos aptos a concretizar a solução já definida;
c) a estrutura jurídica ou financeira do contrato;
Como demonstrado, o diálogo competitivo é cabível em situações que a Administração embora ciente dos objetivos que deseja alcançar com a licitação, necessita da criatividade da iniciativa privada para juntos, num diálogo dinâmico, construírem mecanismos adequados para o alcance de suas finalidades.
Esse procedimento se desenvolve em três etapas: fase de qualificação, fase de diálogo e fase de competição, nas quais as fases de qualificação e competição se assemelham às tradicionais modalidades licitatórias consagradas. A inovação jaz sobre a fase dialógica que inaugura a fase negocial.
Diferentemente de outras modalidades licitatórias participativas, como a Contratação Integrada, o Procedimento de Manifestação de Interesse (PMI) e a Manifestação de Interesse Privado (MPI), a fase negocial do diálogo se desenvolve dentro do próprio procedimento licitatório, na qual a Administração e os particulares passam a discutir os termos do negócio, definindo os contornos do objeto da licitação à medida em que as soluções vão aparecendo e são avaliadas e reavaliadas pela Administração.
Inobstante, o diálogo competitivo deverá, ainda, observar os preceitos constitucionais da isonomia, publicidade, transparência e sigilo das informações, do modo que os licitantes devem ser tratados de modo isonômico e devendo ser resguardadas, somente, as soluções propostas e informações sigilosas oferecidas por um licitante sem o seu consentimento, uma vez que as negociações são realizadas com cada licitante pré-qualificado individualmente.
Ademais essa fase não possui prazo máximo definido, podendo a Administração manter as tratativas até que identifique a solução ou soluções que melhor atendam suas necessidades, configurando-se na grande discricionariedade da Administrativa nessa modalidade licitatória.
Outra novidade da Lei nº 14.133/21 em relação à aplicação de mecanismos consensuais de direito privado trata-se da utilização dos meios alternativos de prevenção e resolução de controvérsias. De fato, não apresenta nenhuma inovação no que tange à temática pois se utiliza da reprodução de instrumentos tradicionais de autocomposição e heterocomposição, consagrados em leis administrativas como já fora demonstrado.
No entanto, sua importância não deve ser menosprezada, ao positivar uma cláusula geral autorizando a utilização de meios alternativos de resolução de conflitos destaca, como já elucidado, que a Administração pode-se valer desses mecanismos. Portanto, assim dispõe o art.151:
Art. 151. Nas contratações regidas por esta Lei, poderão ser utilizados meios alternativos de prevenção e resolução de controvérsias, notadamente a conciliação, a mediação, o comitê de resolução de disputas e a arbitragem.
Quanto a conciliação e mediação tratam-se de mecanismos cuja utilização já se encontrada consolidada no direito administrativo. A grande controvérsia, entretando, paira sobre a arbitragem e o comitê de resolução de disputas (Dispute Boards) que debuta na legislação brasileira com a Lei nº 14.133/21.
A arbitragem, como exposto anteriormente, passou a ser aceita no âmbito administrativo em tempos recentes com as grandes transformações sofridas pelo direito administrativo no último século. Sua aceitabilidade na Administração pública já consta em legislações anteriores como no art. 11, III da Lei nº 11.079/2004, que regula as parcerias público-privadas, contudo somente foi regulamentada pela Lei nº 13.129/2015, que alterou a Lei nº 9.307/1996, Lei da arbitragem, inserindo a sua previsibilidade.
Sobre o instituto da arbitragem a Lei nº 14.133/21 assim dispõe:
Art. 151. [...]
Parágrafo único. Será aplicado o disposto no caput deste artigo às controvérsias relacionadas a direitos patrimoniais disponíveis, como as questões relacionadas ao restabelecimento do equilíbrio econômico-financeiro do contrato, ao inadimplemento de obrigações contratuais por quaisquer das partes e ao cálculo de indenizações.
Art. 152. A arbitragem será sempre de direito e observará o princípio da publicidade.
[...]
Art. 154. O processo de escolha dos árbitros, dos colegiados arbitrais e dos comitês de resolução de disputas observará critérios isonômicos, técnicos e transparentes.
Em que pese praticamente reproduzir a previsão constante de Lei de Arbitragem e não dispor sobre o procedimento de nenhum desses aspectos, Oliveira (2020, p.129) aduz que “perpassa por três temas atinentes à arbitragem (i) a questão da arbitralidade objetiva e dos direitos disponíveis, (ii) o princípio da publicidade vinculado ao procedimento arbitral e (iii) a necessidade que a arbitragem seja de direito”. Acerca desses pontos, demanda cautela em relação ausência de definição acerca dos direitos patrimoniais disponíveis e o princípio da publicidade.
Como exibido ostensivamente, a indisponibilidade do direito público não é obstáculo para a utilização da arbitragem pela Administração Pública. No entanto, apesar de exemplificar algumas matérias passíveis de serem resolvidas pela arbitragem, a Lei nº 14.133/21 ao apresentar previsões genéricas, poderia ter conferido maior segurança jurídica à temática ao dar maior clareza ao assunto e por fim à controvérsia acerca do que são direitos patrimoniais disponíveis da Administração pública. Tal questão tenta ser solucionada pela legislação e pela doutrina, que basicamente dispõe que serão aqueles que disciplinam o modo e a forma de prestação do serviço, como as cláusulas econômico-financeiras do contrato.
Também em relação a aplicabilidade do princípio da publicidade acerta a inovação legislativa pois sua incidência não afasta o caráter sigiloso da arbitragem, vez que sua prática não seja obrigatória. No entanto, falha em não explicitar como perfectibilizar a publicidade na prática.
Ademais, em sua análise Oliveira (2020, p. 134) relembra pontos que, embora não abordados na lei, devem estar presentes nas convenções arbitrais celebradas pelos entes públicos, quais sejam: “esclarecer a forma de instituição do processo arbitral, isto é, se ele se dará de maneira ad hoc ou institucional e o idioma oficial do processo arbitral ser o português”.
Por fim, a grande inovação da Lei nº 14.133/21 trata da previsão expressa do comitê de resolução de disputa, o dispute board, como meio alternativo de resolução de conflitos. Além de regulamentar sua utilização nos contratos administrativos, torna-se a primeira lei brasileira a prever o instituto no ordenamento jurídico brasileiro, dirimindo qualquer controvérsia acerca de sua aplicação à Administração Pública.
Os comitês de resolução de disputas são conceituados como mecanismo de solução de controvérsias consistente na formação de um comitê de especialistas em matérias variadas e técnicas que, em conjunto, acompanharão a execução de um contrato, permitindo uma atuação que vise a prevenção e a resolução de conflitos que possam surgir. Oliveira, em sua obra, menciona o conceito dado pelo autor Arnoldo Wald, cuja transcrição segue:
[...] painés, comitês ou conselhos, para a solução de litígios cujos membros são nomeados por ocasião da celebração do contrato e que acompanham sua execução até o fim, podendo, conforme o caso, fazer recomendações (no caso dos Dispute Review Boards – DBR) ou tomar decisões (Dispute Adjudications Boards – DAB) ou até tendo ambas as funções (Combine Dispute Boards – CDB), conforme o caso, e dependendo dos poderes que lhes foram outorgados pelas partes. (OLIVEIRA, 2020, p. 136)
O grande diferencial dos dispute boards está no momento de criação do comitê, que se perfectibiliza em momento anterior à execução do contrato, no início da relação contratual, e portanto, antes que aconteça alguma desavença entre as partes, na qual poderão utilizar de seus conhecimentos técnicos para solucionar o conflito que venha a surgir. A utilização do comitê de resolução de conflito pela Administração ganha grande relevância em contratos para a construção de obras públicas, pois evita a paralisação e a inviabilização da execução de contratos em razão de disputas técnicas, além de diminuir os custos dos litígios.
Salienta-se ainda, que em obediência ao princípio da legalidade a previsão dos comitês de resolução de disputas deve constar expressamente no edital e na minuta do contrato que será firmado.
Por fim, interessante destacar o posicionamento do Judiciário em relação à necessidade ou não de revisão judicial das decisões proferidas pelos Comitês. Oliveira (2020, p. 138) destaca entendimento da 10ª Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça de São Paulo no sentido de que “a interferência do Judiciário deve estar limitada aos casos que fujam da normalidade, conferindo assim maior autoridade e segurança jurídica às decisões proferidas pelos Comitês”.