LEI HENRY BOREL (LEI 14.344/22) – PRINCIPAIS ASPECTOS

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14/07/2022 às 19:50
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Comentários à Lei Henry Borel

 

 

 

Autor: Eduardo Luiz Santos Cabette, Delegado de Polícia Aposentado, Mestre em Direito Social, Pós – graduado em Direito Penal e Criminologia e Professor de Direito Penal, Processo Penal, Medicina Legal, Criminologia e Legislação Penal e Processual Penal Especial na graduação e na pós – graduação do Unisal.

 

1-VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A CRIANÇA E O ADOLESCENTE

 

Desde a edição da Lei Maria da Penha (Lei 11.340/06) tem-se criticado a ausência de regras protetivas especiais para a violência no âmbito doméstico e familiar contra outros hipossuficientes, em especial as crianças e adolescentes. A abordagem do problema da violência doméstica e familiar restrita ao aspecto de sexo sempre foi claramente incompleta, em suma, reveladora de insuficiência protetiva.

O advento da cognominada “Lei Henry Borel” (Lei 14.344/22) constitui um marco na colmatação dessa lacuna protetiva, de modo que seus dispositivos praticamente espelham o sistema já existente para as mulheres, conforme a Lei Maria da Penha. Seu âmbito de incidência é mais amplo, pois atinge os menores independentemente de sexo.

Trata-se, conforme destaca Sannini, de mais um caso

do fenômeno conhecido como “especificação do sujeito de direito”, cujo objetivo é dar, por meio de lei, tratamento especial para pessoas em condição de maior vulnerabilidade, promovendo, assim, o princípio constitucional da igualdade. [1]

O artigo 1º. da Lei 14.344/22 destaca os dispositivos constitucionais em que se fundamentam as regras que vêm a lume (artigo 226, § 8º., CF e artigo 227, § 4º., CF), bem como os tratados, convenções e acordos acerca da proteção à infância e juventude firmados pelo Brasil na seara internacional. Dessa forma, não poderia deixar de repetir uma assertiva que também consta da Lei Maria da Penha a respeito da violência doméstica e familiar contra a mulher. A violência doméstica e familiar contra as crianças e adolescentes é declarada como “uma das formas de violação dos direitos humanos” (artigo 3º., da Lei 14.344/22), o que implica em atribuir a toda violência dessa espécie um enorme desvalor da conduta, impedindo tratamentos legais e institucionais condescendentes ou pouco rigorosos.

Importante salientar que a Lei Henry Borel será aplicada à violência doméstica e familiar contra os menores e não a qualquer violência que tenha por sujeito passivo uma criança ou adolescente. A definição do que seja um caso de violência doméstica e familiar vem descrita no artigo 2º., incisos I, II e III da Lei 13.444/22, praticamente em cópia dos conceitos da Lei Maria da Penha. Também determina o Parágrafo Único do mesmo artigo 2º., a utilização das definições de violência doméstica estabelecidas na Lei 13.431/17, mais precisamente em seu artigo 4º.

Significa dizer que se um adulto, por exemplo, se desentender com um adolescente na rua devido a um problema de trânsito (v.g. o menor esbarra sua bicicleta no carro estacionado do maior) e o agredir fisicamente, não tem aplicação a Lei Henry Borel, já que inexiste vínculo doméstico ou familiar. Doutra banda, se um pai praticar maus – tratos contra o filho terá plena aplicação a legislação em comento.

Neste item vale desenvolver o estudo da violência contra crianças e sua aferição por critérios objetivos, que pode muito auxiliar nas constatações, denúncias e apurações.

A violência no âmbito doméstico, principalmente contra crianças de tenra idade, é questão chocante e, muitas vezes, relegada a um segundo plano pela sociedade, que prefere ignorar a realidade em face de sua natureza abjeta.

As sequelas e características desse tipo de violência conduzem a um conjunto de sintomas capazes de levar a uma constatação segura da possibilidade de uma criança estar sendo vítima desse tipo de conduta.

Tal conjunto tem sido denominado de "Síndrome de Caffey" ou "Síndrome da Criança Espancada" e pode ser um instrumento de grande valia para a detecção de casos de espancamento de crianças por parte de profissionais das mais diversas áreas que tenham algum contato com crianças ou venham a investigar casos que tais (v.g. professores, pedagogos, psicólogos, médicos, policiais etc.).

Por incrível que pareça, as primeiras características dominantes dessa violência são que os atos ocorrem normalmente no lar e em situações do cotidiano. Os agressores geralmente são os pais ou responsáveis, sendo fato que as mães predominam nas estatísticas. As crianças são especialmente aquelas entre zero e três anos, aumentando a incidência em razão direta à maior ou menor vida de relacionamento da criança, ou seja, nas fases em que começa a engatinhar, andar, falar, enfim, ter maior manifestação e contato com o ambiente em que vive.

Considerando as circunstâncias em que normalmente a conduta do agressor se desenvolve, torna-se comum o uso de objetos domésticos como instrumentos para provocar as lesões (Ex. ferro de passar, cabos de vassouras, garfos, facas de cozinha, panelas, alimentos fumegantes etc.), sendo ainda comuns agressões manuais (chutes, tapas, socos) e até o arremesso das vítimas contra a parede ou o chão.

Em consequência ainda das condições peculiares desses casos, pode-se verificar caracteres de lesões que são indicadores:

A sua produção é geralmente marcada por um trajeto de cima para baixo, logicamente, pois produzida por um adulto contra uma criança. Ainda neste sentido observe-se que a gravidade das lesões e mesmo consequências letais são comuns nesse tipo de agressão devido à descomunal desproporção física entre os sujeitos ativos e passivos, o que pode até mesmo ocasionar resultados não previstos pelo agressor (preterdolo) que não mensura devidamente o grau de violência de seus golpes.

O rosto e a cabeça são suas sedes mais comuns, inclusive por um instinto natural de qualquer agressor em atacar tais partes do corpo. Neste sentido são comuns queimaduras no rosto e na boca, especialmente relacionadas ao momento em que a criança é alimentada e recusa ou quer o alimento com impaciência, findando por receber a comida ainda muito quente propositadamente para queimar-se ou ainda agressões com talheres e outros utensílios (garfos, facas de cozinha, panelas etc.).

Também relacionadas a queimaduras, pode-se mencionar casos em que com caráter "educativo" o agressor vem a queimar as nádegas da criança como castigo por haver urinado ou defecado nas roupas.

Em casos mais graves as agressões na cabeça podem superar simples rupturas do couro cabeludo e chegar até à morte da vítima por traumatismo crânio-encefálico, ou mesmo em casos de espancamento na região do tronco, provocar quebra de costelas e rotura de órgãos internos.

Outra causa de morte comum é a asfixia, especialmente nos casos em que se pretende calar a criança que chora e isso redunda em sufocação.

As fraturas de ossos longos em datas diversas e a presença de equimoses de idade variável, constatáveis pela evolução cromática do espectro equimótico, [2] são outras características altamente indiciárias do espancamento contínuo da criança.

Obviamente, todas essas indicações devem ser cuidadosamente cotejadas com as narrativas dos suspeitos agressores que procurarão dar explicações acerca da origem das lesões, a serem analisadas quanto à sua verossimilhança e discrepância ou não com a natureza das lesões encontradas.

Outro fator indiciário da violência doméstica a ser salientado, nos casos de múltiplas lesões de datas diversas, é a procura de atendimento à vítima em hospitais e prontos-socorros diferentes em cada oportunidade, certamente visando evitar a constatação da continuidade das ocorrências lesivas envolvendo os mesmos personagens.

Este breve esboço do quadro indicador da chamada "Síndrome da Criança Espancada" desvela uma situação altamente repugnante e difícil de aceitar como realidade. Porém, existe em todas as camadas sociais e pode estar se passando ao nosso lado sem que houvéssemos nos conscientizado disso, de modo que sua divulgação é o principal objetivo desta exposição.

A conscientização dessa realidade há que ser difundida a fim de sensibilizar a sociedade no sentido de criar mecanismos necessários para atender com eficiência e rapidez esses casos de alta gravidade e de consequências tão funestas e cruéis para o desenvolvimento dos vitimados.

Atente-se que as medidas nesse sentido não hão de restringir-se ao tratamento penal da matéria, mas deverão voltar-se especialmente ao tipo de assistência que se deverá prestar às vítimas, garantindo sua incolumidade física e psíquica.

No aspecto criminal, tirante os casos mais extremos, (arts. 136,parágrafos 1º.,2º. e 3º.; 129, parágrafos 1º. , 2º. e 3º., e 121 e seu § 2º. CP ), a violência perpetrada contra a criança, principalmente aquela praticada pelos responsáveis, poderia ficar adstrita aos simples "maus-tratos", considerados "infração de menor potencial ofensivo" ( art. 136 "caput"  CP c/c art.61 da Lei 9099/95 ). Isso ainda que fossem continuamente infligidos à vítima. [3]

Com o advento da Lei 9455 de 7 de Abril de 1997 que definiu os crimes de tortura, procurou-se dar um tratamento mais severo à matéria com os dispositivos do art. 1º., II e §§ 3º. e 4º.,II. Não obstante, sua caracterização muitas vezes esbarrará na dificuldade de comprovação do elemento subjetivo que diferenciaria os "maus-tratos" da "tortura". [4]

Já o art. 233 da Lei 8069/90 (ECA) que era de validade duvidosa antes da definição de "tortura", trazida agora pela Lei 9455/97, restou revogado por esta e, incrivelmente, com tratamento penal mais brando ao autor da violência contra crianças e adolescentes, já que a nova pena prevista na Lei de Tortura é menor que a anteriormente prevista no ECA, salvo se aplicado o patamar de aumento máximo previsto no § 4º., inciso II, do artigo 1º., da Lei 9.455/97, o que é muito raro.

Certamente pecou a Lei 9099/95 ao eleger como único critério determinador da infração de menor potencial ofensivo o "quantum" da pena máxima, ensejando situação incrível em que um crime terrivelmente danoso pelo seu aspecto deletério da formação da criança, venha a ser como tal considerado. Mas, isso é consertado com a nova redação dada pela Lei 14.344/22 ao artigo 226, § 1º., da Lei 8.069/90 (ECA), vedando a aplicação dos benefícios da Lei 9.099/95 aos casos de violência contra crianças e adolescentes.

Também falhou o legislador em não descrever de forma casuística as condutas caracterizadoras da tortura, afastando discussões acerca de elementos subjetivos de difícil comprovação.

Assim sendo, a tutela penal nos casos de violência perpetrada contra criança apresenta-se branda e, principalmente, conturbada no aspecto da caracterização das condutas mais graves, o que, infelizmente, aparenta indicar mais uma fonte de impunidade. A Lei Henry Borel é uma iniciativa positiva no sentido de promover maior proteção legal à infância e juventude, mas não é capaz de solucionar alguns fatores de insuficiência protetiva que ainda existem na legislação brasileira.

Entretanto, conforme já se disse, ainda mais importante que o tratamento penal da matéria, são os meios de assistência a serem colocados à disposição da vítima. Neste sentido destacáveis os artigos 98, II e 101, VII do ECA (Lei 8069/90), sendo fato que a iniciativa da criação de locais apropriados ao abrigo de crianças vítimas de violência com devida assistência (médica, psicológica etc.), deve ser prioridade e não somente nos grandes centros, mas em todos os municípios, pois a violência doméstica não é "privilégio" de determinadas localidades, constituindo-se numa triste realidade existente em qualquer meio. Novamente a Lei Henry Borel surge como um progresso neste aspecto, especialmente no que tange às medidas protetivas dispostas às crianças e adolescentes em situação de abuso.

O quadro real, porém, é desolador, uma vez que com mais de três décadas vigência do ECA, poucos são os locais onde se têm os mecanismos necessários à efetiva proteção imediata das crianças e mesmo onde, por alguma iniciativa louvável e rara, são criados, sua manutenção e continuidade parecem estar sempre em cheque, não sendo assumidos como imprescindíveis à comunidade.

Fica, portanto, mais um apelo à conscientização quanto a esta realidade que exige mobilizações imediatas e soluções efetivas em prol da defesa daqueles que não podem fazê-lo por si mesmos. Espera-se que a Lei 14.344/22 e sua repercussão social sirvam, parafraseando Drummond em sua “Canção Amiga”, como “uma canção que faça acordar os homens e adormecer as crianças”. [5]

 

2-DO ATENDIMENTO PELA AUTORIDADE POLICIAL

 

Nos artigos 11 a 14 a lei regula o atendimento de ocorrências de violência doméstica e familiar contra menores pela Autoridade Policial em moldes também similares ao já determinado para o caso das mulheres na Lei Maria da Penha.

A Lei 14.334/22 repete o avanço da Lei Maria da Penha quanto à possibilidade de deferimento de afastamento imediato do agressor do ambiente doméstico realizado diretamente pela Autoridade Policial em sentido estrito (Delegado de Polícia), onde não for sede de Comarca; ou mesmo por policiais em geral (Autoridade Policial em sentido amplo) quando o local não for sede de comarca e também não houver Delegado de Polícia disponível (artigo 14, I, II e III e § 2º.). Trata-se do que se convencionou chamar de “gatilho de eficiência” dos instrumentos protetivos de urgência, não os deixando enredar pela burocracia e pela lentidão processual.  

Prevê ainda a possibilidade de que o Conselho Tutelar represente pelo afastamento do agressor ao Juiz, ao Delegado ou Policial, conforme o caso (vide também as atribuições do Conselho Tutelar acrescidas nos incisos XIII a XX do artigo 136 do ECA (Lei 8.069/90) pelo artigo 29 da Lei Henry Borel). Note-se que o Conselheiro Tutelar não é legitimado para determinar o afastamento diretamente, mas somente por postular (representar, por meio de capacidade postulatória anômala) essa medida perante as autoridades enumeradas na lei (vide artigo 14, § 1º.).

Novamente, na mesma senda da Lei Maria da Penha, o artigo 14, § 3º., da Lei 14.344/22 veda a concessão de liberdade provisória ao preso nos casos de risco à integridade física da vítima ou à efetividade da medida protetiva de urgência. A disposição especial está em plena consonância com o disposto no artigo 312, CPP no que tange à garantia da “ordem pública”, bem como ao “perigo gerado” pela liberdade do imputado. Assim também se coaduna com a proibição de concessão de fiança quando presentes os motivos da Prisão Preventiva (artigo 324, IV, CPP). Isso quer dizer que a vedação de liberdade provisória deve ser analisada e fundamentada casuisticamente, tendo em mira não somente o disposto no artigo 14, § 3º., da Lei 14.344/22, mas também as regras atinentes aos requisitos e fundamentos da Prisão Preventiva, conforme determinado no Código de Processo Penal.

3-MEDIDAS PROTETIVAS DE URGÊNCIA

 

Agora acaba a celeuma referente à possibilidade ou não de utilizar a Lei Maria da Penha em analogia para casos de crianças ou adolescentes do sexo masculino vítimas de violência doméstica ou familiar.

A Lei Henry Borel prevê, nos mesmos moldes da Lei 11.340/06, medidas protetivas de urgência às crianças e adolescentes vítimas de violência doméstica e familiar, independentemente do sexo (artigos 15 a 21).

Em geral se segue rito similar ao já previsto anteriormente na Lei Maria da Penha para a concessão de medidas protetivas de urgência.

Uma diferença importante é que, considerando a incapacidade dos menores, não é previsto o requerimento direto da medida pela vítima, tal como ocorre em regra com as mulheres (artigo 16 da Lei 14.344/22). A legislação prevê a concessão pelo Juiz, mas não por requerimento da criança ou adolescente e sim do Ministério Público, da Autoridade Policial [6], do Conselho Tutelar [7] ou, finalmente, a pedido de pessoa que atue em favor da criança ou do adolescente (v.g. pais, tutores, responsáveis etc.).

Outra diferença diz respeito à notificação dos atos relativos ao agressor, especialmente os pertinentes à entrada e saída da prisão (artigo 18 da Lei 14.344/22). No caso da Lei Maria da Penha, a mulher deve ser notificada pessoalmente. Mas, quanto às crianças e adolescentes, considerando sua incapacidade, foi necessária uma adaptação, de modo que será notificado o responsável pela criança e, se for o caso, intimado o advogado constituído ou defensor público. Observe-se que a notificação do responsável e a intimação do advogado ou defensor são cumulativas, de forma que a informação de um não dispensa a do outro.

A Lei Henry Borel faz a mesma distinção presente na Lei Maria da Penha entre medidas protetivas de urgência que obrigam o agressor (cuja restrição ou atuação estatal recai diretamente sobre o infrator) e medidas protetivas de urgência à vítima (cuja ação estatal se dirige à vítima, recaindo sobre ela com vistas à sua tutela) (vide artigos 20 e 21 da Lei 14.344/22). No entanto, a nosso ver, comete o legislador alguns equívocos no que se refere às medidas protetivas de urgência à vítima nos incisos II e III do artigo 21. O inciso II trata do afastamento do agressor do lar. O inciso III se refere à Prisão Preventiva do agressor. Nesse passo, não se tratam de medidas protetivas de urgência à vítima e sim que obrigam o agressor. Tanto é fato que o inciso II é repetido no artigo 20 também inciso II da lei.

Importa salientar que o rol de medidas protetivas da Lei 14.344/22 não é taxativo. Por disposição expressa do artigo 20, § 1º. e artigo 21, § 2º. do diploma em comento, o magistrado pode adotar outras medidas protetivas previstas na legislação sempre que forem úteis à proteção da criança, do adolescente, de seus familiares, de noticiante ou denunciante. Significa dizer que são aplicáveis, por exemplo, medidas protetivas previstas na Lei Maria da Penha (Lei 11.340/06), não importando o sexo da vítima, bem como outras cautelares previstas, por exemplo, no artigo 319, CPP. Estabelece a Lei 14.344/22 uma integração do sistema de medidas protetivas e cautelares em prol da tutela da integridade física e psíquica e da vida das crianças e adolescentes. Por oportuno, observe-se que a Lei Henry Borel não dispôs a respeito de medidas protetivas patrimoniais, diversamente do que ocorre com a Lei Maria da Penha embora tenha acrescido na Lei 13.431/17 o conceito de “violência patrimonial” contra crianças e adolescentes (vide artigo 28 da Lei 14.344/22 e nova redação do artigo 4º., V, da Lei 13.431/17). Dessa forma, de acordo com o artigo 2º., Parágrafo Único da Lei 14.344/22, existe para fins de abusos contra menores, a previsão expressa da “violência patrimonial”.  Efetivamente, a chamada “violência patrimonial” certamente pode ocorrer contra as crianças e adolescentes dotadas de patrimônio próprio, tanto que está agora descrita na Lei 13.431/17 (v.g. direitos hereditários ou sucessórios, propriedades, bens ou valores pertencentes diretamente aos menores, contratos esportivos ou artísticos, pensões alimentícias e outros benefícios securitários ou de previdência social, ações empresariais etc.). Nesse passo, conforme exposto, será plenamente possível adotar as providências previstas no artigo 24 da Lei 11.340/06, “mutatis mutandis” para a proteção patrimonial das crianças e adolescentes eventualmente exploradas nesse aspecto, independentemente do sexo da vítima. [8] São exemplares casos concretos de prodígios infantis e juvenis, especialmente na área artística e esportiva, indevidamente explorados e vilipendiados, inclusive sob o prisma patrimonial, por pais, procuradores, empresários, tutores e afins.

Não se olvide, contudo, que os pais, tutores, guardiões ou responsáveis em geral não perdem devido aos dispositivos legais em estudo o poder – dever de administrar os bens dos menores sob seu poder familiar, tutela, guarda ou responsabilidade, sempre no interesse do próprio menor. Assim sendo, são obviamente possíveis e não constituem violência patrimonial, mas exercício regular de direito, eventuais restrições e controles de caráter educativo e disciplinar. Isso, aliás, foi muito bem ressalvado no inciso V, do artigo 4º., da Lei 13.431/17 em sua parte final, quando afirma que a violência patrimonial ocorre nos casos ali descritos, “desde que a medida não se enquadre como educacional”. Isso é muito importante porque a imaturidade dos menores pode levá-los facilmente à dilapidação do próprio patrimônio se não são devidamente assistidos por pessoas responsáveis.

Costa e Araújo apontam como um problema a falta de previsão expressa pelo legislador da modalidade de “violência moral” contra os menores, diversamente do que ocorre com a Lei Maria da Penha (vide artigo 7º., V, da Lei 11.340/06). Em suas palavras:

Um problema detectado no novo diploma é que não previu expressamente proteção em face de atos de violência moral. E o legislador se confundiu ainda mais quando, em pontos específicos da exemplificação legal de violência psicológica, cita constrangimento, humilhação etc., circunstâncias essas que mais se aproximam do rótulo de agressão moral do que psicológica. Deveria ter mantido a técnica e guardado o rigor analítico de tal classificação (a exemplo do que foi feito no âmbito da Lei Maria da Penha). De toda sorte, acreditamos ser perfeitamente possível que o inciso V art. 7º da Lei Maria da Penha socorra essa lacuna da Lei Henry Borel, pois a razão intuitiva de ambas as leis parece assim o permitir (proteção de hipervulneráveis). [9]

Há acerto parcial na manifestação dos autores supra, pois que realmente no corpo da Lei 14.344/22 não há previsão da modalidade de “violência moral”, tal qual existe no artigo 7º., V, da Lei Maria da Penha. Nem mesmo a norma constante do artigo 2º., Parágrafo Único, da Lei Henry Borel, remetendo o intérprete e aplicador, para fins de caracterização da violência, às definições contidas na Lei 13.431/17, é capaz de solver a questão. Isso porque também este último diploma se abstém de fazer menção expressa à chamada “violência moral” (vide seu artigo 4º.). Malgrado essa falha técnica, é possível perceber que a proteção dos menores com relação à “violência moral” não ficou totalmente esquecida, pois, embora impropriamente, como frisam os autores em destaque, há referências a “constrangimento, humilhação, discriminação, depreciação, desrespeito, agressão verbal, xingamento, ridicularização, indiferença” e “bullying”. Efetivamente não existe a citação expressa da violência moral, mas certamente esta se encontra abrigada no dispositivo da Lei 13.431/17 que trata da “violência psicológica”. Há um desacerto técnico sim, mas meramente formal, não havendo impedimento da tutela das crianças e adolescentes sob o aspecto moral. Em suma, não se pode considerar que haja uma efetiva lacuna legal. Não bastasse isso, conforme os próprios autores apontam, é plenamente aplicável aos casos de violência doméstica e familiar contra menores, por integração, o artigo 7º., V., da Lei Maria da Penha, o qual trata especificamente da “violência moral” (inteligência do expresso no artigo 33 da Lei 14.344/22).

Por outro lado lembram, com percuciência, os autores enfocados que, tal qual no caso da Lei Maria da Penha, a Lei Henry Borel permite a determinação das medidas protetivas de urgência sem aplicação do contraditório prévio hoje previsto no artigo 282, § 3º., CPP. Isso se justifica porque ambos os diplomas são subsumíveis às exceções previstas pelo próprio artigo 282, § 3º., CPP, quais sejam, as situações de “urgência” ou “perigo de ineficácia”. [10] Poder-se-ia discutir quanto à necessidade de maiores fundamentos a serem aferidos no que tange ao “perigo de ineficácia”, mas parece que tal questionamento se torna inútil diante do próprio nome das medidas protetivas, as quais são “de urgência”. Isso, obviamente, não impede que o magistrado fundamente seu ato de deferimento sem contraditório prévio, seja pela “urgência” expressa pela própria lei, seja também, em reforço, por eventual caso em que também concorra a questão da possível “ineficácia da medida”.

 

 

 

 

4-DOS CRIMES

 

4.1-DESCUMPRIMENTO DE MEDIDA PROTETIVA DE URGÊNCIA

 

Com redação praticamente idêntica à do artigo 24 – A da Lei Maria da Penha, é previsto, no artigo 25 da Lei Henry Borel, o crime de descumprimento de medida protetiva de urgência.

Assim sendo, valem os comentários feitos quando do estudo do dispositivo incluído na Lei Maria da Penha pela Lei 13.641/18: [11]

As inovações legislativas da Lei 11.340/06 (Nova redação dada pela Lei 13.641/18) e da Lei 14.344/22 vão de encontro com a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, que se posicionava no sentido de que o descumprimento de medidas protetivas de urgência não caracterizaria o crime de desobediência, uma vez que tal conduta já seria sancionada na esfera processual, seja pela possibilidade de substituição da medida protetiva decretada ou pela possibilidade de decretação da prisão preventiva do sujeito. Nesse sentido:

(...) De acordo com a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, o crime de desobediência apenas se configura quando, desrespeitada ordem judicial, não existir previsão de outra sanção em lei específica, ressalvada a previsão expressa de cumulação. Precedentes. A Lei n. 11.340/2006 prevê consequências jurídicas próprias e suficientes a coibir o descumprimento das medidas protetivas, não havendo ressalva expressa no sentido da aplicação cumulativa do art. 330 do Código Penal, situação que evidencia, na espécie, a atipicidade da conduta. Precedentes. 5. Ordem parcialmente concedida para absolver o paciente pelo crime de desobediência, diante da atipicidade da conduta.[12]

A jurisprudência desta Corte Superior de Justiça está pacificada no sentido de que o descumprimento de medidas protetivas estabelecidas na Lei Maria da Penha não caracteriza a prática do delito previsto no art. 330 do Código Penal, em atenção ao princípio da ultima ratio, tendo em vista a existência de cominação específica nas hipóteses em que a conduta for praticada no âmbito doméstico e familiar, nos termos do art. 313, III, do Código de Processo Penal.[13]

Agora, contudo, essa discussão perde o sentido diante da previsão legal de tipos penais específicos. Note-se que a intenção do legislador foi a de reforçar a proteção às mulheres, e agora, crianças e adolescentes vítimas de violência doméstica e familiar, criando um novo instrumento capaz de constranger o sujeito passivo da medida protetiva a cumpri-la. Isto, pois, já existe no artigo 313, inciso III, do CPP, uma ferramenta coativa que é, justamente, a possibilidade de prisão preventiva para assegurar o cumprimento de tais medidas.

O objeto jurídico tutelado pelos novos tipos penais é a manutenção do respeito às decisões judiciais. O sujeito ativo do crime é apenas a pessoa vinculada à medida protetiva de urgência, tratando-se, portanto, de crime próprio.  O sujeito passivo, por outro lado, é, primariamente, a Administração da Justiça, mas secundariamente a própria vítima da violência doméstica e familiar. Justamente por isso, já vislumbramos uma possível divergência na doutrina.

Considerando que se trata de crime contra a Administração da Justiça, certamente surgirão entendimentos no sentido de que o artigo 41, da Lei Maria da Penha, que afasta a aplicação da Lei 9.099/95 e, consequentemente, todos os seus benefícios, bem como o artigo 226, § 1º., do ECA (Lei 8.069/90 com nova redação dada pela Lei 14.344/22), não deveriam ser observados no caso específico dessas infrações penais, afinal, numa análise objetiva da conduta, não haveria violência doméstica, familiar ou afetiva contra a mulher ou às crianças ou adolescentes.

Contudo, essa posição não merece prosperar. Primeiro porque, conforme destacado, a mulher e as crianças ou adolescentes são as vítimas indiretas da conduta, ficando absolutamente expostas com o descumprimento das ordens judiciais. Não se pode olvidar que nos termos do artigo 7º, inciso II, da Lei 11.340/06, constitui violência psicológica qualquer conduta que cause dano emocional à mulher. Da mesma maneira há reconhecimento da violência psicológica contra as crianças e adolescentes, na forma do disposto no artigo 2º., Parágrafo Único, da Lei 14.344/22 que remete à Lei 13.431/17 (artigo 4º., II, “a”, “b” e “c”).  Ora, é evidente que ao desrespeitar uma ordem judicial o agente abala diretamente a estrutura emocional da vítima, que se sentirá vulnerável à prática de outras infrações penais, gerando angústia e isolamento.

Demais disso, numa interpretação sistemática e teleológica da Lei, só podemos concluir que a intenção do legislador foi a de ampliar o âmbito de proteção à mulher e às crianças e adolescentes, o que é reforçado pela previsão constante no §2º, do artigo 24-A da Lei Maria da Penha e também no § 2º., do artigo 25 da Lei Henry Borel, que proíbe a concessão de liberdade provisória mediante fiança pelo delegado de polícia, conforme veremos melhor adiante, restringindo essa prerrogativa ao juiz.

Ora, torna-se evidente que ao mencionar a vedação da fiança em caso de prisão em flagrante pelo delegado de polícia, a “mens legis” é exatamente a de aplicar o disposto no artigo 24-A da Lei Maria da Penha e no artigo 25 da Lei Henry Borel em coerência com o disposto no artigo 41 da Lei 11.340/06 e no artigo 226, § 1º. Da Lei 8.069/90 (ECA) (NR dada pela Lei 14.344/22), ou seja, afastar a Lei 9.099/95 e possibilitar a prisão em flagrante, sem que imperem os benefícios típicos das infrações de menor potencial, tais como a substituição da prisão em flagrante pela lavratura de um simples Termo Circunstanciado com liberação do ofensor.

Não há que se falar em inconstitucionalidade na previsão de infrações com penas máximas até 2 anos que não sejam tratadas como de menor potencial. Isso porque a Constituição Federal é explícita em deferir ao legislador ordinário a missão de estabelecer o que será ou não tratado como infração de menor potencial (artigo 98, I, CF). Ademais, o STF já reconheceu a plena constitucionalidade do disposto no artigo 41 da Lei Maria da Penha (ADC 19, de 09.02.2012), o que certamente vale, “mutatis mutandis” para a nova redação do artigo 226, §1º., do ECA, instituída pela Lei 14.344/22. 

Por fim, nos termos do artigo 4º, da Lei Maria da Penha, na sua interpretação devem sempre ser levados em consideração os fins a que se destina. E essa orientação legal certamente pode e deve ser aplicada à Lei Henry Borel quanto à proteção das crianças e adolescentes, inclusive porque há expressa autorização de aplicação, naquilo que couber, das disposições, tanto do ECA quanto da Lei Maria da Penha aos casos de violência doméstica e familiar contra crianças e adolescentes (vide artigo 33 da Lei 14.344/22). Com efeito, os tipos penais em questão só podem ser interpretados de uma forma que amplie a proteção à mulher e às crianças e adolescentes vítimas de violência doméstica ou familiar.

Conforme adiantamos, o §2º, do artigo 24-A da Lei Maria da penha e o § 2º. do artigo 25 da Lei Henry Borel estabelecem que na hipótese de prisão em flagrante, “apenas a autoridade judicial poderá conceder fiança”. Não resta dúvida de que com essa previsão legal o legislador objetivou assegurar os interesses da vítima, ampliando, assim, os rigores previstos nas respectivas leis, que, além de impossibilitarem a adoção dos institutos despenalizadores da Lei 9.099/95 (artigo 41 da Lei 11.340/06 e artigo 226, § 1º. da Lei 8.069/90, NR dada pela Lei 14.344/22), também proíbem a imposição de penas de caráter pecuniário (art.17 da Lei 11.340/06 e artigo 226, § 2º., da Lei 8.069/90, NR dada pela Lei 14.344/22) e ainda, no caso específico da Lei Maria da Penha, cria regras especiais para a retratação ao direito de representação (art.16). Quanto a essa regulação da retratação da representação, entendemos que não se aplica aos casos de violência doméstica e familiar contra crianças e adolescentes, atendo-se somente ao caso das mulheres, pois é regra especial que foi omitida pelo legislador na Lei Henry Borel. Se fosse a intenção do legislador aplicar o mesmo sistema aos casos de crianças e adolescentes, teria feito isso expressamente, conforme o fez com vários regramentos especiais da Lei Maria da Penha que foram espelhados na Lei 14.344/22. Mesmo porque há diferença entre as situações. No caso das mulheres é a própria mulher vitimizada adulta, portanto a parte vulnerável, que se retrata, merecendo um cuidado maior quanto à voluntariedade dessa retratação. No caso dos menores, estes não irão nem representar nem retratar-se, mas o farão seus responsáveis legais, que não são em geral vulneráveis ou hipossuficientes. Restará, porém, uma hipótese de aplicação do sistema do artigo 16 da Lei 11.340/06 quando a violência se operar contra menor. Trata-se do caso de menor do sexo feminino. Certamente é visível uma irrazoabilidade de tratamento diverso entre menores masculinos e femininos nesse aspecto, mas há que aplicar a norma mais protetiva que se volta expressamente para as pessoas do sexo feminino. Observe-se, porém, que se, na prática, o Ministério Público requerer e o Juiz deferir a aplicação por integração do artigo 16 da Lei Maria da Penha, mesmo em caso de menor do sexo masculino, isso não gerará nenhum prejuízo, tratando-se apenas de uma cautela protetiva que se faria com sustento na possibilidade de aplicação de dispositivos da Lei 11.340/06 aos casos de violência doméstica e familiar contra menores de qualquer sexo, conforme disposto no artigo 33 da Lei 14.344/22. Pode surgir quem alegue a existência de prejuízo porque a representação e sua retratação são  institutos mistos (têm um aspecto penal para além do processual – extinção de punibilidade) e não admitiria aplicação por analogia “in mallam partem” de regra que pode afastar a retratação já procedida. Entretanto, sabe-se que é possível a retratação da representação e também a retratação da retratação enquanto não houver a extinção da punibilidade pela prescrição. Dessa forma, não há diferença se essa retratação da retratação se dá numa audiência judicial ou em qualquer outra circunstância. Trata-se apenas do exercício do direito da vítima de retratar-se de sua própria retratação, o que não se altera em conteúdo, senão apenas na forma, se isso se opera em juízo ou em outras circunstâncias. É preciso lembrar que não são apenas os direitos fundamentais do indiciado ou réu que devem ser protegidos, mas também os das vítimas. [14]

Conclui-se, destarte, que o §2º, do artigo 24-A da Lei Maria da Penha e o § 2º., do artigo 25 da Lei Henry Borel, afastam o poder cautelar do delegado de polícia de conceder liberdade provisória mediante fiança, previsto no artigo 322, do CPP. Embora seja compreensível e até elogiável a intenção do legislador na proteção da mulher e das crianças e adolescentes, vislumbramos uma violação ao princípio da proporcionalidade nessas inovações.

Explicamos. Os novos crimes em estudo representam tipos penais preventivos, cujo foco é evitar a prática de condutas que possam atingir bens jurídicos mais relevantes. Trata-se de crimes de perigo, pois ao descumprir uma medida protetiva, o agente coloca em risco a integridade física, psicológica, patrimonial, sexual e moral da vítima.

Desse modo, nos parece desproporcional a vedação de fiança pelo delegado de polícia em um crime de perigo, quando o benefício pode ser concedido nos crimes de dano, tais como lesão corporal, ameaça, injúria etc. Apenas para ilustrar, se o agente descumpre uma medida protetiva de não se aproximar da vítima com o objetivo de lhe entregar flores, pratica o crime de descumprimento, inafiançável na esfera policial; mas se a agredir efetivamente, causando-se lesões corporais de natureza leve, responde pelo crime do artigo 129, §9º ou § 13, do CP, e poderá ser beneficiado com a fiança, desde que, obviamente, não pratique tal agressão depois de ter contra si decretada medida protetiva, senão seria caso de concurso de crimes e a presença da desobediência impediria a fiança.

Anote-se que o que se aponta aqui não é uma violação da proporcionalidade sob o prisma negativo (garantismo negativo ou inconstitucionalidade por excesso), mas pelo prisma positivo (garantismo positivo ou inconstitucionalidade por deficiência protetiva). Não tem cabimento que a mera desobediência seja inafiançável para o delegado de polícia e os demais casos de violência contra a mulher ou crianças e adolescentes admitam essa contracautela. Entende-se que, em regra, o agressor nesses casos não deveria fazer jus à fiança, visando salvaguardar imediatamente a integridade física e psíquica da mulher ou do menor vitimado. Nos casos específicos de incidência na desobediência agora erigida a infração penal autônoma, seria também o caso de, ao menos em regra, haver a mais rápida possível decretação da prisão preventiva ou a conversão da prisão em flagrante em preventiva, considerando que o descumprimento das medidas protetivas deve levar a essa medida extrema, visando à neutralização do agressor em termos cautelares (artigo 312, CPP – ordem pública – c/c artigo 313, III, CPP c/c artigo 20 da Lei 11.340/06 ou artigo 17 da Lei 14.344/22). Ademais, relembremos que sempre que houver risco à integridade das vítimas ou de não efetividade de outras medidas protetivas, não deve ser concedida liberdade provisória ao preso, conforme o disposto no artigo 12 – C, § 2º., da Lei 11.340/06 e artigo 14, § 3º., da Lei 14.344/22.

A vedação da fiança arbitrada pelo delegado de polícia em tais casos não viola a Constituição Federal em termos de proporcionalidade sob o ângulo negativo. Não há que comparar o entendimento do STF quando tratou da vedação de fiança para crimes previstos no Estatuto do Desarmamento (Adin 3.112-1, de 10.05.2007). Naquela oportunidade, o que despontava era a aproximação do tratamento de meros crimes de perigo abstrato ao tratamento reservado a crimes hediondos.

No caso da violência doméstica e familiar contra a mulher e as crianças e adolescentes, mais do que um mandamento constitucional interno de criminalização, como ocorre com os crimes hediondos (artigo 5º., XLIII, CF), o Brasil reconhece por tratados internacionais e na legislação interna que essa espécie de violência constitui grave violação dos Direitos Humanos (vide artigo 6º, da Lei 11.340/06 c/c artigo 4º, II, CF e artigo 3º. da Lei 14.344/22). São exemplos de documentos internacionais que corroboram esse posicionamento e foram ratificados pelo Brasil: a Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação Contra a Mulher; a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (“Convenção de Belém do Pará”); a Declaração e Plataforma de Ação da IV Conferência Mundial da Mulher “Beijing”, o Pacto de São José da Costa Rica (artigos 4º. e 19 especificamente sobre as crianças e adolescentes), Declaração Universal dos Direitos Humanos, Declaração da ONU sobre os Direitos das Crianças, Declaração Mundial sobre a Sobrevivência, a Proteção e o Desenvolvimento das Crianças, Diretrizes das Nações Unidas para a Prevenção da Delinquência Juvenil – Diretrizes de Riad, Regras Mínimas das Nações Unidas para a Proteção de Jovens Privados da Liberdade, Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, Regras Mínimas das Nações Unidas para a Administração da Justiça da Infância e da Juventude – Regras Mínimas de Beijing, Declaração do Panamá – Unidos pela Infância e Adolescência, Base da Justiça e da Equidade no Novo Milênio, Convenção sobre os Direitos da Criança, dentre outros. [15]   

Feitas essas observações, destacamos dois aspectos que vêm passando ao largo da doutrina ainda incipiente sobre o tema. O primeiro se refere ao fato de que para que o crime de descumprimento de medida protetiva de urgência se caracterize, é indispensável a intimação do sujeito passivo da medida. Assim, caso haja dúvida sobre a sua intimação e ciência, em homenagem ao princípio do in dubio pro reo, consectário do estado de inocência, o Delegado de Polícia não deve decretar a sua prisão em flagrante e apenas registrar a ocorrência para que os fatos sejam melhor apurados em sede de inquérito policial. Indo mais além, se realmente o indivíduo ainda não foi intimado da medida, não há como imputar-lhe violação, de modo que o próprio processo criminal não deve prosperar.

Já uma segunda questão é mais palpitante e se refere aos casos em que a própria vítima da violência doméstica e familiar concorre para o descumprimento da medida protetiva. Isto, pois, nossa experiência nos plantões de Polícia Judiciária nos fez perceber que em inúmeras situações a vítima, mesmo contemplada com a medida protetiva, acolhe o agressor em sua casa, aceitando que ele volte a fazer parte de sua vida.

Em tais situações, cremos que resta desconfigurado o crime do artigo 24-A da Lei Maria da Penha, haja vista que a medida protetiva é decretada em favor da vítima e, o que é importante, em virtude de seu requerimento. Nesse contexto, trata-se de um benefício disponível e que não deve sofrer a ingerência excessiva do Estado. Se a própria beneficiária abriu mão da proteção que lhe foi conferida, não há razão para a responsabilização criminal daquele que descumpriu a ordem judicial.

Em reforço a essa conclusão, nos valemos da teoria da imputação objetiva, que afasta a tipicidade da conduta. Ao descumprir uma medida protetiva com a anuência da vítima, o agente não cria ou incrementa um risco proibido relevante. Não há, em nosso sentir, ofensa ao bem jurídico que se busca proteger com a criminalização da conduta, qual seja, a dignidade da mulher. Com efeito, não há que se falar na caracterização do crime por ausência de tipicidade material.

Há que ressaltar que na dogmática tedesca há recentes estudos a indicarem limites ao poder de punir estatal sempre que a vítima de uma infração não se tenha feito valer de seus próprios meios de autodefesa. Afirma-se que quando há um grave descuido de autoproteção por parte da vítima em casos concretos, é de se afastar a incidência do Direito Penal, considerando sua característica de medida de “ultima ratio”, bem como levando em conta os estudos da chamada “vitimodogmática”, ou seja, as situações de autocolocação da própria vítima em risco ou situações em que a vítima precipita ou provoca a ação criminosa. [16]

Como aduz Hörnle: “De este modo, la omisión de las medidas de protección tendría como consecuencia, en tipos penales completamente distintos, la ausencia de castigo o un castigo menor al autor”. [17]

Para aqueles que não se contentarem com esses argumentos, vislumbra-se, ademais, uma causa supralegal de exclusão da ilicitude pelo consentimento da ofendida, o que também inviabilizaria a prisão em flagrante do agente. Isso tendo em vista que a própria Lei 11.340/06 condiciona, ao menos em regra (artigo 18), a concessão da medida ao pedido da ofendida. Dessa forma, é de se concluir que o consentimento da vítima nesses casos é de extrema relevância para a descaracterização delitiva.

Também não se pode perder de vista que esse consentimento da ofendida tem de ser livre e consciente. Casos em que a vítima foi constrangida ou ludibriada, havendo evidente vício de sua vontade, jamais afastarão a incidência do novo tipo penal. Eventualmente, se a medida protetiva foi deferida judicialmente a pedido do Ministério Público, nos termos do artigo 19, da Lei 11.340/06, sem a anuência da vítima, há que considerar que, então, sua vontade será indiferente para a caracterização do tipo penal em destaque. No entanto, tais casos de atuação “ex officio” do Ministério Público devem ser extremamente (como o são na prática) excepcionais, reservados a casos em que fique evidente que o não requerimento da vítima se processa por nítido constrangimento, temor ou outros fatores inibidores ou neutralizadores da ação da ofendida (pessoa incapaz, por exemplo). Não havendo tais situações excepcionais, a decretação da medida contra a vontade da ofendida constitui uma odiosa violação de sua dignidade humana e de sua autonomia.

É preciso ter em mente ainda que o Brasil não adotou o mesmo sistema da Espanha, por exemplo, em que a desobediência a medidas protetivas pode ser imputada tanto ao agressor como à ofendida, configurando o que lá se denomina de “quebrantamiento de condena”. Aqui, a medida protetiva é adotada em prol da mulher vitimizada e contra o agressor. A ordem judicial se dirige, portanto, ao agressor e não à ofendida, a qual não tem como desobedecer um mandamento que não se lhe foi dirigido pela Administração da Justiça.  Na lição de Karam:

Na inspiradora legislação espanhola, o descumprimento de medidas de proteção, análogas às previstas na nova lei brasileira, conduz à configuração do quebrantamiento de condena (artigo 468, 2 do Código Penal espanhol), que, incluído dentre os crimes contra a administração da justiça, é reconhecível independentemente ou mesmo contrariamente à vontade da mulher em nome de cuja proteção são decretadas as descumpridas medidas, o que pode implicar na absurda situação de se privar a própria mulher de prosseguir ou retomar a convivência com o apontado autor da alegada violência de gênero, ou até mesmo em imputação a ela da prática daquele mesmo crime de quebrantamiento de condena, na qualidade de partícipe. [18]

Entende-se, inclusive, que nosso país, ao menos nesse ponto, adotou uma política criminal mais condizente com a realidade e respeitadora da autonomia da mulher enquanto pessoa capaz de dirigir sua própria vida, sem abandonar o intuito protetivo. Enfim, o Brasil adota um sistema de proteção e não de tutela da mulher pelo sistema, reconhecendo sua dignidade sob os mais variados ângulos. O mesmo se pode dizer do homem, inicialmente agressor e submetido a uma medida protetiva de afastamento, o qual somente retorna em aproximação porque é permitido pela pessoa que, num primeiro momento, havia pedido seu afastamento. Não parece correto realmente que o Estado se imiscua em questões existenciais de tal jaez, pois que tal intromissão seria típica de um paternalismo injustificável em relação a pessoas humanas capazes.

Agora, com relação às medidas protetivas deferidas nos termos da Lei Henry Borel, o mesmo raciocínio não se aplica. Isso porque não se está tratando com mulheres adultas e capazes, mas com crianças e adolescentes. Nesse passo, a manifestação de vontade dessas pessoas não é relevante, de modo que toda a responsabilidade cabe ao suposto agressor que recebeu a medida restritiva. Observe-se que, como já se disse no início deste texto, no caso das crianças e adolescentes, diversamente das mulheres adultas, o pedido de medida não é feito diretamente pela vítima, mas por terceiros (vide a diferença entre o artigo 18 da Lei 11.340/06 e o artigo 16 da Lei 14.344/22). Na verdade, no caso de crianças e adolescentes, tudo se opera como excepcionalmente ocorre na forma do artigo 19 da Lei Maria da Penha, quando as medidas protetivas são requeridas e deferidas independentemente do pedido direto da vítima. Como visto, nesses casos, até mesmo em se tratando de mulheres capazes, não tem relevância o consentimento da vítima quanto ao descumprimento. Mesmo o representante legal ou responsável pelo menor não parece poder abrir mão da medida a seu bel prazer. Este também recebe uma “responsabilidade” perante a integridade física e psíquica do menor, de modo que em estando vigente a medida protetiva, não lhe cabe permitir sua infração pelo alegado agressor. Ao reverso, parece que embora o crime de descumprimento de medida seja de mão própria, o responsável legal não podendo figurar como coautor, poderá, por outro lado, responder em concurso de pessoas como partícipe (inteligência do artigo 29, CP). Malgrado não exista no Brasil a figura acima mencionada do “quebrantamiento de condena” do Direito Comparado (Espanha), a situação do representante legal ou responsável será em tudo similar. No caso das crianças e adolescentes a única via para afastar o descumprimento da medida é a situação em que o Juiz a tenha revogado (inteligência dos artigos 16, § 3º. e 17, Parágrafo Único da Lei 14.344/22).

 

 

 

 

4.2-OMISSÃO DE COMUNICAÇÃO DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA CRIANÇAS E ADOLESCENTES ÀS AUTORIDADES PÚBLICAS

 

O artigo 26 da Lei 14.344/22 erige em crime a conduta de não comunicar às autoridades públicas a prática de violência, de tratamento cruel ou degradante ou de formas violentas de educação, correção ou disciplina contra crianças ou adolescente, bem como casos de “Abandono de Incapaz” (vide também artigo 133, CP).

Trata-se de crime “omissivo próprio”, pois a conduta configura uma inação, um não fazer. Isso significa dizer que não é possível a tentativa do crime previsto no artigo 26 da Lei Henry Borel, já que crimes omissivos próprios não admitem nunca a forma tentada.

O elemento subjetivo se reduz ao dolo, não havendo previsão de figura culposa eventualmente marcada pela negligência. Parece possível afirmar que dolo pode ser direto ou eventual, vez que é admissível teoricamente que a pessoa se omita sob o pretexto de que outros fariam talvez a comunicação. No entanto, quando alguém fizer a comunicação, sabendo disso o suposto omitente, não haverá crime, pois não há que se exigir uma espécie de corrida ou competição para ver quem comunica primeiro as autoridades.  

Fazendo a lei menção ao termo “Autoridade Pública” de forma genérica, a comunicação feita a qualquer autoridade com atribuição ou competência para apurar e reprimir o abuso doméstico e familiar de crianças e adolescentes, servirá como cumprimento da obrigação legal imposta pelo tipo penal em estudo (v.g. Delegado de Polícia, Policiais em Geral, Ministério Público, Judiciário, Conselho Tutelar etc.). Entendemos que também a comunicação a algum órgão público ou privado que trate da questão de abuso infanto – juvenil e que se encarrega de acionar as autoridades, afasta a omissão criminosa. Por exemplo, uma pessoa que presencia abuso intrafamiliar de uma criança e comunica o fato a uma ONG ou ao Conselho Comunitário de Segurança (CONSEG), entidades voltadas para os direitos das crianças e adolescentes e questões de segurança pública em geral, na crença de que tal organização levará o fato ao conhecimento das autoridades. Nessa situação, a pessoa que fez a comunicação à ONG ou ao CONSEG não se omitiu. Poderá praticar o crime o responsável pela ONG ou pelo CONSEG que não venha a repassar a informação às autoridades públicas.

Pode parecer que o legislador foi omisso com a imposição de comunicação do crime de “Exposição ou Abandono de recém – nascido” (artigo 134, CP), enquanto fez expressa alusão ao artigo 133, CP (“Abandono de Incapaz”). No entanto, tal impressão é falsa. Acontece que tanto o caso de “Exposição ou Abandono de recém - nascido” (artigo 134, CP) como também o do não mencionado crime de “Maus – Tratos” (artigo 136, CP) estão claramente abrangidos, o primeiro na menção de “tratamento cruel ou degradante” e o segundo tanto nessas expressões legais como na alusão a “formas violentas de educação, correção ou disciplina” contra crianças ou adolescentes. O destaque dado ao crime de “Abandono de Incapaz” (artigo 133, CP), se opera porque, diversamente dos dois anteriores, que têm como vítimas normalmente crianças e adolescentes, se volta não somente para a categoria das pessoas em idade infanto – juvenil, mas pode abranger pessoas maiores incapazes por outros motivos que não a questão etária (doentes, idosos, incapazes por deficiência ou doença mental etc.). Como a lei é especificamente voltada para crianças e adolescentes, pretendendo o legislador alcançar, neste caso, a obrigação de comunicação também com relação a outros incapazes, achou por bem, a nosso ver corretamente, fazer a menção separada e específica ao “Abandono de Incapaz” (artigo 133, CP), pois que, sem tal alusão direta, poderia haver dúvidas quanto à aplicação do artigo 26 da Lei 14.344/22 a casos de “Abandono de Incapaz” que não envolvessem menores, problema este afastado pela redação clara do tipo penal, a qual não deixa margem a dúvidas. Com esse procedimento privilegiou corretamente o legislador uma descrição semanticamente bem determinada do tipo penal, garantindo a necessária segurança jurídica e respeito ao Princípio da Legalidade Estrita.

Outra falsa impressão que se pode ter a respeito do artigo 26 da Lei 14.344/22 é que se trataria de crime próprio de agentes públicos (crime funcional). Não se trata de crime próprio, mas de crime comum, seja porque a lei não descreve nenhuma especial qualidade do sujeito ativo, nem mesmo sua condição de agente público, seja porque o crime em questão deve ser interpretado de forma sistemática com o artigo 23 do mesmo diploma, o qual estabelece o “dever” de “qualquer pessoa” de comunicar os serviços públicos a respeito de abusos domésticos ou familiares contra crianças e adolescentes. Se o dever de comunicação imposto pela lei é dirigido a qualquer pessoa não seria coerente que o crime omissivo em estudo somente se aplicasse a alguma categoria especial de indivíduos.

Mas, e se for exatamente um agente público que se omite em comunicar às autoridades o abuso doméstico e familiar de crianças e adolescentes? Nesses casos pode parecer que haveria um conflito aparente de normas entre o artigo 26 da Lei 14.344/22 e o crime de “Prevaricação” (artigo 319, CP). Esse conflito aparente de normas seria solvido pelo “Princípio da Especialidade”, de modo que o agente público também deveria responder pelo delito previsto na legislação extravagante ou esparsa, qual seja, o descrito no artigo 26 da Lei Henry Borel, afastando-se o ilícito penal de “Prevaricação”.  Não obstante, essa é uma falsa impressão. Acontece que se o agente público em questão for daqueles que não têm obrigação de apurar, reprimir ou prevenir crimes (v.g. um auxiliar de escritório da Prefeitura, um fiscal de tributos etc.), estaria equiparado para todos os fins com o particular, já que não é parte de sua atribuição a atuação criminal. Assim sendo responderia pelo artigo 26 da Lei Henry Borel, como “qualquer pessoa”, como um particular e não por força de especialidade. Por outro lado, se for o caso de um agente público que tem o dever de atuar na área criminal (v.g. Policiais, Delegados de Polícia, Promotores de Justiça, Juízes de Direito, Conselheiros Tutelares etc.), não tem cabimento a aplicação do verbo “comunicar”, já que a “autoridade pública” é o próprio agente. Ele não precisa “comunicar” ninguém, tem é que agir no cumprimento de suas funções. O máximo que pode precisar fazer é pedir algum reforço ou apoio (v.g. Conselheiro Tutelar que pede apoio policial ou mesmo policial que pede reforço para intervir em uma dada situação). Significa dizer que o tipo penal do artigo 26 em estudo é evidentemente dirigido a particulares ou servidores públicos que não têm por competência ou atribuição a intervenção em situações de crimes contra crianças e adolescentes ou de infrações penais em geral. Mas, então se esse agente público que tem competência ou atribuição para atuar for omisso, não há responsabilização penal? Sim, há, pois a atipicidade do artigo 26 em destaque é relativa, restando a configuração de delito de “Prevaricação” (artigo 319, CP), desde que satisfeito seu elemento subjetivo específico. Mas, não existe também aqui nenhum “conflito aparente de normas”. Apenas a aplicação do tipo penal adequado para cada caso concreto.

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A solução legal é essa, mas não deixa de ser violador da proporcionalidade que a inação de um particular nessas circunstâncias da violência doméstica e familiar contra menores tenha pena prevista bem maior do que aquela voltada à inação do agente público que, aliás, não é afeto ao dever de apenas comunicar, mas de reprimir a prática. O crime da Lei Henry Borel tem pena bem maior do que o de “Prevaricação”, previsto no Código Penal. Melhor seria criar um parágrafo no crime de “Prevaricação” (artigo 319, CP) com uma qualificadora com pena ligeiramente maior que a do artigo 26 da Lei 14.344/22 quando a omissão do agente público fosse ligada às situações de abuso de menores em violência doméstica e familiar, ou mesmo prever, no corpo da Lei Henry Borel, um crime especial para o agente público omitente de seus deveres, o qual, aí então, prevaleceria, por especialidade em relação à “Prevaricação”. Contudo, essas são propostas de “lege ferenda”.

Outro suposto conflito aparente de normas pode surgir quando a criança ou adolescente for vítima de violência doméstica e familiar consistente na prática, por exemplo, da chamada “Tortura – Castigo” (artigo 1º., II, da Lei 9.455/97), omitindo-se, não um particular, mas um agente público que tenha o dever de evitar ou apurar esse ilícito. Nesse caso, há previsão de outro crime omissivo na Lei de Tortura (artigo 1º., § 2º., da Lei 9.455/97 – “Omissão Perante a Tortura”). Este crime específico da Lei de Tortura deve então prevalecer diante do artigo 26 da Lei 14.344/22 novamente não por aplicação do “Princípio da Especialidade, mas porque é o tipo penal adequado ao agente público encarregado de prevenir ou apurar a prática de tortura. Novamente, sendo ele a própria “autoridade pública” seria impossível que fizesse uma “comunicação” do caso a si mesmo! Observe-se que não responde por “Prevaricação” (artigo 319, CP) porque aí sim existe conflito aparente de normas solvido pelo “Princípio da Especialidade”, prevalecendo a norma especial da Lei de Tortura sobre a geral do Código Penal. Também não se altera a conclusão se o agente público é daqueles que não têm o dever de apurar ou prevenir a tortura. Este será considerado em equiparação a um particular, respondendo então pelo artigo 26 da Lei Henry Borel, mas não por especialidade e sim pela correta adequação típica ao caso concreto.

Aproveitando esse gancho a respeito das obrigações de agentes públicos em contraste com os particulares, importa deixar claro que a previsão do artigo 26 da Lei 14.344/22 não altera em nada o regramento do chamado flagrante obrigatório ou compulsório e do denominado flagrante facultativo, nos estritos termos do artigo 301, CPP. Continua valendo a obrigação das autoridades policiais e seus agentes de prender em flagrante, enquanto aos particulares e mesmo autoridades não policiais (qualquer do povo) é disposta uma faculdade de prender quem se ache em estado flagrancial. O artigo 26 da Lei Henry Borel não exige que a pessoa efetue a Prisão em Flagrante, mas tão somente que faça a devida comunicação às autoridades públicas. Exemplificando:

a)Um particular presencia, em situação flagrancial, uma mãe que está perpetrando maus – tratos contra seu filho de 5 anos de idade. Tal pessoa não prende a mulher, mas aciona a Polícia Militar ou Civil, comunicando o fato. Não incide em crime algum, pois que não tinha o dever de prender, mas apenas a faculdade. Quanto à sua obrigação de comunicação, a cumpriu a contento. Agora se não efetuar a prisão e também não comunicar as autoridades, responderá pelo crime do artigo 26 da Lei 14.344/22, não porque deixou de efetuar a prisão (pois era facultativa), mas pela omissão na comunicação (legalmente obrigatória por inteligência do artigo 23 c/c 26 da Lei Henry Borel).  

b)Um Policial Militar presencia o mesmo quadro em situação de flagrância e nada faz. Comete crime de Prevaricação (artigo 319, CP). Não há responsabilização pelo artigo 26 da Lei 14.344/22 pelos motivos já explicados. O mesmo se diga quanto à solução se a situação for de omissão perante a tortura. O Policial deve responder pelo crime especial da Lei de Tortura (artigo 1º., § 2º., da Lei 9.455/97), e não pelo artigo 26 da Lei 14.344/22 e nem por “Prevaricação” (artigo 319, CP) devido a não Prisão em Flagrante que seria obrigatória. No primeiro caso por adequação típica do caso concreto, no segundo porque no conflito aparente, afasta-se a “Prevaricação” que é norma geral por força do “Princípio da Especialidade”.

Aspecto também relevante é aquele referente ao abusador que não comunica os próprios abusos às autoridades públicas, assim como seus coautores ou partícipes. Obviamente não responderão eles pelos crimes perpetrados (v.g. lesões corporais, maus – tratos, tortura – castigo etc.) em concurso com o artigo 26 da Lei 14.344/22, mas tão somente pelos primeiros. Isso porque a obrigação de comunicação não pode alcançá-los dado o impedimento ocasionado pelo “direito a não – autoincriminação” e de “não produzir prova contra si mesmo”. Note-se que o simples omitente de comunicação que não é coautor ou partícipe de abusos, responde somente pelo crime omissivo do artigo 26 da Lei 14.344/06, não havendo falar em concurso de agentes ou de infrações.  

A pena prevista no preceito secundário do artigo 26 da Lei Henry Borel é de “detenção, de seis meses a 3 anos”, de forma que não pode haver aplicação da Lei 9.099/95, a uma porque não se trata de infração de menor potencial, sendo a pena máxima abstratamente cominada maior do que 2 anos (inteligência do artigo 61 da Lei 9.099/95). A duas, porque nenhum benefício da Lei 9.099/95 será acessível ao infrator de crimes correlatos à violência doméstica e familiar de menores, por força do disposto no artigo 226, § 1º., da Lei 8.069/90 (ECA) com a nova redação dada pela Lei 14.344/22. Pode-se alegar que o crime é omissivo e contra a administração da justiça, mas é preciso lembrar que tal qual ocorre com o artigo 25 do mesmo diploma, essa omissão é também perpetrada em prejuízo das crianças e adolescentes vitimizados, de forma que deve ser abrangida pela vedação de benesses do artigo 226, § 1º., do ECA. Note-se que o sujeito passivo do crime do artigo 26 em estudo é diretamente a administração da justiça e indiretamente (o que não redunda em menor relevância) as crianças e adolescentes vítimas de violência doméstica e familiar em cada circunstância concreta. A mesma solução deve ser aplicada (vedação de quaisquer benefícios da Lei 9.099/95) aos casos de “Prevaricação” e “Omissão Perante a Tortura”, nos casos dos agentes públicos omissos, vez que tais infrações também serão não só contra a administração da justiça, mas contra as crianças e adolescentes, nos estritos termos do artigo 226, § 1º., do ECA, desde que o abuso se tenha perpetrado em situação de violência doméstica e familiar contra os menores.

Apenas uma ressalva deve ser feita em relação ao artigo 26 da Lei 14.344/22, a qual não precisou ser levada a termo com relação ao artigo 25 do mesmo diploma. Acontece que o artigo 26 não tem por vítimas indiretas somente crianças e adolescentes, como ocorre no artigo 25. Pode acontecer que incapazes por questões não etárias (ou seja, incapazes que são maiores) sejam as vítimas indiretas da falta de comunicação no caso em que o que chegou ao conhecimento do omitente foi uma conduta de “Abandono de Incapaz” que envolva maiores vitimizados. Nessa situação também não se tratará de infração de menor potencial, eis que a pena não se altera e continua tendo seu máximo abstratamente cominado acima de 2 anos. Não se podem aplicar, da mesma forma, os benefícios atinentes a infrações de menor potencial (v.g. Termo Circunstanciado, vedação de prisão em flagrante, Transação Penal etc.). Contudo, como o artigo 226, § 1º., do ECA somente impede a aplicação dos benefícios da Lei 9.099/95 para crimes perpetrados “contra criança e adolescente”, não sendo o incapaz nem criança nem adolescente, outros dispositivos da Lei 9.099/95 que são aplicáveis a infrações de médio potencial poderão alcançar o infrator, como, por exemplo, o instituto da “Suspensão Condicional do Processo”, conforme disposto no artigo 89 da Lei 9.099/95, uma vez que a pena mínima abstratamente prevista é menor que 1 ano. Acrescente-se que a própria topografia da norma vedadora da Lei 9.099/95 no Estatuto da Criança e do Adolescente e não no corpo da Lei Henry Borel, indica que o impedimento total de aplicação da Lei 9.099/95 somente tem validade para casos que envolvam crianças e adolescentes e não outros incapazes maiores, já que o Estatuto é voltado especificamente para essa categoria de pessoas. Essa questão do “Abandono de Incapazes”, envolvendo maiores pode até ter sido uma das razões pelas quais o legislador optou por incluir a norma vedadora da Lei 9.099/95 no ECA e não na própria Lei Henry Borel.

Há previsão no § 1º. do artigo 26 de uma causa de aumento de pena da ordem da metade se, devido à omissão, resultar à vítima lesão corporal de natureza grave ou gravíssima e da ordem do triplo, se resultar morte. A letra da lei se refere expressamente somente às lesões “graves”, mas é sabido que a menção das lesões “graves” em textos legais abrange necessariamente as lesões “graves” e “gravíssimas”, mesmo porque o “nomen juris” utilizado no Código Penal é somente o de “lesões graves”, sendo o termo “lesões gravíssimas” cunhado pela doutrina, jurisprudência e praxe policial e forense (vide artigo 129, §§ 1º. e 2º., CP). Ademais, seria vulnerar abertamente a proporcionalidade qualificar um crime por lesões graves e não qualificá-lo por lesões gravíssimas. Esses aumentos são aplicáveis sejam as vítimas crianças e adolescentes ou mesmo outros incapazes, no caso específico da omissão de comunicação de “Abandono de Incapaz” (artigo 133, CP).

A nosso ver, a redação dessas causas de aumento de pena poderia ser melhor e pouparia os aplicadores da lei de enormes esforços para a comprovação de nexo de causalidade entre a omissão de comunicação e os resultados mais gravosos. A lei deveria ter se referido ao aumento em face dos resultados lesões graves ou morte, não condicionando o incremento punitivo ao nexo de causalidade entre tais resultados e a omissão. Veja-se que a lei estabelece os aumentos “se da omissão resulta” e não simplesmente “se resulta”. E a melhor redação seria a segunda.

Entretanto, “legem habemus” e caberá à acusação a espinhosa missão de comprovar nexo de causalidade entre uma conduta omissiva e resultados mais gravosos ulteriores. Dessa forma, é possível prognosticar que em muitos, certamente na maioria senão na totalidade dos casos, os aumentos de pena serão afastados por falta de comprovação de nexo causal, já que é muito difícil, senão impossível, fazer prova de que uma “não ação”, uma “inação” provocou algum resultado naturalístico. Essa é a espécie de ônus probatório que se costuma chamar de “Prova Diabólica” (“Probatio Diabolica” ou “Devil’s Proof”), fazendo-se referência a uma categoria de prova impossível ou descomedidamente difícil de ser levada a cabo, sendo exemplo correlato a prova de fato negativo. [19]

É claro que se pode sempre acenar com o fato de que nos crimes omissivos próprios o nexo entre o “não fazer” e o resultado não é propriamente “de causalidade”, mas meramente “normativo ou jurídico”. Dessa forma, “a lei pune a inação” e o indivíduo é apenado por “não ter atuado na forma determinada”. O nexo normativo surge para criar um “elo entre a conduta omissiva e a omissão tipificada”. Para a punição bastará a existência de um tipo penal que puna a inação e que essa abstenção aconteça por parte do envolvido. Entretanto, quando há majorantes ou qualificadoras em razão do resultado mais gravoso, dependentes, portanto, de “resultados naturalísticos”, havendo a exigência de nexo causal (“se da omissão resulta”) expressa na lei, não há como fugir do ônus probatório desse nexo, agora não meramente normativo ou jurídico, mas efetivamente causal. Significa dizer que mesmo diante de um crime omissivo próprio, cuja consumação ocorre com a singela inação, torna-se indispensável que “se analise a relação de causalidade”. Será indispensável a indagação sobre se  a ação omitida (normativamente punível), acaso não omitida, teria evitado o resultado mais gravoso que majora ou qualifica o crime. Os crimes omissivos próprios são delitos de “mera conduta” e, por isso, lhes basta o nexo normativo ou jurídico. Mas, quando se trata de resultado naturalístico agravador (“resultado material”) não é possível afastar a necessidade de comprovação de “relação de causalidade (de não impedimento) entre a omissão e o resultado ocorrido”, a fim de tornar legítimo o incremento punitivo, “nos limites de um direito penal da culpabilidade” [20] ou da “responsabilidade subjetiva”, já que não se pode imaginar na atualidade uma situação de admissão de “responsabilidade objetiva” no campo criminal (inteligência do artigo 19, CP).

Outra causa de aumento de pena é prevista no artigo 26, § 2º., da Lei 14.344/22, tendo em vista a qualidade especial do autor do delito omissivo. A pena será aplicada em dobro se o crime for praticado por ascendente, parente consanguíneo até o terceiro grau, responsável legal, tutor, guardião, padrasto ou madrasta da vítima. A presença dessa causa de aumento pode bem se compatibilizar com as do § 1º., não sendo impossível sua cumulação, já que o § 2º., dada sua topografia, pode aplicar-se a tudo que lhe antecede. Porém, normalmente, em havendo mais de uma causa de aumento, o juiz poderá (e geralmente o faz) optar pela aplicação somente da causa de maior incremento punitivo, nos termos do disposto no artigo 68, Parágrafo Único, CP.

Quando a lei menciona “ascendente” sem qualquer qualificação, significa que o parentesco pode ser consanguíneo ou legal (v.g. pai ou mãe adotivos). Já no que tange aos parentes até o terceiro grau, o legislador, a nosso ver indevidamente, restringe o aumento aos consanguíneos. Há aqui uma inconstitucionalidade por insuficiência protetiva. O aumento deveria alcançar parentes até o terceiro grau, independentemente de consanguinidade, já que tanto a Constituição Federal (artigo 227, § 6º., CF) como o Código Civil e o ECA (respectivamente artigos 1593 c/c 1596, CC e artigo 41, ECA) não permitem distinções ou discriminações negativas. [21] No entanto, enquanto o legislador não consertar essa impropriedade, a majoração não será exequível com relação a parentes até o terceiro grau não consanguíneos, pois que se trataria de analogia “in mallam partem” e violação do Princípio da Legalidade, configurando, agora, uma inconstitucionalidade por excesso.

A presença dessa causa de aumento de pena reforça a condição de crime comum do ilícito em estudo. Veja-se que não só não se trata de delito funcional, como também não exige liame de parentesco, afeto, responsabilidade, guarda etc. entre sujeitos ativo e passivo. Quando isso ocorre, incide o autor em figura criminal majorada.  [22]

Poderia causar perplexidade a falta de previsão desse aumento para os agentes públicos omissos. Mas, não há motivo algum para estranhar. Como visto, o crime é comum e, para além disso, o agente público que poderia, em tese, ter a pena aumentada, seria aquele com dever de apuração, repressão e/ou prevenção dessa espécie de ilícito. Nesses casos, o tipo penal do artigo 26 é inaplicável, já que se refere à comunicação à autoridade pública e seria impossível haver tal comunicação, vez que o próprio agente é a autoridade que deve ser comunicada. Acaso o autor seja um agente público, mas que não tem esse dever de apuração, repressão e/ou prevenção, então se torna equiparado ao particular, incidindo no artigo 26, com as causas de aumento ali previstas, obviamente se vier a se enquadrar em alguma delas. Já o agente público detentor de especiais deveres relativos aos ilícitos, ao se omitir, pode incorrer em crimes específicos, tais como “Prevaricação” ou “Omissão Perante a Tortura”, conforme já demonstrado.  

O aumento de pena da ordem do dobro se justifica no caso das pessoas arroladas, dada seu encargo de especial responsabilidade e cuidado para com as crianças e adolescentes com que se relacionam. Se qualquer do povo tem a obrigação de comunicar atos de abuso doméstico e familiar contra menores, esse dever de cuidado e proteção para com as crianças e adolescentes certamente se agiganta quando se tratam das pessoas ali mencionadas, de modo que o desvalor da conduta justifica a exacerbação punitiva.  

É preciso na casuística concreta verificar se é realmente aplicável o crime omissivo do artigo 26 da  Lei 14.344/22 na sua forma majorada de acordo com seu § 2º., ou se tais pessoas devem responder pelos crimes de abuso de menores (v.g. lesões corporais, tortura – castigo, maus – tratos, crimes sexuais etc.) seja diretamente, seja em concurso de agentes na forma de coautoria ou participação. Especial cuidado deve ter o aplicador da lei, principalmente, com a distinção da mera omissão, ainda que majorada, dos casos de participação criminosa (auxílio, instigação ou induzimento), o que no dia a dia prático nem sempre será de fácil deslinde.

Novamente a causa de aumento de pena em estudo poderá ser aplicada tanto para os casos que envolvem vítimas crianças e adolescentes, quanto para as situações de “Abandono de Incapaz” nas quais o abandonado não é menor, mas sua incapacidade decorre de outros motivos (v.g. doença mental, doença física, deficiências em geral, idade muito avançada com sequelas do tempo etc.).

 

4.2.1-PROTEÇÃO DO DENUNCIANTE OU NOTICIANTE DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A CRIANÇA OU ADOLESCENTE

 

Como já mencionado, o artigo 23 da Lei 14.344/22 cria um “dever” para todas as pessoas de comunicar o fato aos canais competentes para as devidas providências, o que fundamenta o próprio tipo penal do artigo 26 do mesmo diploma numa relação sistemática e até simbiótica.

Impondo o Estado um dever legal de notícia ou denúncia de violência, não poderia deixar os particulares sem uma devida previsão de medidas de proteção. Os comentários a essas medidas são aqui feitos e não juntamente com as medidas protetivas voltadas para o agressor e para a vítima, tendo em vista considerar-se que o artigo 23 e o Capítulo VI da Lei Henry Borel em geral devem ser estudados em conjunto com o artigo 26 ora enfocado para melhor compreensão sistemática da legislação.

O artigo 24 do diploma legal em estudo estabelece que poder público deverá garantir medidas e ações para a proteção e mesmo a compensação de toda pessoa que noticiar informações ou denunciar a prática de violência, de tratamento cruel ou degradante. Tais medidas e ações são de atribuição concorrente da União, Estados e Municípios, conforme estabelecido no § 1º. do mesmo dispositivo. O § 1º. é mais amplo em relação aos beneficiários, pois o “caput” cita apenas os noticiantes e denunciantes, já o parágrafo em questão acrescenta também as vítimas e testemunhas. É de se concluir, portanto, que a norma protetiva mais abrangente deve prevalecer, podendo ser beneficiárias as vítimas, as testemunhas, os denunciantes e os noticiantes.

Ao noticiante ou denunciante é dado o direito de requerer prestar informações diretamente à Autoridade Policial (neste caso em sentido estrito – Delegado de Polícia), ao Conselho Tutelar, ao Ministério Público (no caso o Promotor) ou ao Juiz (artigo 24, § 2º.). Entende-se que no caso da Autoridade Policial se trata especificamente da figura do Delegado de Polícia, assim como no caso do Ministério Público do Promotor e não outro atendente, porque em caso contrário não seria necessária norma legal estabelecendo o direito de alguém de contatar com qualquer funcionário desses órgãos (v.g. PMs, Oficiais de Promotoria, Escrivães de Polícia, Investigadores etc.). Parece que o legislador pretende conceder o direito da pessoa contatar diretamente a autoridade responsável pela direção das apurações e não qualquer funcionário. Na verdade, mesmo esse direito parece já decorrer dos princípios que regem a administração pública em sua relação com os cidadãos, não havendo motivo para que um Delegado, um Promotor ou um Juiz de Direito se negue a atender quem quer que seja. Fato é que eventualmente existem autoridades que criam barreiras indevidas ao seu acesso, chegando a bloquear até mesmo advogados, violando prerrogativas profissionais, o que doravante se torna ainda mais flagrantemente uma espécie de atuação ímproba e abusiva.

Também poderá o noticiante ou denunciante condicionar a revelação de informação à adoção de medidas de proteção que garantam sua integridade física e psicológica (artigo 24, § 3º.). Observe-se então, que no caso de a pessoa se negar a prestar informações não proporcionando as autoridades a devida proteção requerida, desnatura-se eventual configuração do crime omissivo previsto no artigo 26 do mesmo diploma. Trata-se claramente de um caso de inexigibilidade de conduta diversa e exercício regular de direito legalmente previsto. Se o Estado não cumpre sua obrigação de proteção, não pode pretender vincular o cidadão mediante norma penal cogente, o que seria iníquo e até mesmo perverso. Não é preciso dizer que a vítima é dotada de todo um arcabouço protetivo, sendo apenas por esta razão que não é mencionada no § 3º. em estudo. A proteção das vítimas crianças e adolescentes é o espírito fundante tanto da Lei Henry Borel (Lei 14.344/22) quanto da Lei 13.431/17, as quais devem ser sistematicamente interpretadas e aplicadas (inteligência dos artigos 1º., 2º., Parágrafo Único, 12, 21, §1º., e 33, todos da Lei 14.344/22). Isso sem olvidar os artigos 227, §4º., e 226, § 8º., da CF, tratados, convenções e acordos internacionais e o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/90), bem como a integração subsidiária da Lei Maria da Penha (Lei 11.340/06) (inteligência dos artigos 1º., e 33 da Lei 14.344/22). Por derradeiro há que salientar que embora as testemunhas também possam ser beneficiadas pela proteção erigida pelo artigo 24 da Lei Henry Borel, não poderão se negar a depor, pois que se trata de obrigação incontornável, configurando a omissão de informações crime de “Falso Testemunho” “omissivo” [23] ou “reticente” [24] (“calar a verdade” – artigo 342, CP).  

O estabelecimento de medidas de proteção visa certamente tornar concreta a norma prevista no § 4º., do mesmo artigo 24, que diz que “ninguém será submetido a retaliação, a represália, a discriminação ou a punição pelo fato ou sob o fundamento de ter reportado ou denunciado” casos de violência doméstica e familiar contra crianças e adolescentes. Frise-se, contudo, que esse § 4º., não se constitui numa espécie de salvo – conduto para a irresponsabilidade, perversidade ou leviandade na formulação de denúncias ou “notitia criminis”, bem como na prestação de depoimentos oficiais. O § 4º., somente se aplica a reações ilegais e não à punição legalmente prevista para crimes como “Denunciação Caluniosa” (artigo 339, CP) e “Falso Testemunho ou Falsa Perícia” (artigo 342, CP). Obviamente a lei não pode pretender tutelar um denuncismo irracional e pervertido, assim como, principalmente, não pode a lei conceder amparo a atos ilícitos ou mesmo imorais de qualquer natureza.

Também após a prestação das informações, o denunciante ou noticiante que for submetido a qualquer espécie de coação, violência ou ameaça poderá se valer da lei de proteção a vítimas, testemunhas e réus colaboradores (Lei 9.807/99). Embora o § 5º., do artigo 24 somente faça referência ao denunciante ou noticiante, é claro, até pelo conteúdo da Lei 9.807/99, que a mesma tutela é reservada às vítimas e testemunhas e, até mesmo, em casos específicos de colaboração premiada, a réus ou indiciados colaboradores. Como acima mencionado, embora a lei cite somente a “coação” ou a “exposição a grave ameaça”, por obviedade também justificará a proteção especial ali prevista a submissão do denunciante ou noticiante, vítima, testemunha ou réu colaborador, nos casos de violência, a qual certamente está contida no vocábulo “coação”. Interpretação restritiva que pretenda afastar a proteção em casos de violência, devido à falta de menção expressa, seria irrazoável e desproporcional. Em havendo urgência devidamente justificada, o Juiz poderá conceder a proteção inclusive de ofício, dispensando-se a oitiva preliminar do Ministério Público, mantendo o beneficiário provisoriamente sob proteção policial até a deliberação formal por sua inclusão no programa de proteção (artigo 24, § 8º.). Acaso o magistrado não atue de ofício em casos que tais, é também legitimado a requerer a providência o Ministério Público, assim como, embora no silêncio da lei (§ 8º.), poderá fazer representação neste sentido o Delegado de Polícia ou requerer o beneficiário diretamente a providência por si mesmo ou mediante seu advogado constituído ou dativo (inteligência do artigo 24, § 9º., da Lei 14.344/22).

O § 6º., estabelece que o Ministério Público deve manifestar-se sobre a concessão de medidas protetivas enfocadas, bem como as requerer ao juízo no caso de considerar sua necessidade. Isso não significa que o Ministério Público detenha o monopólio do pedido dessas medidas. Não há que afastar a possibilidade das pessoas fazerem requerimentos diretamente ou por meio de defensor constituído ou dativo ou também que a Autoridade Policial (Delegado de Polícia), na fase de inquérito, formule representação ao juízo. Em qualquer caso, porém, o Ministério Público deverá opinar. Também é importante destacar que a opinião negativa do Ministério Público, assim como o seu requerimento ou opinião positiva não vinculam o Juiz, que deve sempre decidir de forma autônoma e fundamentada. Ademais, pode o Juiz atuar de ofício, por requerimento Ministerial, representação da Autoridade Policial, do Conselho Tutelar ou órgão deliberativo, sempre que entender necessárias medidas protetivas direta ou indiretamente relacionadas com a efetividade da tutela das pessoas (vide artigo 24, § 9º., da Lei 14.344/22).

O § 7º. estabelece que as medidas protetivas devem ser deferidas tendo em conta a proporcionalidade, necessidade e adequação ao caso concreto, considerando a gravidade e iminência de dano, ameaça ou coação à integridade física ou psicológica das pessoas envolvidas. Também deixa claro que as medidas de proteção devem ser conferidas como “ultima ratio”, ou seja, somente quando houver dificuldade de prevenção ou repressão pelos meios convencionais. Note-se que a lei fala em “dificuldade” e não “impossibilidade”, de modo que a mera existência de meios convencionais de “per si” não afasta a possibilidade de concessão da proteção. A avaliação judicial não será feita tendo por baliza somente a existência de outros meios, mas mediante a ponderação da eficácia dos meios convencionais e das medidas de proteção, escolhendo aquilo que confira maior garantia aos envolvidos. Também deverá o magistrado levar em consideração a importância das medidas para a produção da prova. Essa relevância para a produção da prova não pode jamais ser considerada de forma estanque ou apartada dos elementos humanitários de solidariedade e garantia da integridade física, psicológica e até da vida dos envolvidos. Estes últimos valores ou interesses são primordiais e não podem ser submetidos por alguma espécie de cálculo de custo benefício orientado por critérios meramente utilitários. A pessoa humana deve ser invariavelmente tomada como fim em si mesma e não como instrumento ou meio para qualquer finalidade alheia. [25]

 Vale salientar que quando se trata de “compensação” conferida a denunciantes ou noticiantes abre-se a possibilidade de estabelecimento de “recompensas”. No entanto, essa compensação deve voltar-se, em regra, tão somente à indenização relativa a danos materiais e morais suportados em razão da denúncia ou notícia, não se conformando como uma hipótese de enriquecimento ou acréscimo patrimonial. O estabelecimento de recompensas somente deve ser utilizado com muita parcimônia e ponderação para casos de extrema necessidade e gravidade, tais como sequestros, desaparecimentos etc. Isso porque a banalização de recompensas por denúncias ou notícias de violência contra crianças e adolescentes pode fomentar um indesejável e deletério denuncismo movido tão somente pela cupidez ou ganância e, portanto, altamente não confiável e potencialmente induzidor de denunciações caluniosas.

Por derradeiro cabe um esclarecimento acerca de uma dúvida que pode surgir. No Capítulo VI da Lei 14.344/22 (artigo 23 e artigo 24, §§ 1º. a 9º.), fala-se muito de “medidas e ações para a proteção” do noticiante, do denunciante e de testemunhas, mas em momento algum são arroladas quais seriam essas medidas. Pode parecer então que faltaria tipicidade processual para a decretação dessas medidas protetivas. Isso é, porém, um erro interpretativo. A Lei 14.344/22 não é lacunosa. Na verdade, as medidas de proteção que podem ser tomadas, “mutatis mutandis” com relação a essas pessoas são as mesmas previstas para as vítimas crianças e adolescentes, conforme consta dos artigos 20 e 21 da Lei Henry Borel. Além disso, por integração, podem ser utilizadas as medidas protetivas previstas na Lei Maria da Penha (Lei 11.340/06), bem como aquelas constantes do artigo 319, CPP, afora, como último recurso, a prisão provisória (Prisão Preventiva) do agressor (artigo 17 da Lei 14.344/22). Isso tudo sem olvidar as disposições expressamente mencionadas no artigo 24, § 5º., da Lei Henry Borel, onde se alude à Lei 9.807/99 (Lei de Proteção de vítimas, testemunhas e réus colaboradores). Essa afirmação se faz com base no disposto nos artigos 20, § 1º.; 21§ 2º.; 24, § 5º., e 33 todos da Lei 14.344/22, os quais constituem um arcabouço normativo permissivo da integração da tipicidade processual das medidas protetivas previstas no ordenamento jurídico brasileiro para satisfação dos desideratos da Lei Henry Borel.  

 

4.2.2-FLERTANDO COM O TOTALITARISMO?

 

À primeira vista e sem maiores reflexões, a previsão de um tipo penal incriminador da omissão de comunicação às autoridades de casos de violência doméstica e familiar contra crianças e adolescentes parece ser uma providência adequada.

Como enfatiza Muray, a falta de ponderação nessas circunstâncias obnubila o juízo crítico e muitas vezes “o chamado à delação se faz sem complexos, pois é para o bem de todos, e não gera a menor indignação”. [26] Será realmente um bem ou sequer um mal necessário? O autor usa da ironia para nos convidar a refletir.

Em nossa realidade é preciso notar que o crime é comum, ou seja, voltado não somente para os agentes públicos, mas para qualquer pessoa. Com isso, institui-se uma obrigação de delação nas relações interpessoais horizontais. O quadro é completamente diverso das previsões de crimes omissivos para agentes públicos (crimes próprios e funcionais), tais como a “Prevaricação” (artigo 319, CP), a “Condescendência Criminosa” (artigo 320, CP), a “Omissão Perante a Tortura” (artigo 1º., § 2º., da Lei 9.455/97), entre outros.  

Além do grave perigo dessa espécie de imposição de delação mútua no que se refere a um possível denuncismo irracional, pervertido e leviano que já se mostrou presente em situações semelhantes ao longo da História humana, há que lembrar que o recurso a essa espécie de norma impositiva da delação como forma de controle social, não a agentes públicos somente, mas também aos particulares, tem sido a marca de regimes totalitários ou autocráticos. E certamente já temos em nossa sociedade brasileira uma dose considerável de barbárie, não sendo necessário, de forma alguma, que comecemos a irrigar “com areia nossos desertos interiores”. [27]

E não serve para abrandar a temeridade dessa medida a alegação de que eventuais delatores mendazes poderão ser responsabilizados pelo crime de “Denunciação Caluniosa”, nos termos do artigo 339, CP. Acontece que nesses casos, a ulterior punição do delator e mesmo eventuais indenizações civis, jamais removerão a pecha de uma investigação e/ou processo criminal e muito menos a repercussão midiática que segue inevitavelmente esses episódios. Nem é preciso viajar muito no tempo para recordar do “Caso Escola Base”, passado no Brasil e mesmo não havendo na época norma alguma incentivadora e impositiva de delação. A descoberta da mentira das acusações de abuso infantil não devolveu a dignidade e nem mesmo o patrimônio e os meios de subsistência aos prejudicados. Eles passaram por um processo de “morte social ou civil”, na adequada dicção de Silva, foram “enterrados socialmente”. [28]

Como alerta Bauman, é ilusório acreditar que estamos livres de uma reiteração de regimes totalitários e até genocidas. Os grandes totalitarismos do século XX (Comunismo, Nazismo e Fascismo) se conformaram no seio de uma sociedade de alto grau de civilização e cultura. Olvidar a possibilidade de retorno dessas barbaridades é “sinal de perigosa cegueira, potencialmente suicida”. [29] Afinal, como nos ensina a frase normalmente atribuída a Thomas Jefferson, mas que, na verdade, é encontrável em um discurso de John Philpot Curran, de 1790 e publicado em um livro de título “Speeches on the late very interesting State trials” em 1808, “o preço da liberdade é a eterna vigilância” (“The price of freedom is eternal vigilance”). [30] Mais precisamente assim se manifestou Curran:

“É o destino comum dos indolentes ver seus direitos se tornarem presas dos ativos. A condição sob a qual Deus deu liberdade ao homem é a eterna vigilância; se essa condição for quebrada, a servidão é ao mesmo tempo a consequência de seu crime e a punição de sua culpa”. [31]

A imprescindibilidade dessa constante vigilância é constatável quando se vê um festejado filósofo da atualidade, como Richard Rorty, adepto do relativismo, reduzir a aversão à crueldade e o reconhecimento de uma humanidade comum a meras “contingências históricas”. [32] Não por outra razão, Boudon aponta para um círculo vicioso lógico e mesmo ético (embora coerente) em que acaba se emaranhando Rorty com seu relativismo, ao descambar para a explicação de que “os sentimentos de horror que Auschwitz nos inspira” são mero “produto de um condicionamento histórico”. [33] De forma que se os exércitos nazistas tivessem vencido, o relativismo cultural (culturalismo em suma) nos imporia, sob a pressão dos fatos, a aceitação dos “valores” raciais como “bons”! Apenas olvida Rorty e outros culturalistas relativistas que nesse quadro totalitário do nazismo não existiria espaço para culturalismo nem relatvismo, mas apenas para o absoluto domínio de uma ideologia. E nada disso, imposto de fora, seria fundamento suficiente para justificar racional e espiritualmente coisas como a crueldade ou o racismo, as quais continuariam sendo abjetas e moralmente inadmissíveis e indefensáveis, ainda que essa verdade sobre sua natureza estivesse soterrada por toneladas de violento e opressivo totalitarismo. Não obstante, é visível que há pensadores da atualidade capazes de relativizar a barbárie, ainda que em nome de um exercício intelectual. A verdade é que na suposta “boa intenção” de afastar “ilusões” que a seu ver poderiam colocar em risco a solidariedade humana, acabam pós – modernos como Rorty solapando quaisquer fundamentos que a pudessem sustentar, findando por abrir caminho não só para um retorno da barbárie e para uma espécie de “compreensão” para com os bárbaros que ainda existem no mundo, mas também para a sua normalização.  

Um exemplo pungente da intimidade entre a imposição e o incentivo da delação horizontal na sociedade encontra-se no livro autobiográfico de Ting- Xing Ye, onde a autora narra sua dramática experiência sob o tacão de Mao Tsé – tung e sua inglória “Revolução Cultural” no seio da qual exatamente se “estimulava os jovens a delatar uns aos outros”, eliminando sentimentos de amizade, camaradagem, confiança ou qualquer vínculo humano. [34] Até mesmo os liames familiares foram destruídos por esse regime abjeto. Uma garota chegou a ser escolhida como “modelo” para a juventude porque “havia denunciado toda a família após seu pai ser rotulado de direitista”. [35]

Também Van Coillie descreve bem a imposição da delação sob Mao Tsé – tung:

Si ves u oyes u observas en cualquier compañero un detalle que no sea absolutamente ortodoxo, sea en sus gustos, sea en sus escritos, en sua andares, en el juego, en el trabajo o en su silencio. Denúncialo en seguida! Tienes que traicionar a tu compañero! Si no lo haces, serás tan culpable como él. [36]

E o mesmo Van Coillie noticia fato similar ao narrado por Ting – Xing Ye. A história de um rapaz de vinte anos de idade que acusou o próprio pai idoso de todos os crimes possíveis e imagináveis, levando-o ao cárcere. O ato foi considerado “heroico” pelo sistema, merecendo grandes elogios e sendo o jovem indicado como “modelo” para todos os outros. [37]

Outra obra autobiográfica de autoria de Reinaldo Arenas, perseguido pelo Regime Cubano de Fidel Castro por ser dissidente e homossexual, também chama a atenção para a deterioração humana com vistas à sobrevivência em um regime totalitário, onde a delação faz parte do cotidiano. [38]

Um dos recursos do chamado “Experimento Pitesti” (a tortura como forma de reeducação) que se passou na Romênia, era o denominado “desenmascaramiento interno”, que consistia em delatar os colegas presos e até mesmo funcionários prisionais mais benevolentes. Havia ainda o “desenmascaramiento externo”, quando se exigia a delação de pessoas com que o preso teve contatos anteriores em liberdade. [39]

Na Alemanha nazista os pais já não podiam confiar nem mesmo nos próprios filhos, os quais eram doutrinados nas escolas para que dessem maior relevância à obediência ao Führer do que ao amor ou fidelidade à família. Bartoletti informa que “muitos pais foram presos pela Gestapo, delatados pelos filhos”. Um exemplo apresentado pela autora é o de Water Hess, o qual denunciou que o próprio pai havia alegado que Hitler era um “louco maníaco nazista”. [40] Isso resultou no envio do pai de Hess para um campo de concentração no sul da Alemanha. [41]

Como bem aduz Yutang

O Estado pode facilmente transformar-se em um monstro, como já está acontecendo em alguns países, engolindo a liberdade da palavra do indivíduo, sua liberdade de consciência e de fé religiosa, sua honra pessoal e até a meta última e final da felicidade individual. [42]

E uma das metas dos sistemas totalitários de qualquer orientação (comunismo, nazismo ou fascismo) é a eliminação da “afeição e da lealdade familiares”, as quais são censuradas como sentimentos burgueses que não merecem outro destino senão a extinção. [43] Dentre os instrumentos para a destruição desses laços naturais execrados pelos regimes totalitários está exatamente a cultura da delação, razão pela qual todo cuidado é pouco ao deliberar-se pela inoculação desse instituto na sociedade pela via do Direito.

Por outro lado, a violência doméstica e familiar contra crianças e adolescentes é um problema gravíssimo e suas vítimas normalmente não têm muitos recursos de defesa ou mesmo denúncia, vivem como reféns, muitas vezes até um desfecho fatal, sendo que também com frequência pessoas próximas sabem do que vem ocorrendo e se omitem.

Essa omissão decorre de fatores eminentemente culturais e de déficit moral, tal qual nos ensina Tocqueville:

Vejo uma multidão incalculável de homens semelhantes e iguais que giram sem repouso torno de si mesmos para conseguir pequenos e vulgares prazeres com que enchem sua alma. Cada um deles, retirado à parte, é como que alheio ao destino de todos os outros: seus filhos e seus amigos particulares formam para eles toda a espécie humana; quanto ao resto de seus concidadãos, está ao lado deles, mas não os vê; toca-os mas não os sente; cada um só existe em si mesmo e  para si mesmo. [44]

E aí surge novo questionamento acerca da conveniência (ou não) da criminalização em estudo. Seria sequer adequado e muito menos eficaz pretender obter uma mudança cultural e um ganho de qualidade moral, usando como instrumento a ameaça do Direito Penal? O Direito Penal seria um bom método pedagógico ou a cultura de um povo e sua moralidade deve ser cultivada por outros meios de aprimoramento que tornem as pessoas conscias de seus deveres, do certo e do errado, do bem e do mal, da verdade e da mentira? Parece que não haverá jamais legislação penal ou de outra natureza capaz de incutir nos homens bons sentimentos e noções de obrigação em meio a um mundo e neste mundo, um país, onde tudo é relativisado e quase todos andam perdidos.

Não é que se pretenda com a exposição dessa abordagem histórica crítica equiparar ou equalizar a criação de um tipo penal como o artigo 26 da Lei 14.344/22 com as atrocidades dos regimes totalitários do século XX ou atuais, o que seria um óbvio e ingente desvio do senso de proporções. Porém, é preciso ter em mente que o totalitarismo muitas vezes, e principalmente no mundo contemporâneo, não se implanta de roldão, repentinamente e de forma acabada. Antes, se introduz sutil, lenta e insidiosamente. Isso porque na atualidade já se sabe que o verdadeiro “poder político” não se obtém pela força bruta, nem de forma imediata, mas significa conquistar o domínio “sobre as mentes e as ações dos homens”. [45] Tratando da barbárie sob o ângulo da exagerada acumulação de capital, mesmo um autor como Veblen que acreditava na utopia socialista (outra barbárie),[46] constatou a existência de distinção entre uma barbárie “feroz”, “rapace” e “predatória” nos primeiros tempos e sua mudança moderna para meios de ação mais sutis, próximos da “fraude” e marcados por certa “prudência” e “discrição”. A natureza bárbara pode ser aquela que ataca frontalmente ou dissimuladamente, uma afim da “ferocidade”, outra da “astúcia”. [47] Nem sequer há a pretensão de imputar ao legislador ou a quem quer que seja, uma má intenção ou o desiderato inequícovo de inocular um elemento totalitário na sociedade brasileira pela via do mundo jurídico. Apenas é preciso salientar com Boudon que muitas vezes uma consequência indesejável e até nociva pode advir de uma decisão refletida e bem intencionada. [48] E como temos ciência pela via da sabedoria popular, “de boas intenções o infermo está cheio”.

 

5-INTERVENÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO NAS CAUSAS QUE ENVOLVEM VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA CRIANÇA OU ADOLESCENTE

 

O artigo 127, CF atribui ao Ministério Público a condição de “instituição permanente essencial à função jurisdicional do Estado”. Também lhe incumbe da função de “defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis”. Nesse passo não é surpresa que a legislação determine casos em que o Ministério Público, obrigatoriamente, deverá intervir, ainda que não seja parte processual. Causas que envolvam interesses indisponíveis de incapazes, por exemplo, certamente são exemplos da necessária atuação ministerial.

O Código de Processo Civil, seguindo a normatização constitucional do tema, estabelece que em casos envolvendo incapazes, dentre eles os etários, há necessidade de intervenção ministerial (vide artigos 176 c/c 178, II, CPC). Também estabelece o CPC os limites e alcances da atuação ministerial, de acordo com seu artigo 179, I e II, abrangendo o direito de vista dos autos, intimação de todos os atos do processo, produção de provas, requerimento de medidas processuais em geral e de recurso.

Na área criminal, o Ministério Público é o titular privativo da ação penal pública, conforme dispõe o artigo 129, I, CF, secundado pela parte inicial do artigo 24 c/c artigo 257, I, CPP.

Mas, e na ação penal privada? Também atua o Ministério Público como “custos legis” (Fiscal da Lei – inteligência do artigo 257, II, CPP). Na fase de Inquérito Policial opina pela concessão de prazo e quando o feito é relatado e fica à disposição do querelante (artigo 19, CPP), tem vista dos autos para aferir se existe ali também algum indício de crime de ação penal pública, a fim de que tome as providências devidas em caso positivo. [49]

Pode ainda o Ministério Público, nos termos dos artigos 45 c/c 46, § 2º., CPP, aditar a queixa para incluir eventual querelado, velando, enquanto “custos legis”, pela indivisibilidade da ação penal (artigo 48, CPP). Embora atue como fiscal da lei, zelando pela indivisibilidade e possa até aditar à queixa – crime nos casos de ação penal privada, não é dado ao Ministério Público o poder de incluir crime de ação penal privada não mencionado pelo querelante, isso tendo em vista o “Princípio da Opornidade” que rege tal espécie de ação penal, bem como o fato de que não é legitimado como titular. Mesmo quanto à inclusão de querelantes, há controvérsias, tendo em vista tratar-se de ação penal privada. Para alguns é possível o aditamento, sendo uma exceção às regras da ação penal privada de acordo com o disposto no artigo 45, CPP. Para outros isso não é possível, já que a omissão de algum querelado implica em renúncia tácita do direito de ação, a qual se transmite a todos os demais pelo “Princípio da Indivisibilidade da Ação Penal” (inteligência do artigo 49, CPP), não cabendo ao Ministério Público atuar, a não ser, como fiscal da lei, para apontar a configuração da renúncia e extinção de punibilidade de todos. Finalmente, há quem defenda que o Ministério Público somente apontará a infração à indivisibilidade, para que o quereleante, em desejando, adite a queixa. Se o fizer o processo prossegue. Se não o fizer ocorre a renúncia e a extinção da punibilidade. A Súmula 16 das Mesas de Processo Penal da Universidade de São Paulo estabelece o seguinte: “em face dos princípios que regem a ação privada, não é possível o aditamento à queixa pelo Ministério Público para inclusão de corréu”. [50]

Em caso de recurso na ação penal privada pode o Ministério Público apresentar razões nos termos do artigo 600, § 2º., CPP. [51] Não obstante sua capacidade recursal é reduzida, tendo em vista não ser o titular da ação penal privada. Pode recorrer na condição de fiscal da lei quando a sentença for condenatória. Mas, quando a sentença for absolutória o direito de recorrer é apenas do titular da ação (querelante). O apelo do Ministério Público nesses casos constituiria, na dicção de Demoro Hamilton, uma “verdadeira aberração” por falta de interesse de agir, já que o Estado não tem interesse na punição do réu, de acordo com os princípios e institutos [52] que regem as ações penais privadas (oportunidade, conveniência, disponibilidade, perdão do ofendido, desistência etc.).

Finalmente cabe ressaltar que o ECA (Lei 8.0969/90 – artigos 202 a 205) determina a intervenção do Ministério Público, ainda que não seja parte,  em ações que envolvam direitos das crianças e adolescentes, gerando nulidade a falta dessa intervenção.

Com o advento da Lei 14.344/22 foi incluído no artigo 201 do ECA, que arrola as atribuições do Ministério Público diante dos direitos das crianças e adolescentes, um inciso XIII para determinar sua obrigatória intervenção, mesmo quando não for parte, nas causas cíveis e criminais decorrentes de violência doméstica e familiar contra a criança e o adolescente.

Na seara cível, parece não existir qualquer dúvida acerca dessa incumbência obrigatória do Ministério Público em causas que envolvam menores e incapazes em geral, conforme já demonstrado. Nesse passo o novo inciso XIII do artigo 201 do ECA surge apenas como um reforço dessa necessária intervenção, que já decorria da Constituição Federal, do Código de  Processo Civil e do próprio ECA.

Na área criminal, em se tratando de ações penais públicas, o dispositivo é inoquo, pois o Ministério Público não somente irá “intervir”, mas é o titular privativo da ação penal pública, aplicando-se o artigo 129, I, CF e os artigos 24 c/c 257, I, CPP, de modo a tornar totalmente dispensável a previsão do artigo 201, XIII, ECA.

Já nos casos de ações penais privadas envolvendo crianças e adolescentes como vítimas (v.g. violência moral – crimes contra a honra), também parece que a atuação do Ministério Público, embora limitada à função de “fiscal da lei”, já se encontra bem estabelecida no Código de Processo Penal, conforme acima demonstrado. Novamente o inciso XIII do artigo 201 do ECA surge como um reforço daquilo que já vinha estabelecido pelo sistema processual. A única diferença é que as normas anteriormente vigentes faziam menção à atuação ministerial na ação penal privada em geral e agora o ECA especifica sua obrigatoriedade no caso de ações envolvendo crianças e adolescentes. No mais, o alcance da atuação ministerial e de suas prerrogativas deve ser dado por interpretação sistemática com os artigos 202 a 205 do ECA. Poderá o Ministério Público, mesmo não sendo parte (ação penal privada), juntar documentos, requerer diligências e recorrer, bem como terá vista dos autos após as partes (artigo 202, ECA). Anote-se que quanto à capacidade recursal, há que observar os limites impostos pelos princípios e institutos da ação penal privada, conforme acima já mencionado, o que não nos parece poder alterar-se pelo advento do inciso XIII do artigo 201 do ECA, sob pena de desfigurar o arcabouço normativo e principiológico da ação penal privada. A intimação do Ministério Público deve ser obrigatoriamente pessoal (artigo 203, ECA). A falta de intervenção ministerial é causa de nulidade absoluta desses feitos, podendo ser reconhecida de ofício pelo juiz ou por provocação das partes ou do próprio Ministério Público. Esse alcance das prerrogativas ministeriais também vale para as ações cíveis.

 

6-LEI 9.099/95 E CRIMES COMETIDOS CONTRA A CRIANÇA E O ADOLESCENTE

 

Como é possível antever de acordo com nossas manifestações antecedentes neste texto, temos a convicção da impossibilidade de aplicação dos dispositivos benéficos da Lei 9.099/95 a quaisquer casos de violência doméstica e familiar contra crianças e adolescentes por aplicação do disposto no artigo 226, § 1º., do ECA (Lei 8.069/90) com nova redação dada pela Lei 14.344/22. Em nossa concepção é indiferente que o crime praticado contra o menor seja daqueles previstos no ECA ou na legislação codificada e esparsa em geral. Não cabe aplicar as benesses da Lei 9.099/95 a nenhum violador de crianças ou adolescentes no âmbito doméstico e familiar. É claro que para meninas já existe induvidosamente essa proibição, nos termos do artigo 41 da Lei 11.340/06. A dúvida que poderia surgir, com relação ao alcance do artigo 226, § 1º., da Lei 8069/90 se refere aos meninos, mas a nosso ver o tratamento somente pode ser isonômico.

Há, porém, controversias sobre essa questão. Autores como Cunha e Ávila [53] entendem que a vedação da Lei 9.099/95 somente tem validade para os crimes previstos no ECA, já que o “caput” do artigo 226 do mesmo diploma, que não foi alterado, diz respeito especificamente a crimes da Lei 8.069/90, não abrangendo ilícitos que não sejam ali previstos. A dicção do artigo 226, “caput” é “aos crimes definidos nesta lei”, ou seja, no ECA. Segundo os autores, portanto, o § 1º., somente pode ser interpretado em conjunto com o disposto no “caput”.

Cunha e Ávila chamam a atenção para o fato de que a Lei Henry Borel espelha muitas disposições da Lei Maria da Penha, mas no que se refere à vedação de aplicação da Lei 9.099/95, apartou-se da sistemática da Lei 11.340/06, que previu tal impedimento no seu corpo interno, mais precisamente em seu artigo 41. A Lei Henry Borel preferiu tratar da vedação respectiva em outro diploma legal, no caso, o ECA (Lei 8.069/90), em seu artigo 226, § 1º. Afirmam, com base nisso, que como a alteração legal se deu no ECA e não na Lei Henry Borel, a vedação em estudo somente se aplica aos crimes do ECA (ali previstos) e não de forma geral. Alegam os autores que se o legislador pretendesse uma vedação genérica teriam feito a previsão na Lei Henry Borel diretamente, tal como ocorre com a Lei Maria da Penha e não no ECA. [54]

Entendem ainda os autores que a interpretação de vedação genérica implicaria no impedimento de aplicação da Lei 9.099/95 a quaisquer crimes contra crianças e adolescentes, ainda que fora da situação de violência doméstica e familiar, o que nem mesmo ocorre na Lei Maria da Penha. Isso porque o § 1º., do artigo 226 do ECA menciona “Aos crimes cometidos contra criança e adolescente” sem qualificar a situação de violência doméstica e familiar. [55]

Fazem ainda menção à tendência de acatamento da chamada “Justiça Consensuada” e à sua ampliação pelo denominado “Pacote Anticrime” (Lei 13.964/19) com a previsão do “Acordo de Não Persecução Penal” (ANPP – artigo 28 – A, CPP). [56]

Trazem ainda à discussão a decisão do STF quanto ao artigo 91 do Estatuto do Idoso não ampliar o conceito de infração de menor potencial para aquelas com penas máximas cominadas abstratamente até 4 anos, mas tão somente para autorizar a aplicação do  Procedimento Sumaríssimo da Lei 9.099/95 quando a vítima do crime for idosa. No entanto, não houve entendimento do Supremo quanto ao não cabimento das benesses da Lei 9.099/95 quando o crime tiver pena máxima cominada até 2 anos (transação penal) ou mínima até 1 ano (suspensão condicional do processo). [57]

Com o devido respeito, não se pode concordar com essa interpretação, tratando-se, como bem afirmam Costa e Araújo, de um evidente “equívoco hermenêutico”. [58]

Nem a interpretação gramatical nem a sistemática levam ao resultado preconizado pelos autores em destaque.

O artigo 226, ECA em sua redação original não contava com parágrafos. Portanto, a inclusão destes não é, obrigatoriamente, procedida em correlação sistemática com o atual “caput”. O que hoje é o “caput” do artigo 226, ECA regula a aplicação subsidiária das normas da Parte Geral do Código Penal e do Código de Processo Penal aos crimes previstos no ECA. Aí sim, a norma se refere somente aos crimes do ECA.

Já o § 1º., não foi criado concomitantemente com o atual “caput” e sim introduzido pela Lei Henry Borel. Ali não há menção a “crimes definidos nesta lei”, mas sim a “crimes cometidos contra criança e adolescente”. Não há qualquer distinção entre crimes do ECA e demais crimes que atinjam crianças e adolescentes. Não há ligação entre o “caput” e seu § 1º., de forma que cada um trata de um regramento de aplicação de normas. O “caput” regula a aplicação subsidiária do Código Penal e do Código de Processo Penal, referindo-se aos crimes do ECA. O § 1º. regula a aplicação, ou melhor, a não aplicação da Lei 9.099/95, seja aos crimes do ECA, seja a quaisquer crimes perpetrados contra crianças e adolescentes. Cada dispositivo tem uma redação diversa e se refere a diplomas legais diversos. No caput, ao referir-se a lei à legislação codificada (geral) não teria realmente cabimento que não estivesse se referindo aos crimes previstos estritamente no ECA. Quanto aos demais crimes do ordenamento jurídico brasileiro, salvo disposição expressa em contrário, aplicam-se naturalmente tais diplomas genéricos.

Outra comprovação da independência entre os parágrafos e o “caput” é que o § 2º., impede a aplicação de penalidade envolvendo “cestas básicas”, outras de “prestação pecuniária”, bem como substitiuição por pena isolada de multa, isso tudo, não para os crimes do ECA apenas, mas “nos casos de violência doméstica e familiar  contra a criança e o adolescente” (letra da lei – artigo 226, § 2º., ECA). Resta nítido o espelhamento do artigo 17 da Lei Maria da Penha (Lei 11.340/06), o que não deixa a menor dúvida quanto à “mens legis” de propiciar tratamento idêntico às violências doméstica e familiar contra a mulher e crianças e adolescentes. Aliás, tratar de forma diferente infringiria a isonomia e seria inconstitucional. Não teria cabimento que meninas violentadas no ambiente doméstico e familiar contassem com a vedação de aplicação ao agressor da Lei 9.099/95, enquanto que meninos não contassem com tratamento isonômico.

A alegação de Cunha e Ávila quanto à diferença de topografia entre as normas proibitivas, prevendo a Lei Maria da Penha a vedação à Lei 9.099/95 em seu próprio bojo e a Lei Henry Borel, preferindo levar tal dispositivo ao ECA, é absolutamente irrelevante. Isso porque no caso da mulher, inexiste um Estatuto da Mulher com previsão similar ao ECA. Então a Lei Maria da Penha somente poderia prever a norma proibitiva da Lei 9.099/95 em seu próprio corpo. Já no caso das crianças e adolescentes, existe o ECA, podendo o legislador optar por tratar dos temas, inclusive este, no bojo da Lei 14.344/22 ou no ECA (Lei 8.069/90). Até porque a Lei 14.344/22 prevê expressamente a possibilidade de aplicação subsidiária das disposições do ECA, naquilo que couber, conforme artigo 33 da Lei Henry Borel.

Também não é justificado o temor dos autores quanto a uma exagerada proibição de aplicação da Lei 9.099/95 a todos os casos com vítimas menores, mesmo em não se tratando de situações de violência doméstica e familiar. É verdade que o § 1º. em estudo menciona genericamente “crimes cometidos contra a criança e o adolescente”. Mas, é mais do que óbvio que a referência se limita aos casos de violência doméstica e familiar, devido à genealogia do dispositivo, pois ele provém da Lei Henry Borel (Lei 14.344/22), a qual se refere especificamente a essa espécie de violência e não a quaisquer situações em que a vítima seja menor. Tanto é fato que logo em seguida, o outro dispositivo incluído pela Lei Henry Borel, o § 2º., já se refere expressamente e especificamente aos “casos de violência doméstica e familiar contra a criança e o adolescente”. Aqui sim, a genealogia comum e concomitante dos §§ 1º. e 2º., indica uma interpretação sistemática não somente entre eles, mas deles com a natureza dos fatos tratados pela Lei 14.344/22, que se refere especificamente à violência doméstica e familiar contra menores e não a qualquer caso que envolva menor como sujeito passivo de infrações penais.    

Quanto ao acatamento da “Justiça Consensuada” no ordenamento jurídico brasileiro, trata-se de fato inegável. Porém, isso não significa que a aplicação desse modelo seja ilimitada. É plenamente possível, e é até mesmo a regra nesses casos, que se estabeleçam legalmente as situações em que o modelo consensuado pode ou não ser aplicado (modelo de discricionariedade regrada ou regulada). [59] A própira Constituição Federal, ao prever a possibilidade de criação de Juizados Especiais Criminais, delega ao legislador ordinário seu regramento e a conceituação de infração de menor potencial (inteligência do artigo 98, I, CF). Também não se justifica a preocupação dos autores com relação ao Acordo de Não Persecução Penal (ANPP) trazido ao ordenamento pela Lei 13.964/19. A Lei 14.344/22 não previu qualquer proibição para a aplicação desse instituto, seja em seu próprio bojo, seja no ECA ou em qualquer local (CPP etc.). Muito embora, a nosso ver, devesse ter previsto, tendo em vista um tratamento isonômico entre meninos e meninas. Isso porque com relação às mulheres em situação de violência doméstica e familiar, a própria Lei 13.964/19, que alterou o CPP, proibiu o ANPP nessas circunstâncias (vide artigo 28 – A, § 2º., IV, CPP com nova redação dada pela Lei 13.964/19). Há, portanto, uma inconstitucionalidade por insuficiência protetiva em relação aos meninos, bem como uma violação crassa da isonomia entre homens e mulheres (artigo 5º., I, CF). Note-se que a proposta não é o laxismo legal com a permissão de acordo para os casos de violência contra a mulher, mas o tratamento igualitário com o rigor da não permissão do ANPP também para a violência contra meninos.

Por derradeiro, a alusão dos autores à decisão do STF quanto ao alcance limitado do artigo 91 do Estatuto do Idoso, é a mais inadequada de todas as argumentações. Em primeiro lugar esse dispositivo, dada sua redação confusa, parecia ampliar, para os casos de idosos vitimados, o conceito de infração de menor potencial. Parecia que o artigo 91 fazia com que o conceito de infração de menor potencial para não idosos abrangesse apenas crimes com penas máximas até 2 anos, enquanto que para casos de idosos como vítimas a infração seria de menor potencial com penas até 4 anos. Ora, isso seria um absurdo, uma irrazoabilidade e a proporcionalidade virada de ponta – cabeça! O objeto de discussão era impedir a ampliação de aplicação da Lei 9.099/95 em casos de vítimas idosas. Exatamente o oposto do que se trata agora com o § 1º., do artigo 226 do ECA, que se relaciona com a restrição ou proibição de aplicação da Lei 9.099/95 para crimes em geral contra crianças e adolescentes em violência doméstica e familiar. Não há ligação possível entre os dois casos, eles são contrários, não têm nada em comum. O fato de que o STF tenha decidido que seriam aplicáveis aos casos de idosos vítimas os benefícios da Lei 9.099/95, desde que cumpridos os requisitos legais (pena máxima até 2 anos ou pena mínima até 1 ano, respectivamente para transação penal e suspensão condicional do processo), nada tem novamente a ver com o caso da Lei Henry Borel e do ECA. O Estatuto do Idoso, em momento algum criou norma proibitiva de aplicação da Lei 9.099/95, donde se conclui que ela pode ser aplicada nos seus estritos limites. O risco no Estatuto do Idoso era de indevida ampliação de aplicação da Lei 9.099/95 em prejuízo dos idosos, ocasionando evidente insuficiência protetiva e não de restrição. O único ponto de contato entre os dois “cases” é o de que cabe realmente ao legislador ordinário estabelecer o conceito de infração de menor potencial ofensivo e os critérios de aplicação das benesses da Lei 9.099/95.

Observe-se ainda que, tal qual a Lei Maria da Penha, a Lei Henry Borel reconhece a violência doméstica e familiar contra crianças e adolescentes como “uma das formas de violação dos direitos humanos” (artigo 3º., da Lei 14.344/22). Como seria possível, dentro de uma razoabilidade e proporcionalidade minimamente admissíveis, considerar uma “violação dos direitos humanos” como uma “infração de menor potencial”? Isso é até mesmo contraditório, pois ou bem estamos tratando de uma grave violação dos direitos humanos ou de uma infração de natureza bagatelar ou mesmo de médio potencial.

Outro motivo que aponta para a abrangência genérica do § 1º., do artigo 226, ECA, é o fato de que o crime previsto no artigo 25 da Lei Henry Borel tem pena máxima cominada de 2 anos e seria então de menor potencial, não cabendo, em regra, a Prisão em Flagrante e sim elaboração de Termo Circunstanciado. Acontece que o § 2º., do mesmo dispositivo trata expressamente da “Prisão em Flagrante” e ainda veda a concessão de fiança pela Autoridade Policial. Ora, se fosse aplicada a Lei 9.099/95, já que o artigo 226, § 1º., ECA só alcançaria os crimes da Lei 8.069/90, não haveria Prisão em Flagrante e nem necessidade de fiança e, ainda que excepcionalmente houvesse a Prisão em Flagrante, deveria ser concedida fiança pelo Delegado normalmente, aplicando-se o artigo 322, CPP. Nada justificaria o rigor da legislação nesse caso em dissonância com todos os demais.

A questão do tratamento isonômico entre meninos e meninas pela Lei Henry Borel é crucial para que não se venha a reproduzir, uma vez mais, discriminações negativas que não contam com justificativa plausível e decorrem de falsidades e erros provocados pelo “politicamente correto”, conforme demonstra a escritora feminista, Christina Hoff Sommers:

La investigación, citada con frecuencia para apoyar las quejas sobre los privilegios y maldades masculinas, está plagada de errores. Casi nada de la misma ha sido publicado en periódicos evaluados por profesionales. Parte de la información falta misteriosamente. Sin embargo, el falso retrato permanece y es debidamente distribuido en centros educativos, en talleres de «igualdad de género» y, cada vez más, entre los propios niños. [60]

Talvez seja também bom avivar a memória de todos para o fato de que a lei recebe o nome de um menino vítima de violência doméstica e familiar bárbara, Henry Borel, e de que ele não é, por obviedade, a única criança do sexo masculino nessa situação (v.g. Caso Bernardo Boldrini, [61] Caso Rafael Matheus Winques, [62] Caso Ruan Maicon, [63] entre muitos outros).

Demonstrados os argumentos ampliativos e restritivos do alcance do artigo 226, § 1º., ECA e adotando-se o entendimento ampliativo, [64] conforme exposto, há que analisar uma questão relevante.

A vedação de aplicação da Lei 9.099/95 constante no § 1º., do artigo 226, ECA se refere textualmente a “crimes” cometidos contra crianças e adolescentes. Mas, e se ocorrer a prática de uma contravenção penal contra crianças e adolescentes em violência domética e familiar. A mais comum delas seria a contravenção penal de Vias de Fato (artigo 21, LCP). A vedação que se refere a crimes, a princípio não seria aplicável às contravenções por força do “Princípio da Legalidade”, uma vez que crimes e contravenções são espécies diversas do gênero “infrações penais”.

Acontece que o mesmo dilema já foi enfrentado acerca do disposto na Lei Maria da Penha em seu artigo 41, o qual também faz menção somente a “crimes”. E o STJ, bem como o STF estabeleceu que a palavra “crimes” nesse caso deveria ser interpretada de forma ampla, abrangendo tanto crimes como contravenções. Vejamos:

Uma interpretação literal do disposto no art. 41 da Lei n. 11.340/2006 viabilizaria, em apressado olhar, a conclusão de que os institutos despenalizadores da Lei 9.099/1995, entre eles a transação penal, seriam aplicáveis às contravenções penais. Contudo, considerando a finalidade da norma e o enfoque da ordem jurídico – constitucional, tem-se que, considerados os fins sociais a que a lei se destina, o artigo 41 da Lei n. 11.340/2006 afasta a incidência da Lei n. 9.099/95, de forma categórica, tanto aos crimes quanto às contravenções penais, a mens legis do disposto no referido preceito não poderia ser outra, senão de alcançar também as contravenções penais (STJ, HC n. 280.788/RS, Rel. Min. Rogério Schietti Cruz, j. 03.04..2014; no mesmo sentido STF, HC n. 106.212/MS, Rel. Min. Marco Aurélio Mello, j. 24.03.2011). [65]

Na interpretação e aplicação dos dispositivos da Lei 14.344/22 é preciso ter sempre atenção para a necessidade de isonomia entre meninos e meninas, a fim de não abrir brechas para inconstitucionalidades por insuficiência protetiva. Ademais, é necessário lembrar que a Lei Henry Borel é praticamente especular (no sentido de espelho) em relação à Lei Maria da Penha. E se nesta última há dispositivo que aponta para sua interpretação de acordo com “os fins sociais a que se destina” e as “condições peculiares das mulheres em situação de violência doméstica e familiar” (artigo 4º., da Lei 11.340/06); não existe motivo para que tal proceder não seja estendido aos menores, levando em conta os fins sociais a que se destina a Lei 14.344/22, bem como a situação peculiar das crianças e adolescentes em situação de violência doméstica e familiar (inteligência do artigo 33 da Lei 14.344/22).

Nesse passo, é de prognosticar que os tribunais devam interpretar a vedação prevista no artigo 226, § 1º., do ECA de forma ampla, abrangendo tanto crimes como contravenções penais, a exemplo do que já ocorreu com o mesmo caso da Lei Maria da Penha.

Também por isonomia, entendemos que o mais correto será que os Tribunais superiores repitam outros entendimentos rigorosos previstos para agressores de mulher, nos casos de crianças e adolescentes também em violência doméstica e familiar. São exemplos algumas Súmulas do STJ: [66]

A suspensão condicional do processo e a transação penal não se aplicam na hipótese de delitos sujeitos ao rito da Lei Maria da Penha. (Súmula 536, 3ª. Seção, julgado em 10/06/2015, DJe 15/06/2015).

A prática de crime ou contravenção penal contra a mulher com violência ou grave ameaça no ambiente doméstico impossibilita a substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos. (Súmula 588, 3ª. Seção, julgado em 13/09/2017, DJe 18/09/2017).

É inaplicável o princípio da insignificância nos crimes ou contravenções penais praticados contra a mulher no âmbito das relações domésticas. (Súmula 589, 3ª. Seção, julgado em 13/09/2017, DJe 18/09/2017).

Para a configuração da violência doméstica e familiar prevista no artigo  da Lei n. 11.340/2006 (Lei Maria da Penha) não se exige a coabitação entre autor e vítima. (Súmula 600, 3ª. Seção, julgado em 22/11/2017, DJe 27/11/2017).

Outra questão polêmica foi aquela da ação penal nas lesões corporais leves em casos de violência doméstica contra a mulher. A ação penal, por força do artigo 88 da Lei 9.099/95 é pública condicionada à representação do ofendido. Mas, com relação às circunstâncias de violência doméstica e familiar contra a mulher, entendeu-se que a vedação de aplicação da Lei 9.099/95 (artigo 41 da Lei 11.340/06) faria da ação penal pública incondicionada, voltando-se a aplicar o sistema geral do Código Penal, previsto no seu artigo 100, § 1º. A nosso ver, por aplicação do disposto no artigo 226, §1º., do ECA, com nova redação dada pela Lei 14.344/22, o efeito nos casos de lesões leves em violência doméstica e familiar contra crianças e adolescentes, não pode deixar de ser o mesmo. Assim sendo, prognostica-se que a Súmula 542, STJ deva ser repetida na interpretação e aplicação jurisprudencial dos casos de lesões leves contra crianças e adolescentes em situação de violência doméstica e familiar. Eis o texto da Súmula citada:

“A ação penal relativa ao crime de lesão corporal resultante de violência doméstica contra a mulher é pública incondicionada”. 

Não há razão para criar distinções legais, doutrinárias ou jurisprudenciais entre meninos e meninas, especialmente porque tanto a Lei Maria da Penha (artigo 6º.), quanto a Lei Henry Borel (artigo 3º.) erigem os casos de violência doméstica e familiar, respectivamente contra as mulheres e as crianças e adolescentes (neste último caso independente do sexo) em graves violações dos direitos humanos. Ademais, ambas as leis mencionadas, assim como o ECA, são integradas pelo disposto no artigo 33 da Lei 14.344/22.

 

7-TERMO INICIAL DA CONTAGEM DO PRAZO PRESCRICIONAL EM CRIMES CONTRA A DIGNIDADE SEXUAL E ENVOLVENDO CRIANÇAS E ADOLESCENTES

 

A Lei 12.650/12 trouxe a lume novo termo inicial para contagem do prazo prescricional de crimes contra a dignidade sexual de crianças e adolescentes, estabelecendo-o como o momento em que a vítima completa 18 anos ou então, se o processo se inicia antes, o momento da propositura deste.

Na ocasião, já escrevemos sobre o tema e havia uma dúvida importante a ser sanada, conforme segue: [67]

Ocorre que a legislação na época faz referência a crimes contra a dignidade sexual previstos no Código Penal ou em Legislação Especial. No Código Penal, nunca houve qualquer dúvida de que se tratavam dos crimes previstos no Título VI – Dos crimes contra a dignidade sexual, mais especificamente, seu Capítulo II – Dos Crimes Sexuais contra vulnerável. A dúvida surgia quanto a crimes contra a dignidade sexual de crianças e adolescentes previstos em legislação esparsa.

Certamente o primeiro diploma que veio à mente foi o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/90) no bojo do qual há realmente crimes que descrevem condutas envolvendo exploração sexual de crianças e adolescentes ou ao menos de suas imagens. Esses crimes podem ser encontrados nos artigos 240 a 241 – D, da Lei 8.069/90. Por seu turno, com o advento da Lei 12.015/09, restou revogado tacitamente o artigo 244 – A, do ECA, referente à exploração da prostituição de menores, tendo em vista o tratamento completo do tema pelo novo artigo 218 – B, CP. [68]

Restava saber se os crimes previstos na Lei 8.069/90 podiam ou não ser considerados como “crimes contra a dignidade sexual” das crianças e adolescentes, a fim de que fossem submetidos ao novo regramento do termo inicial de prescrição.

A doutrina sobre os crimes do ECA é escassa e pouco aprofundada, de modo que não se encontra um posicionamento seguro quanto ao bem jurídico tutelado nos crimes ora enfocados. No entanto, com o advento da Lei 12.015/09, trazendo à baila a questão do bem jurídico “Dignidade Sexual”, pode-se dizer que toda conduta criminalizada que atente contra a dignidade da pessoa humana no seu aspecto sexual está tutelando esse bem jurídico – penal. É de se concluir, portanto, que os crimes previstos nos artigos 240 a 241 – D, do ECA são contra a “dignidade sexual das crianças e adolescentes”, de forma a serem abarcados pela então nova disciplina da prescrição. Certamente a menção do alcance do artigo 111, V, CP na época aos “crimes contra a dignidade sexual de crianças e adolescentes previstos (...) em legislação especial” deixava claro que a “mens legis” era exatamente de abarcar os delitos previstos no Estatuto da Infância e Juventude. [69]

Acontece que a Lei 14.344/22 ampliou ainda mais o alcance dessa nova regra de prescrição, que passa a contar seu prazo da data em que a vítima faz 18 anos ou do início do processo. A redação agora foi alterada. Antes estava escrito “nos crimes contra a dignidade sexual de crianças e adolescentes”; agora consta “nos crimes contra a dignidade sexual ou que envolvam violência contra a criança e o adolescente”. Isso significa que antes a regra de contagem diferenciada do prazo prescricional valia somente para crimes contra a dignidade sexual perpetrados contra crianças e adolescentes e não para todos os crimes praticados contra crianças e adolescentes. Agora, amplia-se sobremaneira a aplicação do novo termo inicial de contagem. Ele será aplicado:

-aos crimes contra a dignidade sexual contra crianças e adolescentes;

-aos crimes de qualquer natureza que tenham por vítima crianças ou adolescentes.

Se havia motivo para alguma dúvida quanto aos crimes do ECA, agora isso é apenas um resquício histórico, pois seja em crimes do Código Penal ou de legislação esparsa, que envolvam crianças e adolescentes, sejam tais crimes contra a dignidade sexual ou de outra natureza, aplica-se a regra de contagem inicial de prazo prescricional do artigo 111, V, CP com nova redação dada pela Lei 14.344/22.

Embora na parte inicial do dispositivo, ao referir-se a crimes contra a dignidade sexual não haja menção a crianças e adolescentes, isso é intuitivo e consequente do restante da redação, que se refere à necessidade de a vítima completar 18 anos. Ora, se é assim, significa que a vítima aqui tratada, em todo o dispositivo, somente pode ser uma pessoa menor, ou seja, criança ou adolescente.

Certamente surgirá a dúvida quanto a ser aplicada a regra especial de prescrição somente para crimes praticados contra crianças e adolescentes em situação de violência doméstica e familiar ou a quaisquer casos onde a vítima seja criança ou adolescente. A única conclusão possível, seja por interpretação gramatical, seja sistemática, seja histórica, é a de que a regra especial abrangerá quaisquer crimes perpetrados contra crianças e adolescentes, em situação de violência doméstica e familiar ou não. Isso porque a lei não menciona a qualificação da “violência doméstica e familiar”, embora sua origem na Lei Henry Borel possa, em outros cenários, como já visto, sugerir isso. Acontece que no que tange à regra prescricional em estudo, esta se encontra na Parte Geral do Código Penal, o que significa que sua aplicação é abrangente de toda legislação brasileira penal, salvo disposição expressa em contrário. Finalmente, desde sempre o inciso V do artigo 111 se dirigia a quaisquer crimes perpetrados contra menores, antes apenas contra a dignidade sexual, mas em qualquer circunstância que envolvesse menores, agora, com o aumento de seu alcance, não há motivo plausível para pensar que o legislador pretenderia reduzir sua extensão e, consequentemente, diminuir o campo de tutela dos menores.

Assim sendo, a contagem especial se aplica a um caso de estupro de vulnerável praticado por um desconhecido contra uma criança ou pelos pais; também se aplica a um caso de lesões corporais praticado em razão de um desentendimento entre um adulto e um menor na rua, sendo eles totalmente desconhecidos ou apenas vizinhos ou amigos, como, da mesma forma, no caso de agressão física praticada por um tio ou um tutor.

 

8-NOVO REGRAMENTO DO HOMICÍDIO CONTRA MENORES DE 14 ANOS

 

A Lei 14.344/22 cria uma nova modalidade de Homicídio Qualificado, mediante a inclusão de um inciso IX no § 2º., do artigo 121, CP.

Passa a ser qualificado todo homicídio perpetrado contra menor de 14 anos.

O mesmo diploma legal toma a necessária providência de atualizar a Lei dos Crimes Hediondos (Lei 8.072/90) para incluir em seu artigo 1º., inciso I a classificação como crime hediondo do homicídio de menores de 14 anos, adicionando no parêntesis que descreve o tipo penal o novo inciso IX do artigo 121, § 2º., CP (vide artigo 32 da Lei Henry Borel).

Cria ainda a Lei 14.344/22 duas causas especiais de aumento de pena para os casos de Homicídio Qualificado com o “nomen juris” de “Homicídio Contra Menor de 14 Anos”. Essas causas de aumento de pena são aplicáveis exclusivamente aos casos tipificados no artigo 121, § 2º., IX, CP (“Homicídio Contra Menor de 14 Anos”), conforme deixa claro o § 2º. – B do artigo 121, CP em seu “caput” (do § 2º.-B). São elas:

I-1/3 até a metade se a vítima é pessoa com deficiência ou com doença que implique o aumento de sua vulnerabilidade;

II-2/3 se o autor é ascendente, padrasto ou madrasta, tio, irmão, cônjuge, companheiro, tutor, curador, preceptor ou empregador da vítima ou por qualquer outro título tiver autoridade sobre ela.

O inciso I do § 2º. – B se justifica sempre pela maior vulnerabilidade e, no caso do deficiente, essa condição deve ser aferida, na qualidade de elemento normativo do tipo, de acordo com o Estatuto da Pessoa com Deficiência (vide artigo 2º., da Lei 13.146/15). Já no caso de doença que implique aumento da vulnerabilidade, também se trata de um elemento normativo que deverá ser objeto de avaliação judicial casuisticamente, não se exigindo, como na deficiência, que a limitação seja de “longo prazo”. Exemplo de deficiente seria uma criança cega sem possibilidade de cura. Por seu turno exemplo de doença debilitante seria o de uma criança que sofreu uma convulsão e se encontra temporariamente sem condições de locomoção, mas que se recuperará em alguns dias ou horas.

De qualquer forma a doença deverá ser daquelas que ocasionem redução da capacidade defensiva e/ou evasiva da vítima, justificando sua maior proteção penal em face de sua efetiva maior vulnerabilidade. [70]

Não é possível aplicar, em caso de incidência do aumento do inciso I, a agravante genérica prevista no artigo 61, II, “h” (criança ou enfermo), já que haveria dupla apenação pelo mesmo motivo. Somente no caso do enfermo pode ser que, acaso a enfermidade não seja causadora de maior vulnerabilidade ou incapacidade defensiva ou evasiva, se afaste o aumento e se aplique a agravante. Mas, nunca serão aplicados conjuntamente aumento e agravante.

Os aumentos previstos no inciso II se justificam pela especial relação de parentesco, responsabilidade e/ou autoridade entre a vítima e o autor do homicídio. Certamente é muito mais grave a morte de uma criança pelo próprio pai ou pela mãe do que por um desconhecido ou um conhecido sem esses tipos de vínculos.  Há emprego da técnica de “interpretação analógica”, ofertando o dispositivo vários casuísmos (v.g. ascendente, padrasto, madrasta, tutor, curador etc.) e fechando a redação com uma fórmula genérica com relação à pessoa que “por qualquer outro título tiver autoridade sobre a vítima” (ex. um diretor de hospital, um médico psiquiatra, um psicólogo etc.). Em se aplicando o aumento de pena em estudo, devido à especial condição de tais pessoas ali mencionadas, algumas agravantes genéricas ficam afastadas porque constituiriam “bis in idem” (v.g. artigo 61, II, “e” (ascendente, irmão ou cônjuge), “f”, “g”, “h” (criança), “i”, CP).

Pode chamar a atenção a menção a companheiros e cônjuges, já que se tratam de vítimas menores. Acontece que é possível haver união de fato entre menores (inteligência do artigo 1723, CC), bem como até mesmo casamento (vide artigo 1517, CC). Mas, ainda gera perplexidade o fato de que a majorante se refere a menores de 14 anos e somente podem se casar aqueles que têm 16 anos completos (“idade núbil”) e ainda com autorização dos pais ou responsáveis ou por suprimento judicial (artigo 1517 a 1520 c/c 1631, CC). É preciso atentar, porém, para o fato de que a insatisfação da idade núbil não constitui “impedimento” ao casamento, de forma que este não é nulo, muito menos inexiste, mas apenas anulável (vide artigos 1521, incisos I a VII c/c 1548, II, CC). Quem apenas não tinha “idade núbil” e se casa de alguma forma (iludindo o oficial, por exemplo) se encontra casado, sendo apenas “anulável” tal casamento de acordo com o disposto no artigo 1150, I, CC. Tanto é fato que o menor que se casou abaixo da “idade núbil” pode, quando a atinge, confirmar seu casamento, mediante autorização dos pais ou responsáveis ou suprimento judicial (vide artigo 1553, CC). Ora, o que é nulo não se convalida, já o que é somente anulável é passível de convalidação ulterior. Isso tudo significa que a ordem Civil torna possível haver alguém que é casado (cônjuge) e é menor de 16 anos ou mesmo de 14 anos. [71] Restará ainda nessas situações analisar a questão da prática do crime de “Estupro de Vulnerável” (artigo 217 – A, CP).

Outra dúvida pode surgir com relação à menção da figura do “curador”. Normalmente aquele que cuida dos interesses de menores é um “tutor”, sendo a figura do “curador” ligada à representação legal e defesa de interesses de incapazes maiores (alienados mentais, por exemplo). Dessa forma, o aumento de pena para tutores soa normal, enquanto pode haver estranheza com relação aos curadores, já que a vítima do homicídio seria sempre um menor de 14 anos. Acontece que é preciso lembrar a figura do chamado “curador especial” nomeado pelo Juiz sempre que um menor tiver pais ou representantes legais, mas houver colidência entre seus interesses (do menor) e os dos pais ou representantes. Isso é previsto no artigo 1692, CC; [72] artigo 72, I, CPC; artigo 671, II, CPC; artigo 142, Parágrafo Único, ECA (Lei 8.069/90); artigo 148, Parágrafo Único, alínea “f” c/c artigo 98, I a III, ECA; artigo 162, § 4º., ECA; artigo 184, § 2º. ECA e, finalmente, artigo 33, CPP.

Gilaberte chama a atenção para uma contradição existente com relação ao “empregador”. Vejamos:

Algumas das situações elencadas chamam atenção devido à incongruência para com a idade da vítima (menor de 14 anos). A primeira delas diz respeito à condição de empregador da vítima. O art. XXXIII, da CRFB proíbe qualquer trabalho a menores de 16 anos, salvo na condição de menor aprendiz, que pode ser alcançada aos 14 anos.  Assim, legalmente, ninguém pode estar em uma relação empregatícia antes dos 14 anos. Há, contudo, situações excepcionais. O art. 406 da CLT permite que o Juizado da Infância e da Juventude, eventualmente, autorize a participação do menor de 14 anos em filmes, espetáculos circenses, representações teatrais e congêneres. Essa estipulação, inclusive, está em ressonância para com a Convenção nº 138 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), em seu art. , e com o Estatuto da Criança e do Adolescente (art. 149). Queremos crer que a referência ao empregador – contida na majorante – se refira a essas excepcionalidades. Não obstante, entendemos que ela se estende também àqueles que ilegalmente exploram o trabalho de pessoas menores de 14 anos, ou teríamos uma situação anacrônica, com o empregador formal sendo punido de forma mais intensa do que aquele que atua ao arrepio da lei. [73]

Total razão assiste ao autor acima mencionado. Apenas faria um acréscimo de ordem técnica quanto ao empregador de fato, ou seja, aquele que, ao arrepio da lei e da Constituição, emprega menores de 14 anos. Correta a conclusão de Gilaberte quanto à necessária razoabilidade e proporcionalidade em aplicar o incremento penal também a este, já que seria um absurdo punir mais severamente o empregador legal e menos severamente o ilegal. Não obstante, entendemos que nessa situação o aumento não se deverá embasar na figura do “empregador”, mas que seria um dos casos de aplicação da interpretação analógica, utilizando-se a fórmula geral e considerando o empregador de fato como uma daquelas pessoas que por outro título tem autoridade sobre a vítima.  

Gilaberte chama a atenção para o fato de que as majorantes do artigo 2º. – B, I e II do artigo 121, CP acabam elevando o máximo das punições “in abstracto”, respectivamente, para 45 anos e 50 anos. Afirma o autor que esses patamares não podem ser aplicados, tendo em vista sua necessária limitação pelo artigo 75, CP que “estipula pena privativa de liberdade máxima de 40 anos”. Alega que “o excesso punitivo deve ser descartado”, tendo ocorrido “desacerto legislativo na eleição do patamar de incremento da sanção”. [74]

Há que, respeitosamente, discordar do autor. Não há erro do legislador. Realmente o patamar máximo de 40 anos é previsto pelo artigo 75, CP, mas tal dispositivo não se refere à pena cominada ou mesmo aplicada e sim à pena a ser efetivamente cumprida pelo condenado. Uma pessoa, diante do disposto no artigo 75, CP, pode ser condenada ou ter uma somatória de penas que chegue, por exemplo, a 500 anos. Isso não é proibido. O que não poderá ocorrer é que a pessoa venha a cumprir efetivamente penas maiores do que 40 anos. Seria de se indagar para que então aplicar uma pena acima de 40 anos, já que não seria cumprida? É que tal pena será a base para cálculo de eventuais benefícios como progressão de regime ou livramento condicional. Portanto, a cominação “in abstrato” e até mesmo a aplicação “in concreto” de pena acima de 40 anos pode ocorrer normalmente; o que o artigo 75 impede é que alguém cumpra efetivamente mais de 40 anos de prisão, com vistas especialmente ao impedimento de violação por reflexo da vedação constitucional da pena de “prisão perpétua” (inteligência do artigo 5º., inciso XLII, alínea “b”, CF - RHC 103.551, rel. min. Luiz Fux, 1ª T, j. 21-6-2011, DJE 163 de 25-8-2011.).

Neste sentido se manifesta, como toda a doutrina, Greco:

Em obediência ao disposto no art. 5º., XLVII, da Constituição Federal, que proíbe as penas de caráter perpétuo, diz o caput do art. 75 do Código Penal que o tempo de cumprimento das penas privativas de liberdade não pode ser superior a 40 (trinta) anos.

Não se confunde com tempo de condenação. Poderá o agente ser condenado a 300 anos, por exemplo. No entanto, de acordo com a determinação legal, não poderá cumprir, efetivamente, como regra, período superior a 30 (trinta) anos. [75]

Ademais, a temática é superada na jurisprudência desde o advento da Súmula 715, STF, com a seguinte dicção:

A pena unificada para atender ao limite de trinta anos de cumprimento, determinado pelo art. 75 do Código Penal, não é considerada para a concessão de outros benefícios, como o livramento condicional ou regime mais favorável de execução (leia-se hoje, quarenta anos, tendo em vista a atual redação do artigo 75, CP, dada pela Lei 13.964/19).

Outra perplexidade que pode surgir com a criação da qualificadora do “Homicídio contra menor de 14 anos” é o conflito com a causa especial de aumento de pena para o homicídio doloso, constante da parte final do § 4º., do artigo 121, CP, conforme redação dada há tempos pela Lei 10.741/03.

No que tange ao aumento ali previsto para os idosos (maiores de 60 anos) não se vislumbra qualquer conflito, já que não foi criada qualificadora nova como na hipótese dos menores de 14 anos. Neste último caso, a primeira impressão que pode surgir é a de que teria havido uma revogação tácita do trecho do § 4º. , do artigo 121, CP quando prevê aumento de pena quando a vítima do homicídio doloso é menor de 14 anos. Isso porque agora se aplicaria a qualificadora e não o aumento. Pretender aplicar concomitantemente o aumento e a qualificadora configuraria “bis in idem”.

Realmente, o intento de aplicar ambos os incrementos penais seria inviável devido à dupla apenação pelo mesmo motivo (idade da vítima). No entanto, é preciso perceber que o legislador não cometeu um erro ao não revogar expressamente o aumento de pena para casos de vítimas menores de 14 anos. [76]

Doravante, poderá ser levado a termo o seguinte procedimento:

1)Em usando a acusação a qualificadora do artigo 121, § 2º., IX, CP , não poderá lançar mão da majorante do artigo 121, § 4º., “in fine”, CP, pois configuraria “bis in idem”. Pensa-se nestes casos em situações em que a única qualificadora seja a da idade da vítima;

2)Havendo, porém, mais de uma qualificadora e dentre elas a de que a vítima é menor de 14 anos, deverá o acusador, na busca da pena mais justa e rigorosa, qualificar o crime com a outra figura e utilizar a condição etária da vítima como causa e de aumento de pena. Em geral se discute se na existência de mais de uma qualificadora se deve usar as demais como elemento de aferição da pena – base (circunstâncias judiciais – artigo 59, CP) ou como Agravante Genérica (artigo 61, CP), prevalecendo o entendimento referente à primeira solução exposta. [77] Mas, neste caso essa discussão se desvanece porque a condição etária da vítima é expressamente prevista como causa de aumento e, desde que não seja utilizada para justificar a qualificação do delito, não existirá “bis in idem” na sua aplicação. Obviamente, não será possível usar também a qualificadora etária seja como agravante seja como circunstância judicial, pois então haveria “bis in idem” com a majorante.  Agora, se o acusador se descuidar ou distrair e apontar a causa etária como qualificadora, realmente ficará impedido de utilizar o aumento de pena pelo mesmo motivo (“bis in idem”). É preciso, portanto, nesses casos, estar atento, pois “dormientibus non succurrit ius” (“O Direito não socorre quem dorme”).  E atenção deve ser redobrada na análise de cada caso concreto, considerando ainda as causas especiais de aumentos previstas exclusivamente para o “Homicídio contra Menor de 14 anos”. Isso porque, em certos casos será mais vantajoso e mais adequado, utilizar sim a qualificadora e deixar de lado o aumento de pena do § 4º. Por exemplo, se houver aplicabilidade do § 2º. – B, I, do artigo 121, CP, sendo a vítima, além de menor de 14 anos, deficiente, por exemplo. O aumento varia de 1/3 até 1/2 e não vale a pena utilizar o § 4º., onde o aumento é de somente 1/3. Com ainda maior razão, nos casos do § 2º., II do artigo 121, CP, quando a vítima for menor de 14 anos e o autor for uma das pessoas ali arroladas, o acréscimo é fixado em 2/3, tornando novamente dispensável o uso do § 4º., do mesmo dispositivo, que prevê um aumento de apenas 1/3. Ou seja, a solução no caso de mais de uma qualificadora somente será a de descartar a do artigo 121, § 2º., IX, CP em prol do § 4º., do mesmo dispositivo, nas situações em que não houver majorantes especiais do “Homicídio contra menor de 14 anos”. Usando-se então a qualificadora do § 2º., IX, do artigo 121, CP com os aumentos do § 2º. – B, I ou II, afastado e impedido fica o emprego da majorante do § 4º. Nesses casos, em havendo outra qualificadora, esta deverá ser avaliada na quantificação da pena – base como circunstância judicial (artigo 59, CP) ou como agravante genérica (artigo 61, CP), sendo a nosso ver a melhor solução a de utilização na determinação da pena – base.

Observe-se que se poderia pensar que toda essa discussão seria dispensável, pois que seria aplicado o incremento de pena do artigo 121, § 2º., IX, CP quando o menor de 14 anos fosse morto em situação de violência doméstica e familiar e o aumento do § 4º., do mesmo dispositivo para mortes de menores fora dessas hipóteses de violência doméstica e familiar. No entanto, essa seria uma errônea interpretação, pois a qualificadora criada não se limita a mortes de menores de 14 anos em violência doméstica e familiar, mas se estende a todas as mortes de menores de 14 anos. Não consta do dispositivo (inciso IX, do § 2º., do artigo 121, CP) nenhuma referência à circunstância de violência doméstica e familiar. A qualificadora somente faz a exigência de que a vítima do homicídio seja menor de 14 anos. Ainda que o dispositivo tenha sido inserido no Código Penal pela Lei Henry Borel, nada existe que justifique a sua restrição aos casos de violência doméstica e familiar, devendo prevalecer sua interpretação gramatical, já que não há nenhum liame sistemático plausível com a Lei 14.344/22. Observe-se que se levarmos em conta a comparação da Lei Henry Borel com a questão da violência doméstica e familiar contra a mulher, isso fica ainda mais claro. Neste segundo caso, a Lei 13.104/15, ao criar a qualificadora do “Feminicídio” e pretender sua aplicação estrita aos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher e misoginia, o fez de forma expressa, de acordo com o artigo 121, VI, CP, referindo-se a “razões da condição de sexo feminino” e ainda definindo essa expressão confusa no artigo 121,  § 2º. – A , I e II, CP, como as situações que envolvam “violência doméstica e familiar” e/ou “menosprezo ou discriminação à condição de mulher” (misoginia). Não há nada similar no § 2º. – B, I e II do artigo 121, CP. Menciona-se, como no inciso IX em estudo, apenas a faixa etária da vítima e os aumentos se referem a situações de ainda maior vulnerabilidade ou de relações de parentesco, responsabilidade ou autoridade. Neste último caso, reforça-se a noção de que a qualificadora é ampla, abrangendo qualquer homicídio de menor de 14 anos, pois que se fosse ligada apenas às relações domésticas e familiares, vários casos elencados no inciso II do § 2º. – B do artigo 121, CP constituiriam “bis in idem” e seriam inaplicáveis (v.g. ascendentes, padrastos etc.).

Também advogando a tese da natureza ampla da qualificadora em estudo, encontra-se o escólio de Gilaberte:

O homicídio é qualificado sempre que for praticado contra pessoa menor de 14 anos, mesmo que não decorra de violência doméstica ou familiar. Essa qualificação se deve à vulnerabilidade intensificada da vítima, menos apta a empreender autodefesa de forma eficaz. Cremos que surgirão posições doutrinárias defendendo que o homicídio qualificado pela idade da vítima necessariamente deve ser praticado em situação de violência doméstica ou familiar, cumprindo-se, assim, a ratio legis. Mas não nos parece o raciocínio mais acertado, quando comparamos o homicídio etário com o feminicídio: neste, a lei deixa claro que não basta a morte de uma mulher, sendo imprescindível que esta morte ocorra nas circunstâncias do art. 121, § 2º-A do CP; naquele, existe apenas a menção à idade. [78]

 

Relevante e oportuna ainda é a observação do mesmo autor quanto ao fato de que para a configuração da qualificadora em estudo deve o agente ter ciência da idade da vítima, pois, caso contrário, incidirá em “erro de tipo” que afastará a qualificação (inteligência dos artigos 19 e 20, CP). [79]

A Lei 14.344/22 também alterou a redação do artigo 121, § 7º., II, CP. Ali era previsto um aumento de pena da ordem de 1/3 até a 1/2  para os casos de “Feminicídio” quando o crime tivesse por vítima menores de 14 anos, maiores de 60 anos ou pessoa com deficiência. A Lei Henry Borel retirou a hipótese dos menores de 14 anos, mantendo apenas a majorante etária para os maiores de 60 anos. A retirada é compreensível. Com a criação da qualificadora do “Homicídio contra Menores de 14 anos”, em caso de “Feminicídio” contra menina menor de 14 anos, haverá agora crime duplamente qualificado e a somatória de mais um incremento penal pelo mesmo motivo constituiria “bis in idem”. Note-se que também não seria possível manter tal aumento etário (o do § 7º., agora revogado), qualificando o homicídio via “Feminicídio” e utilizando a questão etária para aplicar o aumento de pena para homicídio doloso previsto no § 4º., do artigo 121, CP. Da mesma foram ocorreria “bis in idem”. Haveria agora, não uma qualificadora e um aumento pelo mesmo motivo etário, mas dois aumentos pelo mesmo motivo etário, o que é igualmente inviável. Portanto, a eliminação da majorante do artigo 121, § 7º. , II, CP para as menores de 14 anos foi uma questão técnica incontornável.

Não obstante, na atual conjuntura, com a eliminação do aumento de pena para o caso de meninas menores de 14 anos específico do Feminicídio, em ocorrendo um crime duplamente qualificado, é também possível, como acima já demonstrado, optar pela qualificação devido ao Feminicídio e não utilizar a qualificadora da menoridade, aplicando a causa de aumento de pena do § 4º. do artigo 121, CP. [80] Também, se houver aumentos específicos do § 2º. – B, será preferível sempre utilizar a qualificadora etária e deixar o Feminicídio como circunstância judicial a ser aferida na pena – base, nos termos do artigo 59, CP.

Outra alteração procedida no mesmo § 7º., inciso II foi a ampliação das pessoas vulneráveis, afora os maiores de 60 anos, que justificam a majoração. Antes era previsto o caso das pessoas com deficiência. Com o advento da Lei 14.344/22, além das “pessoas com deficiência”, ensejam o aumento também as vítimas “com doenças degenerativas que acarretem condição limitante ou de vulnerabilidade física ou mental”, ainda que não se enquadrem na definição de “pessoa com deficiência” prevista, como já dito, no artigo 2º., da Lei 13.146/15 (Estatuto da Pessoa com Deficiência). Um exemplo prático seria o de uma pessoa debilitada por “Lúpus Eritematoso Sistêmico”, [81] enfraquecida e, portanto, mais vulnerável, embora não classificável como “deficiente” físico ou mental.

Obviamente todas essas inovações, seja a qualificadora, sejam os aumentos de pena ora expostos, somente poderão ser aplicados para os casos de homicídio acontecidos posteriormente à entrada em vigor da Lei 14.344/22, pois que não podem tais regras retroagir, já que constituem “novatio legis in pejus”.

 

9-ALTERAÇÃO EM CAUSA DE AUMENTO DE PENA DOS CRIMES CONTRA A HONRA

 

A Lei 14.344/22 também alterou a redação da causa especial de aumento de pena para os crimes contra a honra, prevista no artigo 141, inciso IV, CP.

O aumento previsto continua a ser da ordem de 1/3, mas agora se ampliam os casos de majoração. Antes era previsto o incremento penal quando a vítima fosse maior de 60 anos ou deficiente. Agora se acrescentam as vítimas crianças e adolescentes. Outra mudança é meramente formal. A lei antes falava em pessoa “portadora” de deficiência. Atualmente menciona pessoa “com” deficiência. É realmente um ganho redacional, pois ninguém efetivamente “porta” sua deficiência. A pessoa “tem” uma deficiência ou “é” deficiente. Se fosse o caso de “portar”, bastaria jogar fora a deficiência e tornar-se uma pessoa sã, a não ser que se seja adepto das tresloucadas diatribes atribuídas ao suposto “capacitismo”, pretendendo enxergar evidentes deficiências como desejáveis e considerar discriminação ou preconceito o reconhecimento de uma incapacitação objetiva ensejada pela deficiência!

As novas hipóteses de majoração da pena (crianças e adolescentes) são aplicáveis somente para os casos que ocorram após o início de vigência da Lei 14.344/22, já que se trata de “novatio legis in pejus” que não admite retroatividade.

Embora o “caput” do artigo 141, CP determine que esse aumento seja aplicado a “qualquer” dos crimes contra a honra, o inciso IV em estudo ressalva que não deverá ser utilizado nos casos qualificados previstos no artigo 140, § 3º., CP. Como se sabe o artigo 140, § 3º., CP se refere à chamada “Injúria Preconceito ou Racial”. O legislador impediu o emprego do aumento porque nesse caso específico se configuraria “bis in idem” quanto aos maiores de 60 anos e os deficientes que já são abrangidos pela qualificadora do § 3º., do artigo 140, CP. Aproveitou o legislador para corrigir um equívoco terrível que existia anteriormente. Agora a lei não faz a ressalva genérica de não aplicação do aumento com relação aos crimes de “injúria”, mas especificamente aos de “injúria qualificada” prevista no artigo 140, § 3º., CP. Isso é o correto. Quando um idoso ou deficiente for injuriado com elementos referentes à sua condição, o crime de injúria já irá ser qualificado por tal motivo, de modo que não se justificaria mais um incremento punitivo pela mesma razão. Acontece que quando a lei bloqueava o aumento para qualquer caso de injúria, ocorria uma situação injustificável. Se um idoso ou deficiente fosse injuriado, mas com elementos que nada tinham a ver com sua condição, então seria aplicado o artigo 140, “caput”, CP (Injúria Simples) e não haveria qualificação pela condição de idoso ou deficiente. Portanto, não existiria óbice justo para deixar de aplicar a majorante. Mesmo assim, a lei impedia sua aplicação. Com a alteração, referindo-se a norma apenas ao § 3º., do artigo 140, CP, essa situação fica resolvida. Acaso o idoso ou deficiente seja ofendido com relação à sua condição, aplica-se o artigo 140, § 3º., CP sem aumento, pois que isso já qualificou o crime. Agora, se o idoso ou deficiente for ofendido sem a utilização de elementos referentes à sua condição, então o crime é de “Injúria Simples” (artigo 140, “caput”, CP). Ora, não havendo incremento punitivo pela condição de idoso ou deficiente, pode e deve perfeitamente ser aplicado o aumento previsto no artigo 141, IV, CP, sem qualquer “bis in idem”. Observe-se, porém, que esse aumento para os idosos e deficientes nos casos de injúria simples, somente poderá ser aplicado para as situações ocorridas após a vigência da Lei 14.344/22, pois antes o incremento não era possível, de maneira que se trata de “novatio legis in pejus” sem força retroativa.  Além disso, se a redação antiga fosse mantida, nos casos de “crianças e adolescentes”, que não levam à qualificadora do § 3º., do artigo 140, CP, também não se poderia aplicar o aumento aos casos de injúria, mas só de calúnia ou difamação, o que não se justificaria de forma alguma. Atualmente, com a referência somente ao § 3º., sob comento, havendo injúria contra crianças e adolescentes, a majorante pode perfeitamente ser aplicada, pois não haverá norma impediente.

Poderia surgir a dúvida de que ainda que haja incriminação no artigo 140, § 3º., CP, mas não pela condição de idoso, deficiente, criança ou adolescente e sim por questão racial, de cor, de etnia, religião ou origem, sendo a vítima idosa, deficiente, criança ou adolescente, se pudesse  aplicar o aumento do inciso IV do artigo 141, sobre a pena qualificada, já que não existiria “bis in idem” impeditivo. Acontece que essa interpretação seria errônea. Isso porque a lei veda a aplicação do aumento a qualquer caso de incidência no artigo 140, § 3º., CP. Pode até ser que fosse melhor deixar essa questão de coexistência entre o artigo 140, § 3º., CP e o artigo 141, inciso IV, CP à casuística dos aplicadores da norma nos casos concretos. Mas, não foi isso o que fez o legislador. Optou ele por impedir o aumento quando o crime fosse qualificado e é isso que deve ser feito por força da legalidade. Possivelmente tenha considerado o legislador que o incremento da qualificadora já seria reação suficiente ao maior desvalor da ação ali implicado, de modo que o acréscimo do aumento de pena seria exagerado. A nosso ver, não seria, mas se trata de opção de política criminal.

 

10-COMPETÊNCIA E ATRIBUIÇÃO DE POLÍCIA JUDICIÁRIA PARA APURAÇÃO DE CRIMES DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A MULHER

 

A atribuição de Polícia Judiciária será da Polícia Civil Estadual, pois que não se trata de nenhum caso de atribuição federal (inteligência do artigo 144, I e IV e § 1º., I a IV, CF c/c artigo 109, I a XI, CF). Essa atribuição da Polícia Civil será regrada pela territorialidade do ilícito, nos termos do artigo 4º. c/c 70, CPP.

A competência para julgamento também é, pelos mesmos motivos, da Justiça Comum Estadual. Diversamente da Lei Maria da Penha, que em seu artigo 14 prevê a criação de “Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher”, a Lei Henry Borel (Lei 14.344/22) não fez previsão semelhante. Por esta razão e outras questões práticas, a competência será da Justiça Comum.

Entretanto é bom lembrar que o artigo 23, “caput” da Lei 13.431/17 prevê a possibilidade de criação de Juizados e Varas especializadas em crimes contra a criança e o adolescente. Também prevê, no Parágrafo Único do mesmo dispositivo, que enquanto tais juizados não forem instalados, o julgamento e execução dessas causas referentes à violência contra menores, devem, preferencialmente, ficar a cargo dos Juizados Especiais de Violência Doméstica e Familiar contra a mulher. Note-se que toda a redação da Lei 13.431/17 é condicional e programática, e não imperativa. O grande problema é que não há instalação de juizados ou varas especiais em violência contra menores e há pouquíssimos casos de juizados especiais de violência doméstica contra a mulher. Assim sendo, em geral e na prática, a competência será da Justiça Comum Estadual por critério de territorialidade e distribuição normal. Isso pelo menos até que se venha a instituir juizados e varas especiais, seja de violência doméstica e familiar contra a mulher seja contra as crianças e adolescentes.

 

11- “VACATIO LEGIS”

 

Necessário atentar para o fato de que a Lei 14.344/22 em estudo não entra em vigor de imediato. É previsto um período de 45 dias de “vacatio legis” (artigo 34).

Conforme correta orientação de Pereira:

Considerando as normas contidas na Lei Complementar nº 95, de 1998, artigo 8º, § 1º, segundo a qual, a contagem do prazo para entrada em vigor das leis que estabeleçam período de vacância far-se-á com a inclusão da data da publicação e do último dia do prazo, entrando em vigor no dia subsequente à sua consumação integral, a novíssima lei entrará em vigor no dia 09 de julho de 2022. [82]

Será a partir dessa data que as normas que imprimem mais rigor penal passarão a ser aplicadas aos casos de violência doméstica e familiar contra a criança e o adolescente, não podendo retroagir, conforme já exposto neste texto.

 

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Sobre o autor
Eduardo Luiz Santos Cabette

Delegado de Polícia Aposentado. Mestre em Direito Ambiental e Social. Pós-graduado em Direito Penal e Criminologia. Professor de Direito Penal, Processo Penal, Medicina Legal, Criminologia e Legislação Penal e Processual Penal Especial em graduação, pós - graduação e cursos preparatórios. Membro de corpo editorial da Revista CEJ (Brasília). Membro de corpo editorial da Editora Fabris. Membro de corpo editorial da Justiça & Polícia.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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