1. VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A CRIANÇA E O ADOLESCENTE
Desde a edição da Lei Maria da Penha (Lei 11.340/06) tem-se criticado a ausência de regras protetivas especiais para a violência no âmbito doméstico e familiar contra outros hipossuficientes, em especial as crianças e adolescentes. A abordagem do problema da violência doméstica e familiar restrita ao aspecto de sexo sempre foi claramente incompleta, em suma, reveladora de insuficiência protetiva.
O advento da cognominada “Lei Henry Borel” (Lei 14.344/22) constitui um marco na colmatação dessa lacuna protetiva, de modo que seus dispositivos praticamente espelham o sistema já existente para as mulheres, conforme a Lei Maria da Penha. Seu âmbito de incidência é mais amplo, pois atinge os menores independentemente de sexo.
Trata-se, conforme destaca Sannini, de mais um caso
do fenômeno conhecido como “especificação do sujeito de direito”, cujo objetivo é dar, por meio de lei, tratamento especial para pessoas em condição de maior vulnerabilidade, promovendo, assim, o princípio constitucional da igualdade. 1
O artigo 1º. da Lei 14.344/22 destaca os dispositivos constitucionais em que se fundamentam as regras que vêm a lume (artigo 226, § 8º., CF e artigo 227, § 4º., CF), bem como os tratados, convenções e acordos acerca da proteção à infância e juventude firmados pelo Brasil na seara internacional. Dessa forma, não poderia deixar de repetir uma assertiva que também consta da Lei Maria da Penha a respeito da violência doméstica e familiar contra a mulher. A violência doméstica e familiar contra as crianças e adolescentes é declarada como “uma das formas de violação dos direitos humanos” (artigo 3º., da Lei 14.344/22), o que implica em atribuir a toda violência dessa espécie um enorme desvalor da conduta, impedindo tratamentos legais e institucionais condescendentes ou pouco rigorosos.
Importante salientar que a Lei Henry Borel será aplicada à violência doméstica e familiar contra os menores e não a qualquer violência que tenha por sujeito passivo uma criança ou adolescente. A definição do que seja um caso de violência doméstica e familiar vem descrita no artigo 2º., incisos I, II e III da Lei 13.444/22, praticamente em cópia dos conceitos da Lei Maria da Penha. Também determina o Parágrafo Único do mesmo artigo 2º., a utilização das definições de violência doméstica estabelecidas na Lei 13.431/17, mais precisamente em seu artigo 4º.
Significa dizer que se um adulto, por exemplo, se desentender com um adolescente na rua devido a um problema de trânsito (v.g. o menor esbarra sua bicicleta no carro estacionado do maior) e o agredir fisicamente, não tem aplicação a Lei Henry Borel, já que inexiste vínculo doméstico ou familiar. Doutra banda, se um pai praticar maus – tratos contra o filho terá plena aplicação a legislação em comento.
Neste item vale desenvolver o estudo da violência contra crianças e sua aferição por critérios objetivos, que pode muito auxiliar nas constatações, denúncias e apurações.
A violência no âmbito doméstico, principalmente contra crianças de tenra idade, é questão chocante e, muitas vezes, relegada a um segundo plano pela sociedade, que prefere ignorar a realidade em face de sua natureza abjeta.
As sequelas e características desse tipo de violência conduzem a um conjunto de sintomas capazes de levar a uma constatação segura da possibilidade de uma criança estar sendo vítima desse tipo de conduta.
Tal conjunto tem sido denominado de "Síndrome de Caffey" ou "Síndrome da Criança Espancada" e pode ser um instrumento de grande valia para a detecção de casos de espancamento de crianças por parte de profissionais das mais diversas áreas que tenham algum contato com crianças ou venham a investigar casos que tais (v.g. professores, pedagogos, psicólogos, médicos, policiais etc.).
Por incrível que pareça, as primeiras características dominantes dessa violência são que os atos ocorrem normalmente no lar e em situações do cotidiano. Os agressores geralmente são os pais ou responsáveis, sendo fato que as mães predominam nas estatísticas. As crianças são especialmente aquelas entre zero e três anos, aumentando a incidência em razão direta à maior ou menor vida de relacionamento da criança, ou seja, nas fases em que começa a engatinhar, andar, falar, enfim, ter maior manifestação e contato com o ambiente em que vive.
Considerando as circunstâncias em que normalmente a conduta do agressor se desenvolve, torna-se comum o uso de objetos domésticos como instrumentos para provocar as lesões (Ex. ferro de passar, cabos de vassouras, garfos, facas de cozinha, panelas, alimentos fumegantes etc.), sendo ainda comuns agressões manuais (chutes, tapas, socos) e até o arremesso das vítimas contra a parede ou o chão.
Em consequência ainda das condições peculiares desses casos, pode-se verificar caracteres de lesões que são indicadores:
A sua produção é geralmente marcada por um trajeto de cima para baixo, logicamente, pois produzida por um adulto contra uma criança. Ainda neste sentido observe-se que a gravidade das lesões e mesmo consequências letais são comuns nesse tipo de agressão devido à descomunal desproporção física entre os sujeitos ativos e passivos, o que pode até mesmo ocasionar resultados não previstos pelo agressor (preterdolo) que não mensura devidamente o grau de violência de seus golpes.
O rosto e a cabeça são suas sedes mais comuns, inclusive por um instinto natural de qualquer agressor em atacar tais partes do corpo. Neste sentido são comuns queimaduras no rosto e na boca, especialmente relacionadas ao momento em que a criança é alimentada e recusa ou quer o alimento com impaciência, findando por receber a comida ainda muito quente propositadamente para queimar-se ou ainda agressões com talheres e outros utensílios (garfos, facas de cozinha, panelas etc.).
Também relacionadas a queimaduras, pode-se mencionar casos em que com caráter "educativo" o agressor vem a queimar as nádegas da criança como castigo por haver urinado ou defecado nas roupas.
Em casos mais graves as agressões na cabeça podem superar simples rupturas do couro cabeludo e chegar até à morte da vítima por traumatismo crânio-encefálico, ou mesmo em casos de espancamento na região do tronco, provocar quebra de costelas e rotura de órgãos internos.
Outra causa de morte comum é a asfixia, especialmente nos casos em que se pretende calar a criança que chora e isso redunda em sufocação.
As fraturas de ossos longos em datas diversas e a presença de equimoses de idade variável, constatáveis pela evolução cromática do espectro equimótico, 2 são outras características altamente indiciárias do espancamento contínuo da criança.
Obviamente, todas essas indicações devem ser cuidadosamente cotejadas com as narrativas dos suspeitos agressores que procurarão dar explicações acerca da origem das lesões, a serem analisadas quanto à sua verossimilhança e discrepância ou não com a natureza das lesões encontradas.
Outro fator indiciário da violência doméstica a ser salientado, nos casos de múltiplas lesões de datas diversas, é a procura de atendimento à vítima em hospitais e prontos-socorros diferentes em cada oportunidade, certamente visando evitar a constatação da continuidade das ocorrências lesivas envolvendo os mesmos personagens.
Este breve esboço do quadro indicador da chamada "Síndrome da Criança Espancada" desvela uma situação altamente repugnante e difícil de aceitar como realidade. Porém, existe em todas as camadas sociais e pode estar se passando ao nosso lado sem que houvéssemos nos conscientizado disso, de modo que sua divulgação é o principal objetivo desta exposição.
A conscientização dessa realidade há que ser difundida a fim de sensibilizar a sociedade no sentido de criar mecanismos necessários para atender com eficiência e rapidez esses casos de alta gravidade e de consequências tão funestas e cruéis para o desenvolvimento dos vitimados.
Atente-se que as medidas nesse sentido não hão de restringir-se ao tratamento penal da matéria, mas deverão voltar-se especialmente ao tipo de assistência que se deverá prestar às vítimas, garantindo sua incolumidade física e psíquica.
No aspecto criminal, tirante os casos mais extremos, (arts. 136,parágrafos 1º.,2º. e 3º.; 129, parágrafos 1º. , 2º. e 3º., e 121 e seu § 2º. CP ), a violência perpetrada contra a criança, principalmente aquela praticada pelos responsáveis, poderia ficar adstrita aos simples "maus-tratos", considerados "infração de menor potencial ofensivo" ( art. 136. "caput" CP c/c art.61 da Lei 9099/95 ). Isso ainda que fossem continuamente infligidos à vítima. 3
Com o advento da Lei 9455 de 7 de Abril de 1997 que definiu os crimes de tortura, procurou-se dar um tratamento mais severo à matéria com os dispositivos do art. 1º., II e §§ 3º. e 4º.,II. Não obstante, sua caracterização muitas vezes esbarrará na dificuldade de comprovação do elemento subjetivo que diferenciaria os "maus-tratos" da "tortura". 4
Já o art. 233. da Lei 8069/90 (ECA) que era de validade duvidosa antes da definição de "tortura", trazida agora pela Lei 9455/97, restou revogado por esta e, incrivelmente, com tratamento penal mais brando ao autor da violência contra crianças e adolescentes, já que a nova pena prevista na Lei de Tortura é menor que a anteriormente prevista no ECA, salvo se aplicado o patamar de aumento máximo previsto no § 4º., inciso II, do artigo 1º., da Lei 9.455/97, o que é muito raro.
Certamente pecou a Lei 9099/95 ao eleger como único critério determinador da infração de menor potencial ofensivo o "quantum" da pena máxima, ensejando situação incrível em que um crime terrivelmente danoso pelo seu aspecto deletério da formação da criança, venha a ser como tal considerado. Mas, isso é consertado com a nova redação dada pela Lei 14.344/22 ao artigo 226, § 1º., da Lei 8.069/90 (ECA), vedando a aplicação dos benefícios da Lei 9.099/95 aos casos de violência contra crianças e adolescentes.
Também falhou o legislador em não descrever de forma casuística as condutas caracterizadoras da tortura, afastando discussões acerca de elementos subjetivos de difícil comprovação.
Assim sendo, a tutela penal nos casos de violência perpetrada contra criança apresenta-se branda e, principalmente, conturbada no aspecto da caracterização das condutas mais graves, o que, infelizmente, aparenta indicar mais uma fonte de impunidade. A Lei Henry Borel é uma iniciativa positiva no sentido de promover maior proteção legal à infância e juventude, mas não é capaz de solucionar alguns fatores de insuficiência protetiva que ainda existem na legislação brasileira.
Entretanto, conforme já se disse, ainda mais importante que o tratamento penal da matéria, são os meios de assistência a serem colocados à disposição da vítima. Neste sentido destacáveis os artigos 98, II e 101, VII do ECA (Lei 8069/90), sendo fato que a iniciativa da criação de locais apropriados ao abrigo de crianças vítimas de violência com devida assistência (médica, psicológica etc.), deve ser prioridade e não somente nos grandes centros, mas em todos os municípios, pois a violência doméstica não é "privilégio" de determinadas localidades, constituindo-se numa triste realidade existente em qualquer meio. Novamente a Lei Henry Borel surge como um progresso neste aspecto, especialmente no que tange às medidas protetivas dispostas às crianças e adolescentes em situação de abuso.
O quadro real, porém, é desolador, uma vez que com mais de três décadas vigência do ECA, poucos são os locais onde se têm os mecanismos necessários à efetiva proteção imediata das crianças e mesmo onde, por alguma iniciativa louvável e rara, são criados, sua manutenção e continuidade parecem estar sempre em cheque, não sendo assumidos como imprescindíveis à comunidade.
Fica, portanto, mais um apelo à conscientização quanto a esta realidade que exige mobilizações imediatas e soluções efetivas em prol da defesa daqueles que não podem fazê-lo por si mesmos. Espera-se que a Lei 14.344/22 e sua repercussão social sirvam, parafraseando Drummond em sua “Canção Amiga”, como “uma canção que faça acordar os homens e adormecer as crianças”. 5
2. DO ATENDIMENTO PELA AUTORIDADE POLICIAL
Nos artigos 11 a 14 a lei regula o atendimento de ocorrências de violência doméstica e familiar contra menores pela Autoridade Policial em moldes também similares ao já determinado para o caso das mulheres na Lei Maria da Penha.
A Lei 14.334/22 repete o avanço da Lei Maria da Penha quanto à possibilidade de deferimento de afastamento imediato do agressor do ambiente doméstico realizado diretamente pela Autoridade Policial em sentido estrito (Delegado de Polícia), onde não for sede de Comarca; ou mesmo por policiais em geral (Autoridade Policial em sentido amplo) quando o local não for sede de comarca e também não houver Delegado de Polícia disponível (artigo 14, I, II e III e § 2º.). Trata-se do que se convencionou chamar de “gatilho de eficiência” dos instrumentos protetivos de urgência, não os deixando enredar pela burocracia e pela lentidão processual.
Prevê ainda a possibilidade de que o Conselho Tutelar represente pelo afastamento do agressor ao Juiz, ao Delegado ou Policial, conforme o caso (vide também as atribuições do Conselho Tutelar acrescidas nos incisos XIII a XX do artigo 136 do ECA (Lei 8.069/90) pelo artigo 29 da Lei Henry Borel). Note-se que o Conselheiro Tutelar não é legitimado para determinar o afastamento diretamente, mas somente por postular (representar, por meio de capacidade postulatória anômala) essa medida perante as autoridades enumeradas na lei (vide artigo 14, § 1º.).
Novamente, na mesma senda da Lei Maria da Penha, o artigo 14, § 3º., da Lei 14.344/22 veda a concessão de liberdade provisória ao preso nos casos de risco à integridade física da vítima ou à efetividade da medida protetiva de urgência. A disposição especial está em plena consonância com o disposto no artigo 312, CPP no que tange à garantia da “ordem pública”, bem como ao “perigo gerado” pela liberdade do imputado. Assim também se coaduna com a proibição de concessão de fiança quando presentes os motivos da Prisão Preventiva (artigo 324, IV, CPP). Isso quer dizer que a vedação de liberdade provisória deve ser analisada e fundamentada casuisticamente, tendo em mira não somente o disposto no artigo 14, § 3º., da Lei 14.344/22, mas também as regras atinentes aos requisitos e fundamentos da Prisão Preventiva, conforme determinado no Código de Processo Penal.
3. MEDIDAS PROTETIVAS DE URGÊNCIA
Agora acaba a celeuma referente à possibilidade ou não de utilizar a Lei Maria da Penha em analogia para casos de crianças ou adolescentes do sexo masculino vítimas de violência doméstica ou familiar.
A Lei Henry Borel prevê, nos mesmos moldes da Lei 11.340/06, medidas protetivas de urgência às crianças e adolescentes vítimas de violência doméstica e familiar, independentemente do sexo (artigos 15 a 21).
Em geral se segue rito similar ao já previsto anteriormente na Lei Maria da Penha para a concessão de medidas protetivas de urgência.
Uma diferença importante é que, considerando a incapacidade dos menores, não é previsto o requerimento direto da medida pela vítima, tal como ocorre em regra com as mulheres (artigo 16 da Lei 14.344/22). A legislação prevê a concessão pelo Juiz, mas não por requerimento da criança ou adolescente e sim do Ministério Público, da Autoridade Policial 6, do Conselho Tutelar 7 ou, finalmente, a pedido de pessoa que atue em favor da criança ou do adolescente (v.g. pais, tutores, responsáveis etc.).
Outra diferença diz respeito à notificação dos atos relativos ao agressor, especialmente os pertinentes à entrada e saída da prisão (artigo 18 da Lei 14.344/22). No caso da Lei Maria da Penha, a mulher deve ser notificada pessoalmente. Mas, quanto às crianças e adolescentes, considerando sua incapacidade, foi necessária uma adaptação, de modo que será notificado o responsável pela criança e, se for o caso, intimado o advogado constituído ou defensor público. Observe-se que a notificação do responsável e a intimação do advogado ou defensor são cumulativas, de forma que a informação de um não dispensa a do outro.
A Lei Henry Borel faz a mesma distinção presente na Lei Maria da Penha entre medidas protetivas de urgência que obrigam o agressor (cuja restrição ou atuação estatal recai diretamente sobre o infrator) e medidas protetivas de urgência à vítima (cuja ação estatal se dirige à vítima, recaindo sobre ela com vistas à sua tutela) (vide artigos 20 e 21 da Lei 14.344/22). No entanto, a nosso ver, comete o legislador alguns equívocos no que se refere às medidas protetivas de urgência à vítima nos incisos II e III do artigo 21. O inciso II trata do afastamento do agressor do lar. O inciso III se refere à Prisão Preventiva do agressor. Nesse passo, não se tratam de medidas protetivas de urgência à vítima e sim que obrigam o agressor. Tanto é fato que o inciso II é repetido no artigo 20 também inciso II da lei.
Importa salientar que o rol de medidas protetivas da Lei 14.344/22 não é taxativo. Por disposição expressa do artigo 20, § 1º. e artigo 21, § 2º. do diploma em comento, o magistrado pode adotar outras medidas protetivas previstas na legislação sempre que forem úteis à proteção da criança, do adolescente, de seus familiares, de noticiante ou denunciante. Significa dizer que são aplicáveis, por exemplo, medidas protetivas previstas na Lei Maria da Penha (Lei 11.340/06), não importando o sexo da vítima, bem como outras cautelares previstas, por exemplo, no artigo 319, CPP. Estabelece a Lei 14.344/22 uma integração do sistema de medidas protetivas e cautelares em prol da tutela da integridade física e psíquica e da vida das crianças e adolescentes. Por oportuno, observe-se que a Lei Henry Borel não dispôs a respeito de medidas protetivas patrimoniais, diversamente do que ocorre com a Lei Maria da Penha embora tenha acrescido na Lei 13.431/17 o conceito de “violência patrimonial” contra crianças e adolescentes (vide artigo 28 da Lei 14.344/22 e nova redação do artigo 4º., V, da Lei 13.431/17). Dessa forma, de acordo com o artigo 2º., Parágrafo Único da Lei 14.344/22, existe para fins de abusos contra menores, a previsão expressa da “violência patrimonial”. Efetivamente, a chamada “violência patrimonial” certamente pode ocorrer contra as crianças e adolescentes dotadas de patrimônio próprio, tanto que está agora descrita na Lei 13.431/17 (v.g. direitos hereditários ou sucessórios, propriedades, bens ou valores pertencentes diretamente aos menores, contratos esportivos ou artísticos, pensões alimentícias e outros benefícios securitários ou de previdência social, ações empresariais etc.). Nesse passo, conforme exposto, será plenamente possível adotar as providências previstas no artigo 24 da Lei 11.340/06, “mutatis mutandis” para a proteção patrimonial das crianças e adolescentes eventualmente exploradas nesse aspecto, independentemente do sexo da vítima. 8 São exemplares casos concretos de prodígios infantis e juvenis, especialmente na área artística e esportiva, indevidamente explorados e vilipendiados, inclusive sob o prisma patrimonial, por pais, procuradores, empresários, tutores e afins.
Não se olvide, contudo, que os pais, tutores, guardiões ou responsáveis em geral não perdem devido aos dispositivos legais em estudo o poder – dever de administrar os bens dos menores sob seu poder familiar, tutela, guarda ou responsabilidade, sempre no interesse do próprio menor. Assim sendo, são obviamente possíveis e não constituem violência patrimonial, mas exercício regular de direito, eventuais restrições e controles de caráter educativo e disciplinar. Isso, aliás, foi muito bem ressalvado no inciso V, do artigo 4º., da Lei 13.431/17 em sua parte final, quando afirma que a violência patrimonial ocorre nos casos ali descritos, “desde que a medida não se enquadre como educacional”. Isso é muito importante porque a imaturidade dos menores pode levá-los facilmente à dilapidação do próprio patrimônio se não são devidamente assistidos por pessoas responsáveis.
Costa e Araújo apontam como um problema a falta de previsão expressa pelo legislador da modalidade de “violência moral” contra os menores, diversamente do que ocorre com a Lei Maria da Penha (vide artigo 7º., V, da Lei 11.340/06). Em suas palavras:
Um problema detectado no novo diploma é que não previu expressamente proteção em face de atos de violência moral. E o legislador se confundiu ainda mais quando, em pontos específicos da exemplificação legal de violência psicológica, cita constrangimento, humilhação etc., circunstâncias essas que mais se aproximam do rótulo de agressão moral do que psicológica. Deveria ter mantido a técnica e guardado o rigor analítico de tal classificação (a exemplo do que foi feito no âmbito da Lei Maria da Penha). De toda sorte, acreditamos ser perfeitamente possível que o inciso V art. 7º da Lei Maria da Penha socorra essa lacuna da Lei Henry Borel, pois a razão intuitiva de ambas as leis parece assim o permitir (proteção de hipervulneráveis). 9
Há acerto parcial na manifestação dos autores supra, pois que realmente no corpo da Lei 14.344/22 não há previsão da modalidade de “violência moral”, tal qual existe no artigo 7º., V, da Lei Maria da Penha. Nem mesmo a norma constante do artigo 2º., Parágrafo Único, da Lei Henry Borel, remetendo o intérprete e aplicador, para fins de caracterização da violência, às definições contidas na Lei 13.431/17, é capaz de solver a questão. Isso porque também este último diploma se abstém de fazer menção expressa à chamada “violência moral” (vide seu artigo 4º.). Malgrado essa falha técnica, é possível perceber que a proteção dos menores com relação à “violência moral” não ficou totalmente esquecida, pois, embora impropriamente, como frisam os autores em destaque, há referências a “constrangimento, humilhação, discriminação, depreciação, desrespeito, agressão verbal, xingamento, ridicularização, indiferença” e “bullying”. Efetivamente não existe a citação expressa da violência moral, mas certamente esta se encontra abrigada no dispositivo da Lei 13.431/17 que trata da “violência psicológica”. Há um desacerto técnico sim, mas meramente formal, não havendo impedimento da tutela das crianças e adolescentes sob o aspecto moral. Em suma, não se pode considerar que haja uma efetiva lacuna legal. Não bastasse isso, conforme os próprios autores apontam, é plenamente aplicável aos casos de violência doméstica e familiar contra menores, por integração, o artigo 7º., V., da Lei Maria da Penha, o qual trata especificamente da “violência moral” (inteligência do expresso no artigo 33 da Lei 14.344/22).
Por outro lado lembram, com percuciência, os autores enfocados que, tal qual no caso da Lei Maria da Penha, a Lei Henry Borel permite a determinação das medidas protetivas de urgência sem aplicação do contraditório prévio hoje previsto no artigo 282, § 3º., CPP. Isso se justifica porque ambos os diplomas são subsumíveis às exceções previstas pelo próprio artigo 282, § 3º., CPP, quais sejam, as situações de “urgência” ou “perigo de ineficácia”. 10 Poder-se-ia discutir quanto à necessidade de maiores fundamentos a serem aferidos no que tange ao “perigo de ineficácia”, mas parece que tal questionamento se torna inútil diante do próprio nome das medidas protetivas, as quais são “de urgência”. Isso, obviamente, não impede que o magistrado fundamente seu ato de deferimento sem contraditório prévio, seja pela “urgência” expressa pela própria lei, seja também, em reforço, por eventual caso em que também concorra a questão da possível “ineficácia da medida”.