4. DOS CRIMES
4.1. DESCUMPRIMENTO DE MEDIDA PROTETIVA DE URGÊNCIA
Com redação praticamente idêntica à do artigo 24 – A da Lei Maria da Penha, é previsto, no artigo 25 da Lei Henry Borel, o crime de descumprimento de medida protetiva de urgência.
Assim sendo, valem os comentários feitos quando do estudo do dispositivo incluído na Lei Maria da Penha pela Lei 13.641/18: 11
As inovações legislativas da Lei 11.340/06 (Nova redação dada pela Lei 13.641/18) e da Lei 14.344/22 vão de encontro com a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, que se posicionava no sentido de que o descumprimento de medidas protetivas de urgência não caracterizaria o crime de desobediência, uma vez que tal conduta já seria sancionada na esfera processual, seja pela possibilidade de substituição da medida protetiva decretada ou pela possibilidade de decretação da prisão preventiva do sujeito. Nesse sentido:
(...) De acordo com a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, o crime de desobediência apenas se configura quando, desrespeitada ordem judicial, não existir previsão de outra sanção em lei específica, ressalvada a previsão expressa de cumulação. Precedentes. A Lei n. 11.340/2006 prevê consequências jurídicas próprias e suficientes a coibir o descumprimento das medidas protetivas, não havendo ressalva expressa no sentido da aplicação cumulativa do art. 330. do Código Penal, situação que evidencia, na espécie, a atipicidade da conduta. Precedentes. 5. Ordem parcialmente concedida para absolver o paciente pelo crime de desobediência, diante da atipicidade da conduta.12
A jurisprudência desta Corte Superior de Justiça está pacificada no sentido de que o descumprimento de medidas protetivas estabelecidas na Lei Maria da Penha não caracteriza a prática do delito previsto no art. 330. do Código Penal, em atenção ao princípio da ultima ratio, tendo em vista a existência de cominação específica nas hipóteses em que a conduta for praticada no âmbito doméstico e familiar, nos termos do art. 313, III, do Código de Processo Penal.13
Agora, contudo, essa discussão perde o sentido diante da previsão legal de tipos penais específicos. Note-se que a intenção do legislador foi a de reforçar a proteção às mulheres, e agora, crianças e adolescentes vítimas de violência doméstica e familiar, criando um novo instrumento capaz de constranger o sujeito passivo da medida protetiva a cumpri-la. Isto, pois, já existe no artigo 313, inciso III, do CPP, uma ferramenta coativa que é, justamente, a possibilidade de prisão preventiva para assegurar o cumprimento de tais medidas.
O objeto jurídico tutelado pelos novos tipos penais é a manutenção do respeito às decisões judiciais. O sujeito ativo do crime é apenas a pessoa vinculada à medida protetiva de urgência, tratando-se, portanto, de crime próprio. O sujeito passivo, por outro lado, é, primariamente, a Administração da Justiça, mas secundariamente a própria vítima da violência doméstica e familiar. Justamente por isso, já vislumbramos uma possível divergência na doutrina.
Considerando que se trata de crime contra a Administração da Justiça, certamente surgirão entendimentos no sentido de que o artigo 41, da Lei Maria da Penha, que afasta a aplicação da Lei 9.099/95 e, consequentemente, todos os seus benefícios, bem como o artigo 226, § 1º., do ECA (Lei 8.069/90 com nova redação dada pela Lei 14.344/22), não deveriam ser observados no caso específico dessas infrações penais, afinal, numa análise objetiva da conduta, não haveria violência doméstica, familiar ou afetiva contra a mulher ou às crianças ou adolescentes.
Contudo, essa posição não merece prosperar. Primeiro porque, conforme destacado, a mulher e as crianças ou adolescentes são as vítimas indiretas da conduta, ficando absolutamente expostas com o descumprimento das ordens judiciais. Não se pode olvidar que nos termos do artigo 7º, inciso II, da Lei 11.340/06, constitui violência psicológica qualquer conduta que cause dano emocional à mulher. Da mesma maneira há reconhecimento da violência psicológica contra as crianças e adolescentes, na forma do disposto no artigo 2º., Parágrafo Único, da Lei 14.344/22 que remete à Lei 13.431/17 (artigo 4º., II, “a”, “b” e “c”). Ora, é evidente que ao desrespeitar uma ordem judicial o agente abala diretamente a estrutura emocional da vítima, que se sentirá vulnerável à prática de outras infrações penais, gerando angústia e isolamento.
Demais disso, numa interpretação sistemática e teleológica da Lei, só podemos concluir que a intenção do legislador foi a de ampliar o âmbito de proteção à mulher e às crianças e adolescentes, o que é reforçado pela previsão constante no §2º, do artigo 24-A da Lei Maria da Penha e também no § 2º., do artigo 25 da Lei Henry Borel, que proíbe a concessão de liberdade provisória mediante fiança pelo delegado de polícia, conforme veremos melhor adiante, restringindo essa prerrogativa ao juiz.
Ora, torna-se evidente que ao mencionar a vedação da fiança em caso de prisão em flagrante pelo delegado de polícia, a “mens legis” é exatamente a de aplicar o disposto no artigo 24-A da Lei Maria da Penha e no artigo 25 da Lei Henry Borel em coerência com o disposto no artigo 41 da Lei 11.340/06 e no artigo 226, § 1º. Da Lei 8.069/90 (ECA) (NR dada pela Lei 14.344/22), ou seja, afastar a Lei 9.099/95 e possibilitar a prisão em flagrante, sem que imperem os benefícios típicos das infrações de menor potencial, tais como a substituição da prisão em flagrante pela lavratura de um simples Termo Circunstanciado com liberação do ofensor.
Não há que se falar em inconstitucionalidade na previsão de infrações com penas máximas até 2 anos que não sejam tratadas como de menor potencial. Isso porque a Constituição Federal é explícita em deferir ao legislador ordinário a missão de estabelecer o que será ou não tratado como infração de menor potencial (artigo 98, I, CF). Ademais, o STF já reconheceu a plena constitucionalidade do disposto no artigo 41 da Lei Maria da Penha (ADC 19, de 09.02.2012), o que certamente vale, “mutatis mutandis” para a nova redação do artigo 226, §1º., do ECA, instituída pela Lei 14.344/22.
Por fim, nos termos do artigo 4º, da Lei Maria da Penha, na sua interpretação devem sempre ser levados em consideração os fins a que se destina. E essa orientação legal certamente pode e deve ser aplicada à Lei Henry Borel quanto à proteção das crianças e adolescentes, inclusive porque há expressa autorização de aplicação, naquilo que couber, das disposições, tanto do ECA quanto da Lei Maria da Penha aos casos de violência doméstica e familiar contra crianças e adolescentes (vide artigo 33 da Lei 14.344/22). Com efeito, os tipos penais em questão só podem ser interpretados de uma forma que amplie a proteção à mulher e às crianças e adolescentes vítimas de violência doméstica ou familiar.
Conforme adiantamos, o §2º, do artigo 24-A da Lei Maria da penha e o § 2º. do artigo 25 da Lei Henry Borel estabelecem que na hipótese de prisão em flagrante, “apenas a autoridade judicial poderá conceder fiança”. Não resta dúvida de que com essa previsão legal o legislador objetivou assegurar os interesses da vítima, ampliando, assim, os rigores previstos nas respectivas leis, que, além de impossibilitarem a adoção dos institutos despenalizadores da Lei 9.099/95 (artigo 41 da Lei 11.340/06 e artigo 226, § 1º. da Lei 8.069/90, NR dada pela Lei 14.344/22), também proíbem a imposição de penas de caráter pecuniário (art.17 da Lei 11.340/06 e artigo 226, § 2º., da Lei 8.069/90, NR dada pela Lei 14.344/22) e ainda, no caso específico da Lei Maria da Penha, cria regras especiais para a retratação ao direito de representação (art.16). Quanto a essa regulação da retratação da representação, entendemos que não se aplica aos casos de violência doméstica e familiar contra crianças e adolescentes, atendo-se somente ao caso das mulheres, pois é regra especial que foi omitida pelo legislador na Lei Henry Borel. Se fosse a intenção do legislador aplicar o mesmo sistema aos casos de crianças e adolescentes, teria feito isso expressamente, conforme o fez com vários regramentos especiais da Lei Maria da Penha que foram espelhados na Lei 14.344/22. Mesmo porque há diferença entre as situações. No caso das mulheres é a própria mulher vitimizada adulta, portanto a parte vulnerável, que se retrata, merecendo um cuidado maior quanto à voluntariedade dessa retratação. No caso dos menores, estes não irão nem representar nem retratar-se, mas o farão seus responsáveis legais, que não são em geral vulneráveis ou hipossuficientes. Restará, porém, uma hipótese de aplicação do sistema do artigo 16 da Lei 11.340/06 quando a violência se operar contra menor. Trata-se do caso de menor do sexo feminino. Certamente é visível uma irrazoabilidade de tratamento diverso entre menores masculinos e femininos nesse aspecto, mas há que aplicar a norma mais protetiva que se volta expressamente para as pessoas do sexo feminino. Observe-se, porém, que se, na prática, o Ministério Público requerer e o Juiz deferir a aplicação por integração do artigo 16 da Lei Maria da Penha, mesmo em caso de menor do sexo masculino, isso não gerará nenhum prejuízo, tratando-se apenas de uma cautela protetiva que se faria com sustento na possibilidade de aplicação de dispositivos da Lei 11.340/06 aos casos de violência doméstica e familiar contra menores de qualquer sexo, conforme disposto no artigo 33 da Lei 14.344/22. Pode surgir quem alegue a existência de prejuízo porque a representação e sua retratação são institutos mistos (têm um aspecto penal para além do processual – extinção de punibilidade) e não admitiria aplicação por analogia “in mallam partem” de regra que pode afastar a retratação já procedida. Entretanto, sabe-se que é possível a retratação da representação e também a retratação da retratação enquanto não houver a extinção da punibilidade pela prescrição. Dessa forma, não há diferença se essa retratação da retratação se dá numa audiência judicial ou em qualquer outra circunstância. Trata-se apenas do exercício do direito da vítima de retratar-se de sua própria retratação, o que não se altera em conteúdo, senão apenas na forma, se isso se opera em juízo ou em outras circunstâncias. É preciso lembrar que não são apenas os direitos fundamentais do indiciado ou réu que devem ser protegidos, mas também os das vítimas. 14
Conclui-se, destarte, que o §2º, do artigo 24-A da Lei Maria da Penha e o § 2º., do artigo 25 da Lei Henry Borel, afastam o poder cautelar do delegado de polícia de conceder liberdade provisória mediante fiança, previsto no artigo 322, do CPP. Embora seja compreensível e até elogiável a intenção do legislador na proteção da mulher e das crianças e adolescentes, vislumbramos uma violação ao princípio da proporcionalidade nessas inovações.
Explicamos. Os novos crimes em estudo representam tipos penais preventivos, cujo foco é evitar a prática de condutas que possam atingir bens jurídicos mais relevantes. Trata-se de crimes de perigo, pois ao descumprir uma medida protetiva, o agente coloca em risco a integridade física, psicológica, patrimonial, sexual e moral da vítima.
Desse modo, nos parece desproporcional a vedação de fiança pelo delegado de polícia em um crime de perigo, quando o benefício pode ser concedido nos crimes de dano, tais como lesão corporal, ameaça, injúria etc. Apenas para ilustrar, se o agente descumpre uma medida protetiva de não se aproximar da vítima com o objetivo de lhe entregar flores, pratica o crime de descumprimento, inafiançável na esfera policial; mas se a agredir efetivamente, causando-se lesões corporais de natureza leve, responde pelo crime do artigo 129, §9º ou § 13, do CP, e poderá ser beneficiado com a fiança, desde que, obviamente, não pratique tal agressão depois de ter contra si decretada medida protetiva, senão seria caso de concurso de crimes e a presença da desobediência impediria a fiança.
Anote-se que o que se aponta aqui não é uma violação da proporcionalidade sob o prisma negativo (garantismo negativo ou inconstitucionalidade por excesso), mas pelo prisma positivo (garantismo positivo ou inconstitucionalidade por deficiência protetiva). Não tem cabimento que a mera desobediência seja inafiançável para o delegado de polícia e os demais casos de violência contra a mulher ou crianças e adolescentes admitam essa contracautela. Entende-se que, em regra, o agressor nesses casos não deveria fazer jus à fiança, visando salvaguardar imediatamente a integridade física e psíquica da mulher ou do menor vitimado. Nos casos específicos de incidência na desobediência agora erigida a infração penal autônoma, seria também o caso de, ao menos em regra, haver a mais rápida possível decretação da prisão preventiva ou a conversão da prisão em flagrante em preventiva, considerando que o descumprimento das medidas protetivas deve levar a essa medida extrema, visando à neutralização do agressor em termos cautelares (artigo 312, CPP – ordem pública – c/c artigo 313, III, CPP c/c artigo 20 da Lei 11.340/06 ou artigo 17 da Lei 14.344/22). Ademais, relembremos que sempre que houver risco à integridade das vítimas ou de não efetividade de outras medidas protetivas, não deve ser concedida liberdade provisória ao preso, conforme o disposto no artigo 12 – C, § 2º., da Lei 11.340/06 e artigo 14, § 3º., da Lei 14.344/22.
A vedação da fiança arbitrada pelo delegado de polícia em tais casos não viola a Constituição Federal em termos de proporcionalidade sob o ângulo negativo. Não há que comparar o entendimento do STF quando tratou da vedação de fiança para crimes previstos no Estatuto do Desarmamento (Adin 3.112-1, de 10.05.2007). Naquela oportunidade, o que despontava era a aproximação do tratamento de meros crimes de perigo abstrato ao tratamento reservado a crimes hediondos.
No caso da violência doméstica e familiar contra a mulher e as crianças e adolescentes, mais do que um mandamento constitucional interno de criminalização, como ocorre com os crimes hediondos (artigo 5º., XLIII, CF), o Brasil reconhece por tratados internacionais e na legislação interna que essa espécie de violência constitui grave violação dos Direitos Humanos (vide artigo 6º, da Lei 11.340/06 c/c artigo 4º, II, CF e artigo 3º. da Lei 14.344/22). São exemplos de documentos internacionais que corroboram esse posicionamento e foram ratificados pelo Brasil: a Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação Contra a Mulher; a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (“Convenção de Belém do Pará”); a Declaração e Plataforma de Ação da IV Conferência Mundial da Mulher “Beijing”, o Pacto de São José da Costa Rica (artigos 4º. e 19 especificamente sobre as crianças e adolescentes), Declaração Universal dos Direitos Humanos, Declaração da ONU sobre os Direitos das Crianças, Declaração Mundial sobre a Sobrevivência, a Proteção e o Desenvolvimento das Crianças, Diretrizes das Nações Unidas para a Prevenção da Delinquência Juvenil – Diretrizes de Riad, Regras Mínimas das Nações Unidas para a Proteção de Jovens Privados da Liberdade, Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, Regras Mínimas das Nações Unidas para a Administração da Justiça da Infância e da Juventude – Regras Mínimas de Beijing, Declaração do Panamá – Unidos pela Infância e Adolescência, Base da Justiça e da Equidade no Novo Milênio, Convenção sobre os Direitos da Criança, dentre outros. 15
Feitas essas observações, destacamos dois aspectos que vêm passando ao largo da doutrina ainda incipiente sobre o tema. O primeiro se refere ao fato de que para que o crime de descumprimento de medida protetiva de urgência se caracterize, é indispensável a intimação do sujeito passivo da medida. Assim, caso haja dúvida sobre a sua intimação e ciência, em homenagem ao princípio do in dubio pro reo, consectário do estado de inocência, o Delegado de Polícia não deve decretar a sua prisão em flagrante e apenas registrar a ocorrência para que os fatos sejam melhor apurados em sede de inquérito policial. Indo mais além, se realmente o indivíduo ainda não foi intimado da medida, não há como imputar-lhe violação, de modo que o próprio processo criminal não deve prosperar.
Já uma segunda questão é mais palpitante e se refere aos casos em que a própria vítima da violência doméstica e familiar concorre para o descumprimento da medida protetiva. Isto, pois, nossa experiência nos plantões de Polícia Judiciária nos fez perceber que em inúmeras situações a vítima, mesmo contemplada com a medida protetiva, acolhe o agressor em sua casa, aceitando que ele volte a fazer parte de sua vida.
Em tais situações, cremos que resta desconfigurado o crime do artigo 24-A da Lei Maria da Penha, haja vista que a medida protetiva é decretada em favor da vítima e, o que é importante, em virtude de seu requerimento. Nesse contexto, trata-se de um benefício disponível e que não deve sofrer a ingerência excessiva do Estado. Se a própria beneficiária abriu mão da proteção que lhe foi conferida, não há razão para a responsabilização criminal daquele que descumpriu a ordem judicial.
Em reforço a essa conclusão, nos valemos da teoria da imputação objetiva, que afasta a tipicidade da conduta. Ao descumprir uma medida protetiva com a anuência da vítima, o agente não cria ou incrementa um risco proibido relevante. Não há, em nosso sentir, ofensa ao bem jurídico que se busca proteger com a criminalização da conduta, qual seja, a dignidade da mulher. Com efeito, não há que se falar na caracterização do crime por ausência de tipicidade material.
Há que ressaltar que na dogmática tedesca há recentes estudos a indicarem limites ao poder de punir estatal sempre que a vítima de uma infração não se tenha feito valer de seus próprios meios de autodefesa. Afirma-se que quando há um grave descuido de autoproteção por parte da vítima em casos concretos, é de se afastar a incidência do Direito Penal, considerando sua característica de medida de “ultima ratio”, bem como levando em conta os estudos da chamada “vitimodogmática”, ou seja, as situações de autocolocação da própria vítima em risco ou situações em que a vítima precipita ou provoca a ação criminosa. 16
Como aduz Hörnle: “De este modo, la omisión de las medidas de protección tendría como consecuencia, en tipos penales completamente distintos, la ausencia de castigo o un castigo menor al autor”. 17
Para aqueles que não se contentarem com esses argumentos, vislumbra-se, ademais, uma causa supralegal de exclusão da ilicitude pelo consentimento da ofendida, o que também inviabilizaria a prisão em flagrante do agente. Isso tendo em vista que a própria Lei 11.340/06 condiciona, ao menos em regra (artigo 18), a concessão da medida ao pedido da ofendida. Dessa forma, é de se concluir que o consentimento da vítima nesses casos é de extrema relevância para a descaracterização delitiva.
Também não se pode perder de vista que esse consentimento da ofendida tem de ser livre e consciente. Casos em que a vítima foi constrangida ou ludibriada, havendo evidente vício de sua vontade, jamais afastarão a incidência do novo tipo penal. Eventualmente, se a medida protetiva foi deferida judicialmente a pedido do Ministério Público, nos termos do artigo 19, da Lei 11.340/06, sem a anuência da vítima, há que considerar que, então, sua vontade será indiferente para a caracterização do tipo penal em destaque. No entanto, tais casos de atuação “ex officio” do Ministério Público devem ser extremamente (como o são na prática) excepcionais, reservados a casos em que fique evidente que o não requerimento da vítima se processa por nítido constrangimento, temor ou outros fatores inibidores ou neutralizadores da ação da ofendida (pessoa incapaz, por exemplo). Não havendo tais situações excepcionais, a decretação da medida contra a vontade da ofendida constitui uma odiosa violação de sua dignidade humana e de sua autonomia.
É preciso ter em mente ainda que o Brasil não adotou o mesmo sistema da Espanha, por exemplo, em que a desobediência a medidas protetivas pode ser imputada tanto ao agressor como à ofendida, configurando o que lá se denomina de “quebrantamiento de condena”. Aqui, a medida protetiva é adotada em prol da mulher vitimizada e contra o agressor. A ordem judicial se dirige, portanto, ao agressor e não à ofendida, a qual não tem como desobedecer um mandamento que não se lhe foi dirigido pela Administração da Justiça. Na lição de Karam:
Na inspiradora legislação espanhola, o descumprimento de medidas de proteção, análogas às previstas na nova lei brasileira, conduz à configuração do quebrantamiento de condena (artigo 468, 2 do Código Penal espanhol), que, incluído dentre os crimes contra a administração da justiça, é reconhecível independentemente ou mesmo contrariamente à vontade da mulher em nome de cuja proteção são decretadas as descumpridas medidas, o que pode implicar na absurda situação de se privar a própria mulher de prosseguir ou retomar a convivência com o apontado autor da alegada violência de gênero, ou até mesmo em imputação a ela da prática daquele mesmo crime de quebrantamiento de condena, na qualidade de partícipe. 18
Entende-se, inclusive, que nosso país, ao menos nesse ponto, adotou uma política criminal mais condizente com a realidade e respeitadora da autonomia da mulher enquanto pessoa capaz de dirigir sua própria vida, sem abandonar o intuito protetivo. Enfim, o Brasil adota um sistema de proteção e não de tutela da mulher pelo sistema, reconhecendo sua dignidade sob os mais variados ângulos. O mesmo se pode dizer do homem, inicialmente agressor e submetido a uma medida protetiva de afastamento, o qual somente retorna em aproximação porque é permitido pela pessoa que, num primeiro momento, havia pedido seu afastamento. Não parece correto realmente que o Estado se imiscua em questões existenciais de tal jaez, pois que tal intromissão seria típica de um paternalismo injustificável em relação a pessoas humanas capazes.
Agora, com relação às medidas protetivas deferidas nos termos da Lei Henry Borel, o mesmo raciocínio não se aplica. Isso porque não se está tratando com mulheres adultas e capazes, mas com crianças e adolescentes. Nesse passo, a manifestação de vontade dessas pessoas não é relevante, de modo que toda a responsabilidade cabe ao suposto agressor que recebeu a medida restritiva. Observe-se que, como já se disse no início deste texto, no caso das crianças e adolescentes, diversamente das mulheres adultas, o pedido de medida não é feito diretamente pela vítima, mas por terceiros (vide a diferença entre o artigo 18 da Lei 11.340/06 e o artigo 16 da Lei 14.344/22). Na verdade, no caso de crianças e adolescentes, tudo se opera como excepcionalmente ocorre na forma do artigo 19 da Lei Maria da Penha, quando as medidas protetivas são requeridas e deferidas independentemente do pedido direto da vítima. Como visto, nesses casos, até mesmo em se tratando de mulheres capazes, não tem relevância o consentimento da vítima quanto ao descumprimento. Mesmo o representante legal ou responsável pelo menor não parece poder abrir mão da medida a seu bel prazer. Este também recebe uma “responsabilidade” perante a integridade física e psíquica do menor, de modo que em estando vigente a medida protetiva, não lhe cabe permitir sua infração pelo alegado agressor. Ao reverso, parece que embora o crime de descumprimento de medida seja de mão própria, o responsável legal não podendo figurar como coautor, poderá, por outro lado, responder em concurso de pessoas como partícipe (inteligência do artigo 29, CP). Malgrado não exista no Brasil a figura acima mencionada do “quebrantamiento de condena” do Direito Comparado (Espanha), a situação do representante legal ou responsável será em tudo similar. No caso das crianças e adolescentes a única via para afastar o descumprimento da medida é a situação em que o Juiz a tenha revogado (inteligência dos artigos 16, § 3º. e 17, Parágrafo Único da Lei 14.344/22).
4.2. OMISSÃO DE COMUNICAÇÃO DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA CRIANÇAS E ADOLESCENTES ÀS AUTORIDADES PÚBLICAS
O artigo 26 da Lei 14.344/22 erige em crime a conduta de não comunicar às autoridades públicas a prática de violência, de tratamento cruel ou degradante ou de formas violentas de educação, correção ou disciplina contra crianças ou adolescente, bem como casos de “Abandono de Incapaz” (vide também artigo 133, CP).
Trata-se de crime “omissivo próprio”, pois a conduta configura uma inação, um não fazer. Isso significa dizer que não é possível a tentativa do crime previsto no artigo 26 da Lei Henry Borel, já que crimes omissivos próprios não admitem nunca a forma tentada.
O elemento subjetivo se reduz ao dolo, não havendo previsão de figura culposa eventualmente marcada pela negligência. Parece possível afirmar que dolo pode ser direto ou eventual, vez que é admissível teoricamente que a pessoa se omita sob o pretexto de que outros fariam talvez a comunicação. No entanto, quando alguém fizer a comunicação, sabendo disso o suposto omitente, não haverá crime, pois não há que se exigir uma espécie de corrida ou competição para ver quem comunica primeiro as autoridades.
Fazendo a lei menção ao termo “Autoridade Pública” de forma genérica, a comunicação feita a qualquer autoridade com atribuição ou competência para apurar e reprimir o abuso doméstico e familiar de crianças e adolescentes, servirá como cumprimento da obrigação legal imposta pelo tipo penal em estudo (v.g. Delegado de Polícia, Policiais em Geral, Ministério Público, Judiciário, Conselho Tutelar etc.). Entendemos que também a comunicação a algum órgão público ou privado que trate da questão de abuso infanto – juvenil e que se encarrega de acionar as autoridades, afasta a omissão criminosa. Por exemplo, uma pessoa que presencia abuso intrafamiliar de uma criança e comunica o fato a uma ONG ou ao Conselho Comunitário de Segurança (CONSEG), entidades voltadas para os direitos das crianças e adolescentes e questões de segurança pública em geral, na crença de que tal organização levará o fato ao conhecimento das autoridades. Nessa situação, a pessoa que fez a comunicação à ONG ou ao CONSEG não se omitiu. Poderá praticar o crime o responsável pela ONG ou pelo CONSEG que não venha a repassar a informação às autoridades públicas.
Pode parecer que o legislador foi omisso com a imposição de comunicação do crime de “Exposição ou Abandono de recém – nascido” (artigo 134, CP), enquanto fez expressa alusão ao artigo 133, CP (“Abandono de Incapaz”). No entanto, tal impressão é falsa. Acontece que tanto o caso de “Exposição ou Abandono de recém - nascido” (artigo 134, CP) como também o do não mencionado crime de “Maus – Tratos” (artigo 136, CP) estão claramente abrangidos, o primeiro na menção de “tratamento cruel ou degradante” e o segundo tanto nessas expressões legais como na alusão a “formas violentas de educação, correção ou disciplina” contra crianças ou adolescentes. O destaque dado ao crime de “Abandono de Incapaz” (artigo 133, CP), se opera porque, diversamente dos dois anteriores, que têm como vítimas normalmente crianças e adolescentes, se volta não somente para a categoria das pessoas em idade infanto – juvenil, mas pode abranger pessoas maiores incapazes por outros motivos que não a questão etária (doentes, idosos, incapazes por deficiência ou doença mental etc.). Como a lei é especificamente voltada para crianças e adolescentes, pretendendo o legislador alcançar, neste caso, a obrigação de comunicação também com relação a outros incapazes, achou por bem, a nosso ver corretamente, fazer a menção separada e específica ao “Abandono de Incapaz” (artigo 133, CP), pois que, sem tal alusão direta, poderia haver dúvidas quanto à aplicação do artigo 26 da Lei 14.344/22 a casos de “Abandono de Incapaz” que não envolvessem menores, problema este afastado pela redação clara do tipo penal, a qual não deixa margem a dúvidas. Com esse procedimento privilegiou corretamente o legislador uma descrição semanticamente bem determinada do tipo penal, garantindo a necessária segurança jurídica e respeito ao Princípio da Legalidade Estrita.
Outra falsa impressão que se pode ter a respeito do artigo 26 da Lei 14.344/22 é que se trataria de crime próprio de agentes públicos (crime funcional). Não se trata de crime próprio, mas de crime comum, seja porque a lei não descreve nenhuma especial qualidade do sujeito ativo, nem mesmo sua condição de agente público, seja porque o crime em questão deve ser interpretado de forma sistemática com o artigo 23 do mesmo diploma, o qual estabelece o “dever” de “qualquer pessoa” de comunicar os serviços públicos a respeito de abusos domésticos ou familiares contra crianças e adolescentes. Se o dever de comunicação imposto pela lei é dirigido a qualquer pessoa não seria coerente que o crime omissivo em estudo somente se aplicasse a alguma categoria especial de indivíduos.
Mas, e se for exatamente um agente público que se omite em comunicar às autoridades o abuso doméstico e familiar de crianças e adolescentes? Nesses casos pode parecer que haveria um conflito aparente de normas entre o artigo 26 da Lei 14.344/22 e o crime de “Prevaricação” (artigo 319, CP). Esse conflito aparente de normas seria solvido pelo “Princípio da Especialidade”, de modo que o agente público também deveria responder pelo delito previsto na legislação extravagante ou esparsa, qual seja, o descrito no artigo 26 da Lei Henry Borel, afastando-se o ilícito penal de “Prevaricação”. Não obstante, essa é uma falsa impressão. Acontece que se o agente público em questão for daqueles que não têm obrigação de apurar, reprimir ou prevenir crimes (v.g. um auxiliar de escritório da Prefeitura, um fiscal de tributos etc.), estaria equiparado para todos os fins com o particular, já que não é parte de sua atribuição a atuação criminal. Assim sendo responderia pelo artigo 26 da Lei Henry Borel, como “qualquer pessoa”, como um particular e não por força de especialidade. Por outro lado, se for o caso de um agente público que tem o dever de atuar na área criminal (v.g. Policiais, Delegados de Polícia, Promotores de Justiça, Juízes de Direito, Conselheiros Tutelares etc.), não tem cabimento a aplicação do verbo “comunicar”, já que a “autoridade pública” é o próprio agente. Ele não precisa “comunicar” ninguém, tem é que agir no cumprimento de suas funções. O máximo que pode precisar fazer é pedir algum reforço ou apoio (v.g. Conselheiro Tutelar que pede apoio policial ou mesmo policial que pede reforço para intervir em uma dada situação). Significa dizer que o tipo penal do artigo 26 em estudo é evidentemente dirigido a particulares ou servidores públicos que não têm por competência ou atribuição a intervenção em situações de crimes contra crianças e adolescentes ou de infrações penais em geral. Mas, então se esse agente público que tem competência ou atribuição para atuar for omisso, não há responsabilização penal? Sim, há, pois a atipicidade do artigo 26 em destaque é relativa, restando a configuração de delito de “Prevaricação” (artigo 319, CP), desde que satisfeito seu elemento subjetivo específico. Mas, não existe também aqui nenhum “conflito aparente de normas”. Apenas a aplicação do tipo penal adequado para cada caso concreto.
A solução legal é essa, mas não deixa de ser violador da proporcionalidade que a inação de um particular nessas circunstâncias da violência doméstica e familiar contra menores tenha pena prevista bem maior do que aquela voltada à inação do agente público que, aliás, não é afeto ao dever de apenas comunicar, mas de reprimir a prática. O crime da Lei Henry Borel tem pena bem maior do que o de “Prevaricação”, previsto no Código Penal. Melhor seria criar um parágrafo no crime de “Prevaricação” (artigo 319, CP) com uma qualificadora com pena ligeiramente maior que a do artigo 26 da Lei 14.344/22 quando a omissão do agente público fosse ligada às situações de abuso de menores em violência doméstica e familiar, ou mesmo prever, no corpo da Lei Henry Borel, um crime especial para o agente público omitente de seus deveres, o qual, aí então, prevaleceria, por especialidade em relação à “Prevaricação”. Contudo, essas são propostas de “lege ferenda”.
Outro suposto conflito aparente de normas pode surgir quando a criança ou adolescente for vítima de violência doméstica e familiar consistente na prática, por exemplo, da chamada “Tortura – Castigo” (artigo 1º., II, da Lei 9.455/97), omitindo-se, não um particular, mas um agente público que tenha o dever de evitar ou apurar esse ilícito. Nesse caso, há previsão de outro crime omissivo na Lei de Tortura (artigo 1º., § 2º., da Lei 9.455/97 – “Omissão Perante a Tortura”). Este crime específico da Lei de Tortura deve então prevalecer diante do artigo 26 da Lei 14.344/22 novamente não por aplicação do “Princípio da Especialidade, mas porque é o tipo penal adequado ao agente público encarregado de prevenir ou apurar a prática de tortura. Novamente, sendo ele a própria “autoridade pública” seria impossível que fizesse uma “comunicação” do caso a si mesmo! Observe-se que não responde por “Prevaricação” (artigo 319, CP) porque aí sim existe conflito aparente de normas solvido pelo “Princípio da Especialidade”, prevalecendo a norma especial da Lei de Tortura sobre a geral do Código Penal. Também não se altera a conclusão se o agente público é daqueles que não têm o dever de apurar ou prevenir a tortura. Este será considerado em equiparação a um particular, respondendo então pelo artigo 26 da Lei Henry Borel, mas não por especialidade e sim pela correta adequação típica ao caso concreto.
Aproveitando esse gancho a respeito das obrigações de agentes públicos em contraste com os particulares, importa deixar claro que a previsão do artigo 26 da Lei 14.344/22 não altera em nada o regramento do chamado flagrante obrigatório ou compulsório e do denominado flagrante facultativo, nos estritos termos do artigo 301, CPP. Continua valendo a obrigação das autoridades policiais e seus agentes de prender em flagrante, enquanto aos particulares e mesmo autoridades não policiais (qualquer do povo) é disposta uma faculdade de prender quem se ache em estado flagrancial. O artigo 26 da Lei Henry Borel não exige que a pessoa efetue a Prisão em Flagrante, mas tão somente que faça a devida comunicação às autoridades públicas. Exemplificando:
a)Um particular presencia, em situação flagrancial, uma mãe que está perpetrando maus – tratos contra seu filho de 5 anos de idade. Tal pessoa não prende a mulher, mas aciona a Polícia Militar ou Civil, comunicando o fato. Não incide em crime algum, pois que não tinha o dever de prender, mas apenas a faculdade. Quanto à sua obrigação de comunicação, a cumpriu a contento. Agora se não efetuar a prisão e também não comunicar as autoridades, responderá pelo crime do artigo 26 da Lei 14.344/22, não porque deixou de efetuar a prisão (pois era facultativa), mas pela omissão na comunicação (legalmente obrigatória por inteligência do artigo 23 c/c 26 da Lei Henry Borel).
b)Um Policial Militar presencia o mesmo quadro em situação de flagrância e nada faz. Comete crime de Prevaricação (artigo 319, CP). Não há responsabilização pelo artigo 26 da Lei 14.344/22 pelos motivos já explicados. O mesmo se diga quanto à solução se a situação for de omissão perante a tortura. O Policial deve responder pelo crime especial da Lei de Tortura (artigo 1º., § 2º., da Lei 9.455/97), e não pelo artigo 26 da Lei 14.344/22 e nem por “Prevaricação” (artigo 319, CP) devido a não Prisão em Flagrante que seria obrigatória. No primeiro caso por adequação típica do caso concreto, no segundo porque no conflito aparente, afasta-se a “Prevaricação” que é norma geral por força do “Princípio da Especialidade”.
Aspecto também relevante é aquele referente ao abusador que não comunica os próprios abusos às autoridades públicas, assim como seus coautores ou partícipes. Obviamente não responderão eles pelos crimes perpetrados (v.g. lesões corporais, maus – tratos, tortura – castigo etc.) em concurso com o artigo 26 da Lei 14.344/22, mas tão somente pelos primeiros. Isso porque a obrigação de comunicação não pode alcançá-los dado o impedimento ocasionado pelo “direito a não – autoincriminação” e de “não produzir prova contra si mesmo”. Note-se que o simples omitente de comunicação que não é coautor ou partícipe de abusos, responde somente pelo crime omissivo do artigo 26 da Lei 14.344/06, não havendo falar em concurso de agentes ou de infrações.
A pena prevista no preceito secundário do artigo 26 da Lei Henry Borel é de “detenção, de seis meses a 3 anos”, de forma que não pode haver aplicação da Lei 9.099/95, a uma porque não se trata de infração de menor potencial, sendo a pena máxima abstratamente cominada maior do que 2 anos (inteligência do artigo 61 da Lei 9.099/95). A duas, porque nenhum benefício da Lei 9.099/95 será acessível ao infrator de crimes correlatos à violência doméstica e familiar de menores, por força do disposto no artigo 226, § 1º., da Lei 8.069/90 (ECA) com a nova redação dada pela Lei 14.344/22. Pode-se alegar que o crime é omissivo e contra a administração da justiça, mas é preciso lembrar que tal qual ocorre com o artigo 25 do mesmo diploma, essa omissão é também perpetrada em prejuízo das crianças e adolescentes vitimizados, de forma que deve ser abrangida pela vedação de benesses do artigo 226, § 1º., do ECA. Note-se que o sujeito passivo do crime do artigo 26 em estudo é diretamente a administração da justiça e indiretamente (o que não redunda em menor relevância) as crianças e adolescentes vítimas de violência doméstica e familiar em cada circunstância concreta. A mesma solução deve ser aplicada (vedação de quaisquer benefícios da Lei 9.099/95) aos casos de “Prevaricação” e “Omissão Perante a Tortura”, nos casos dos agentes públicos omissos, vez que tais infrações também serão não só contra a administração da justiça, mas contra as crianças e adolescentes, nos estritos termos do artigo 226, § 1º., do ECA, desde que o abuso se tenha perpetrado em situação de violência doméstica e familiar contra os menores.
Apenas uma ressalva deve ser feita em relação ao artigo 26 da Lei 14.344/22, a qual não precisou ser levada a termo com relação ao artigo 25 do mesmo diploma. Acontece que o artigo 26 não tem por vítimas indiretas somente crianças e adolescentes, como ocorre no artigo 25. Pode acontecer que incapazes por questões não etárias (ou seja, incapazes que são maiores) sejam as vítimas indiretas da falta de comunicação no caso em que o que chegou ao conhecimento do omitente foi uma conduta de “Abandono de Incapaz” que envolva maiores vitimizados. Nessa situação também não se tratará de infração de menor potencial, eis que a pena não se altera e continua tendo seu máximo abstratamente cominado acima de 2 anos. Não se podem aplicar, da mesma forma, os benefícios atinentes a infrações de menor potencial (v.g. Termo Circunstanciado, vedação de prisão em flagrante, Transação Penal etc.). Contudo, como o artigo 226, § 1º., do ECA somente impede a aplicação dos benefícios da Lei 9.099/95 para crimes perpetrados “contra criança e adolescente”, não sendo o incapaz nem criança nem adolescente, outros dispositivos da Lei 9.099/95 que são aplicáveis a infrações de médio potencial poderão alcançar o infrator, como, por exemplo, o instituto da “Suspensão Condicional do Processo”, conforme disposto no artigo 89 da Lei 9.099/95, uma vez que a pena mínima abstratamente prevista é menor que 1 ano. Acrescente-se que a própria topografia da norma vedadora da Lei 9.099/95 no Estatuto da Criança e do Adolescente e não no corpo da Lei Henry Borel, indica que o impedimento total de aplicação da Lei 9.099/95 somente tem validade para casos que envolvam crianças e adolescentes e não outros incapazes maiores, já que o Estatuto é voltado especificamente para essa categoria de pessoas. Essa questão do “Abandono de Incapazes”, envolvendo maiores pode até ter sido uma das razões pelas quais o legislador optou por incluir a norma vedadora da Lei 9.099/95 no ECA e não na própria Lei Henry Borel.
Há previsão no § 1º. do artigo 26 de uma causa de aumento de pena da ordem da metade se, devido à omissão, resultar à vítima lesão corporal de natureza grave ou gravíssima e da ordem do triplo, se resultar morte. A letra da lei se refere expressamente somente às lesões “graves”, mas é sabido que a menção das lesões “graves” em textos legais abrange necessariamente as lesões “graves” e “gravíssimas”, mesmo porque o “nomen juris” utilizado no Código Penal é somente o de “lesões graves”, sendo o termo “lesões gravíssimas” cunhado pela doutrina, jurisprudência e praxe policial e forense (vide artigo 129, §§ 1º. e 2º., CP). Ademais, seria vulnerar abertamente a proporcionalidade qualificar um crime por lesões graves e não qualificá-lo por lesões gravíssimas. Esses aumentos são aplicáveis sejam as vítimas crianças e adolescentes ou mesmo outros incapazes, no caso específico da omissão de comunicação de “Abandono de Incapaz” (artigo 133, CP).
A nosso ver, a redação dessas causas de aumento de pena poderia ser melhor e pouparia os aplicadores da lei de enormes esforços para a comprovação de nexo de causalidade entre a omissão de comunicação e os resultados mais gravosos. A lei deveria ter se referido ao aumento em face dos resultados lesões graves ou morte, não condicionando o incremento punitivo ao nexo de causalidade entre tais resultados e a omissão. Veja-se que a lei estabelece os aumentos “se da omissão resulta” e não simplesmente “se resulta”. E a melhor redação seria a segunda.
Entretanto, “legem habemus” e caberá à acusação a espinhosa missão de comprovar nexo de causalidade entre uma conduta omissiva e resultados mais gravosos ulteriores. Dessa forma, é possível prognosticar que em muitos, certamente na maioria senão na totalidade dos casos, os aumentos de pena serão afastados por falta de comprovação de nexo causal, já que é muito difícil, senão impossível, fazer prova de que uma “não ação”, uma “inação” provocou algum resultado naturalístico. Essa é a espécie de ônus probatório que se costuma chamar de “Prova Diabólica” (“Probatio Diabolica” ou “Devil’s Proof”), fazendo-se referência a uma categoria de prova impossível ou descomedidamente difícil de ser levada a cabo, sendo exemplo correlato a prova de fato negativo. 19
É claro que se pode sempre acenar com o fato de que nos crimes omissivos próprios o nexo entre o “não fazer” e o resultado não é propriamente “de causalidade”, mas meramente “normativo ou jurídico”. Dessa forma, “a lei pune a inação” e o indivíduo é apenado por “não ter atuado na forma determinada”. O nexo normativo surge para criar um “elo entre a conduta omissiva e a omissão tipificada”. Para a punição bastará a existência de um tipo penal que puna a inação e que essa abstenção aconteça por parte do envolvido. Entretanto, quando há majorantes ou qualificadoras em razão do resultado mais gravoso, dependentes, portanto, de “resultados naturalísticos”, havendo a exigência de nexo causal (“se da omissão resulta”) expressa na lei, não há como fugir do ônus probatório desse nexo, agora não meramente normativo ou jurídico, mas efetivamente causal. Significa dizer que mesmo diante de um crime omissivo próprio, cuja consumação ocorre com a singela inação, torna-se indispensável que “se analise a relação de causalidade”. Será indispensável a indagação sobre se a ação omitida (normativamente punível), acaso não omitida, teria evitado o resultado mais gravoso que majora ou qualifica o crime. Os crimes omissivos próprios são delitos de “mera conduta” e, por isso, lhes basta o nexo normativo ou jurídico. Mas, quando se trata de resultado naturalístico agravador (“resultado material”) não é possível afastar a necessidade de comprovação de “relação de causalidade (de não impedimento) entre a omissão e o resultado ocorrido”, a fim de tornar legítimo o incremento punitivo, “nos limites de um direito penal da culpabilidade” 20 ou da “responsabilidade subjetiva”, já que não se pode imaginar na atualidade uma situação de admissão de “responsabilidade objetiva” no campo criminal (inteligência do artigo 19, CP).
Outra causa de aumento de pena é prevista no artigo 26, § 2º., da Lei 14.344/22, tendo em vista a qualidade especial do autor do delito omissivo. A pena será aplicada em dobro se o crime for praticado por ascendente, parente consanguíneo até o terceiro grau, responsável legal, tutor, guardião, padrasto ou madrasta da vítima. A presença dessa causa de aumento pode bem se compatibilizar com as do § 1º., não sendo impossível sua cumulação, já que o § 2º., dada sua topografia, pode aplicar-se a tudo que lhe antecede. Porém, normalmente, em havendo mais de uma causa de aumento, o juiz poderá (e geralmente o faz) optar pela aplicação somente da causa de maior incremento punitivo, nos termos do disposto no artigo 68, Parágrafo Único, CP.
Quando a lei menciona “ascendente” sem qualquer qualificação, significa que o parentesco pode ser consanguíneo ou legal (v.g. pai ou mãe adotivos). Já no que tange aos parentes até o terceiro grau, o legislador, a nosso ver indevidamente, restringe o aumento aos consanguíneos. Há aqui uma inconstitucionalidade por insuficiência protetiva. O aumento deveria alcançar parentes até o terceiro grau, independentemente de consanguinidade, já que tanto a Constituição Federal (artigo 227, § 6º., CF) como o Código Civil e o ECA (respectivamente artigos 1593 c/c 1596, CC e artigo 41, ECA) não permitem distinções ou discriminações negativas. 21 No entanto, enquanto o legislador não consertar essa impropriedade, a majoração não será exequível com relação a parentes até o terceiro grau não consanguíneos, pois que se trataria de analogia “in mallam partem” e violação do Princípio da Legalidade, configurando, agora, uma inconstitucionalidade por excesso.
A presença dessa causa de aumento de pena reforça a condição de crime comum do ilícito em estudo. Veja-se que não só não se trata de delito funcional, como também não exige liame de parentesco, afeto, responsabilidade, guarda etc. entre sujeitos ativo e passivo. Quando isso ocorre, incide o autor em figura criminal majorada. 22
Poderia causar perplexidade a falta de previsão desse aumento para os agentes públicos omissos. Mas, não há motivo algum para estranhar. Como visto, o crime é comum e, para além disso, o agente público que poderia, em tese, ter a pena aumentada, seria aquele com dever de apuração, repressão e/ou prevenção dessa espécie de ilícito. Nesses casos, o tipo penal do artigo 26 é inaplicável, já que se refere à comunicação à autoridade pública e seria impossível haver tal comunicação, vez que o próprio agente é a autoridade que deve ser comunicada. Acaso o autor seja um agente público, mas que não tem esse dever de apuração, repressão e/ou prevenção, então se torna equiparado ao particular, incidindo no artigo 26, com as causas de aumento ali previstas, obviamente se vier a se enquadrar em alguma delas. Já o agente público detentor de especiais deveres relativos aos ilícitos, ao se omitir, pode incorrer em crimes específicos, tais como “Prevaricação” ou “Omissão Perante a Tortura”, conforme já demonstrado.
O aumento de pena da ordem do dobro se justifica no caso das pessoas arroladas, dada seu encargo de especial responsabilidade e cuidado para com as crianças e adolescentes com que se relacionam. Se qualquer do povo tem a obrigação de comunicar atos de abuso doméstico e familiar contra menores, esse dever de cuidado e proteção para com as crianças e adolescentes certamente se agiganta quando se tratam das pessoas ali mencionadas, de modo que o desvalor da conduta justifica a exacerbação punitiva.
É preciso na casuística concreta verificar se é realmente aplicável o crime omissivo do artigo 26 da Lei 14.344/22 na sua forma majorada de acordo com seu § 2º., ou se tais pessoas devem responder pelos crimes de abuso de menores (v.g. lesões corporais, tortura – castigo, maus – tratos, crimes sexuais etc.) seja diretamente, seja em concurso de agentes na forma de coautoria ou participação. Especial cuidado deve ter o aplicador da lei, principalmente, com a distinção da mera omissão, ainda que majorada, dos casos de participação criminosa (auxílio, instigação ou induzimento), o que no dia a dia prático nem sempre será de fácil deslinde.
Novamente a causa de aumento de pena em estudo poderá ser aplicada tanto para os casos que envolvem vítimas crianças e adolescentes, quanto para as situações de “Abandono de Incapaz” nas quais o abandonado não é menor, mas sua incapacidade decorre de outros motivos (v.g. doença mental, doença física, deficiências em geral, idade muito avançada com sequelas do tempo etc.).
4.2.1. PROTEÇÃO DO DENUNCIANTE OU NOTICIANTE DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A CRIANÇA OU ADOLESCENTE
Como já mencionado, o artigo 23 da Lei 14.344/22 cria um “dever” para todas as pessoas de comunicar o fato aos canais competentes para as devidas providências, o que fundamenta o próprio tipo penal do artigo 26 do mesmo diploma numa relação sistemática e até simbiótica.
Impondo o Estado um dever legal de notícia ou denúncia de violência, não poderia deixar os particulares sem uma devida previsão de medidas de proteção. Os comentários a essas medidas são aqui feitos e não juntamente com as medidas protetivas voltadas para o agressor e para a vítima, tendo em vista considerar-se que o artigo 23 e o Capítulo VI da Lei Henry Borel em geral devem ser estudados em conjunto com o artigo 26 ora enfocado para melhor compreensão sistemática da legislação.
O artigo 24 do diploma legal em estudo estabelece que poder público deverá garantir medidas e ações para a proteção e mesmo a compensação de toda pessoa que noticiar informações ou denunciar a prática de violência, de tratamento cruel ou degradante. Tais medidas e ações são de atribuição concorrente da União, Estados e Municípios, conforme estabelecido no § 1º. do mesmo dispositivo. O § 1º. é mais amplo em relação aos beneficiários, pois o “caput” cita apenas os noticiantes e denunciantes, já o parágrafo em questão acrescenta também as vítimas e testemunhas. É de se concluir, portanto, que a norma protetiva mais abrangente deve prevalecer, podendo ser beneficiárias as vítimas, as testemunhas, os denunciantes e os noticiantes.
Ao noticiante ou denunciante é dado o direito de requerer prestar informações diretamente à Autoridade Policial (neste caso em sentido estrito – Delegado de Polícia), ao Conselho Tutelar, ao Ministério Público (no caso o Promotor) ou ao Juiz (artigo 24, § 2º.). Entende-se que no caso da Autoridade Policial se trata especificamente da figura do Delegado de Polícia, assim como no caso do Ministério Público do Promotor e não outro atendente, porque em caso contrário não seria necessária norma legal estabelecendo o direito de alguém de contatar com qualquer funcionário desses órgãos (v.g. PMs, Oficiais de Promotoria, Escrivães de Polícia, Investigadores etc.). Parece que o legislador pretende conceder o direito da pessoa contatar diretamente a autoridade responsável pela direção das apurações e não qualquer funcionário. Na verdade, mesmo esse direito parece já decorrer dos princípios que regem a administração pública em sua relação com os cidadãos, não havendo motivo para que um Delegado, um Promotor ou um Juiz de Direito se negue a atender quem quer que seja. Fato é que eventualmente existem autoridades que criam barreiras indevidas ao seu acesso, chegando a bloquear até mesmo advogados, violando prerrogativas profissionais, o que doravante se torna ainda mais flagrantemente uma espécie de atuação ímproba e abusiva.
Também poderá o noticiante ou denunciante condicionar a revelação de informação à adoção de medidas de proteção que garantam sua integridade física e psicológica (artigo 24, § 3º.). Observe-se então, que no caso de a pessoa se negar a prestar informações não proporcionando as autoridades a devida proteção requerida, desnatura-se eventual configuração do crime omissivo previsto no artigo 26 do mesmo diploma. Trata-se claramente de um caso de inexigibilidade de conduta diversa e exercício regular de direito legalmente previsto. Se o Estado não cumpre sua obrigação de proteção, não pode pretender vincular o cidadão mediante norma penal cogente, o que seria iníquo e até mesmo perverso. Não é preciso dizer que a vítima é dotada de todo um arcabouço protetivo, sendo apenas por esta razão que não é mencionada no § 3º. em estudo. A proteção das vítimas crianças e adolescentes é o espírito fundante tanto da Lei Henry Borel (Lei 14.344/22) quanto da Lei 13.431/17, as quais devem ser sistematicamente interpretadas e aplicadas (inteligência dos artigos 1º., 2º., Parágrafo Único, 12, 21, §1º., e 33, todos da Lei 14.344/22). Isso sem olvidar os artigos 227, §4º., e 226, § 8º., da CF, tratados, convenções e acordos internacionais e o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/90), bem como a integração subsidiária da Lei Maria da Penha (Lei 11.340/06) (inteligência dos artigos 1º., e 33 da Lei 14.344/22). Por derradeiro há que salientar que embora as testemunhas também possam ser beneficiadas pela proteção erigida pelo artigo 24 da Lei Henry Borel, não poderão se negar a depor, pois que se trata de obrigação incontornável, configurando a omissão de informações crime de “Falso Testemunho” “omissivo” 23 ou “reticente” 24 (“calar a verdade” – artigo 342, CP).
O estabelecimento de medidas de proteção visa certamente tornar concreta a norma prevista no § 4º., do mesmo artigo 24, que diz que “ninguém será submetido a retaliação, a represália, a discriminação ou a punição pelo fato ou sob o fundamento de ter reportado ou denunciado” casos de violência doméstica e familiar contra crianças e adolescentes. Frise-se, contudo, que esse § 4º., não se constitui numa espécie de salvo – conduto para a irresponsabilidade, perversidade ou leviandade na formulação de denúncias ou “notitia criminis”, bem como na prestação de depoimentos oficiais. O § 4º., somente se aplica a reações ilegais e não à punição legalmente prevista para crimes como “Denunciação Caluniosa” (artigo 339, CP) e “Falso Testemunho ou Falsa Perícia” (artigo 342, CP). Obviamente a lei não pode pretender tutelar um denuncismo irracional e pervertido, assim como, principalmente, não pode a lei conceder amparo a atos ilícitos ou mesmo imorais de qualquer natureza.
Também após a prestação das informações, o denunciante ou noticiante que for submetido a qualquer espécie de coação, violência ou ameaça poderá se valer da lei de proteção a vítimas, testemunhas e réus colaboradores (Lei 9.807/99). Embora o § 5º., do artigo 24 somente faça referência ao denunciante ou noticiante, é claro, até pelo conteúdo da Lei 9.807/99, que a mesma tutela é reservada às vítimas e testemunhas e, até mesmo, em casos específicos de colaboração premiada, a réus ou indiciados colaboradores. Como acima mencionado, embora a lei cite somente a “coação” ou a “exposição a grave ameaça”, por obviedade também justificará a proteção especial ali prevista a submissão do denunciante ou noticiante, vítima, testemunha ou réu colaborador, nos casos de violência, a qual certamente está contida no vocábulo “coação”. Interpretação restritiva que pretenda afastar a proteção em casos de violência, devido à falta de menção expressa, seria irrazoável e desproporcional. Em havendo urgência devidamente justificada, o Juiz poderá conceder a proteção inclusive de ofício, dispensando-se a oitiva preliminar do Ministério Público, mantendo o beneficiário provisoriamente sob proteção policial até a deliberação formal por sua inclusão no programa de proteção (artigo 24, § 8º.). Acaso o magistrado não atue de ofício em casos que tais, é também legitimado a requerer a providência o Ministério Público, assim como, embora no silêncio da lei (§ 8º.), poderá fazer representação neste sentido o Delegado de Polícia ou requerer o beneficiário diretamente a providência por si mesmo ou mediante seu advogado constituído ou dativo (inteligência do artigo 24, § 9º., da Lei 14.344/22).
O § 6º., estabelece que o Ministério Público deve manifestar-se sobre a concessão de medidas protetivas enfocadas, bem como as requerer ao juízo no caso de considerar sua necessidade. Isso não significa que o Ministério Público detenha o monopólio do pedido dessas medidas. Não há que afastar a possibilidade das pessoas fazerem requerimentos diretamente ou por meio de defensor constituído ou dativo ou também que a Autoridade Policial (Delegado de Polícia), na fase de inquérito, formule representação ao juízo. Em qualquer caso, porém, o Ministério Público deverá opinar. Também é importante destacar que a opinião negativa do Ministério Público, assim como o seu requerimento ou opinião positiva não vinculam o Juiz, que deve sempre decidir de forma autônoma e fundamentada. Ademais, pode o Juiz atuar de ofício, por requerimento Ministerial, representação da Autoridade Policial, do Conselho Tutelar ou órgão deliberativo, sempre que entender necessárias medidas protetivas direta ou indiretamente relacionadas com a efetividade da tutela das pessoas (vide artigo 24, § 9º., da Lei 14.344/22).
O § 7º. estabelece que as medidas protetivas devem ser deferidas tendo em conta a proporcionalidade, necessidade e adequação ao caso concreto, considerando a gravidade e iminência de dano, ameaça ou coação à integridade física ou psicológica das pessoas envolvidas. Também deixa claro que as medidas de proteção devem ser conferidas como “ultima ratio”, ou seja, somente quando houver dificuldade de prevenção ou repressão pelos meios convencionais. Note-se que a lei fala em “dificuldade” e não “impossibilidade”, de modo que a mera existência de meios convencionais de “per si” não afasta a possibilidade de concessão da proteção. A avaliação judicial não será feita tendo por baliza somente a existência de outros meios, mas mediante a ponderação da eficácia dos meios convencionais e das medidas de proteção, escolhendo aquilo que confira maior garantia aos envolvidos. Também deverá o magistrado levar em consideração a importância das medidas para a produção da prova. Essa relevância para a produção da prova não pode jamais ser considerada de forma estanque ou apartada dos elementos humanitários de solidariedade e garantia da integridade física, psicológica e até da vida dos envolvidos. Estes últimos valores ou interesses são primordiais e não podem ser submetidos por alguma espécie de cálculo de custo benefício orientado por critérios meramente utilitários. A pessoa humana deve ser invariavelmente tomada como fim em si mesma e não como instrumento ou meio para qualquer finalidade alheia. 25
Vale salientar que quando se trata de “compensação” conferida a denunciantes ou noticiantes abre-se a possibilidade de estabelecimento de “recompensas”. No entanto, essa compensação deve voltar-se, em regra, tão somente à indenização relativa a danos materiais e morais suportados em razão da denúncia ou notícia, não se conformando como uma hipótese de enriquecimento ou acréscimo patrimonial. O estabelecimento de recompensas somente deve ser utilizado com muita parcimônia e ponderação para casos de extrema necessidade e gravidade, tais como sequestros, desaparecimentos etc. Isso porque a banalização de recompensas por denúncias ou notícias de violência contra crianças e adolescentes pode fomentar um indesejável e deletério denuncismo movido tão somente pela cupidez ou ganância e, portanto, altamente não confiável e potencialmente induzidor de denunciações caluniosas.
Por derradeiro cabe um esclarecimento acerca de uma dúvida que pode surgir. No Capítulo VI da Lei 14.344/22 (artigo 23 e artigo 24, §§ 1º. a 9º.), fala-se muito de “medidas e ações para a proteção” do noticiante, do denunciante e de testemunhas, mas em momento algum são arroladas quais seriam essas medidas. Pode parecer então que faltaria tipicidade processual para a decretação dessas medidas protetivas. Isso é, porém, um erro interpretativo. A Lei 14.344/22 não é lacunosa. Na verdade, as medidas de proteção que podem ser tomadas, “mutatis mutandis” com relação a essas pessoas são as mesmas previstas para as vítimas crianças e adolescentes, conforme consta dos artigos 20 e 21 da Lei Henry Borel. Além disso, por integração, podem ser utilizadas as medidas protetivas previstas na Lei Maria da Penha (Lei 11.340/06), bem como aquelas constantes do artigo 319, CPP, afora, como último recurso, a prisão provisória (Prisão Preventiva) do agressor (artigo 17 da Lei 14.344/22). Isso tudo sem olvidar as disposições expressamente mencionadas no artigo 24, § 5º., da Lei Henry Borel, onde se alude à Lei 9.807/99 (Lei de Proteção de vítimas, testemunhas e réus colaboradores). Essa afirmação se faz com base no disposto nos artigos 20, § 1º.; 21§ 2º.; 24, § 5º., e 33 todos da Lei 14.344/22, os quais constituem um arcabouço normativo permissivo da integração da tipicidade processual das medidas protetivas previstas no ordenamento jurídico brasileiro para satisfação dos desideratos da Lei Henry Borel.
4.2.2. FLERTANDO COM O TOTALITARISMO?
À primeira vista e sem maiores reflexões, a previsão de um tipo penal incriminador da omissão de comunicação às autoridades de casos de violência doméstica e familiar contra crianças e adolescentes parece ser uma providência adequada.
Como enfatiza Muray, a falta de ponderação nessas circunstâncias obnubila o juízo crítico e muitas vezes “o chamado à delação se faz sem complexos, pois é para o bem de todos, e não gera a menor indignação”. 26 Será realmente um bem ou sequer um mal necessário? O autor usa da ironia para nos convidar a refletir.
Em nossa realidade é preciso notar que o crime é comum, ou seja, voltado não somente para os agentes públicos, mas para qualquer pessoa. Com isso, institui-se uma obrigação de delação nas relações interpessoais horizontais. O quadro é completamente diverso das previsões de crimes omissivos para agentes públicos (crimes próprios e funcionais), tais como a “Prevaricação” (artigo 319, CP), a “Condescendência Criminosa” (artigo 320, CP), a “Omissão Perante a Tortura” (artigo 1º., § 2º., da Lei 9.455/97), entre outros.
Além do grave perigo dessa espécie de imposição de delação mútua no que se refere a um possível denuncismo irracional, pervertido e leviano que já se mostrou presente em situações semelhantes ao longo da História humana, há que lembrar que o recurso a essa espécie de norma impositiva da delação como forma de controle social, não a agentes públicos somente, mas também aos particulares, tem sido a marca de regimes totalitários ou autocráticos. E certamente já temos em nossa sociedade brasileira uma dose considerável de barbárie, não sendo necessário, de forma alguma, que comecemos a irrigar “com areia nossos desertos interiores”. 27
E não serve para abrandar a temeridade dessa medida a alegação de que eventuais delatores mendazes poderão ser responsabilizados pelo crime de “Denunciação Caluniosa”, nos termos do artigo 339, CP. Acontece que nesses casos, a ulterior punição do delator e mesmo eventuais indenizações civis, jamais removerão a pecha de uma investigação e/ou processo criminal e muito menos a repercussão midiática que segue inevitavelmente esses episódios. Nem é preciso viajar muito no tempo para recordar do “Caso Escola Base”, passado no Brasil e mesmo não havendo na época norma alguma incentivadora e impositiva de delação. A descoberta da mentira das acusações de abuso infantil não devolveu a dignidade e nem mesmo o patrimônio e os meios de subsistência aos prejudicados. Eles passaram por um processo de “morte social ou civil”, na adequada dicção de Silva, foram “enterrados socialmente”. 28
Como alerta Bauman, é ilusório acreditar que estamos livres de uma reiteração de regimes totalitários e até genocidas. Os grandes totalitarismos do século XX (Comunismo, Nazismo e Fascismo) se conformaram no seio de uma sociedade de alto grau de civilização e cultura. Olvidar a possibilidade de retorno dessas barbaridades é “sinal de perigosa cegueira, potencialmente suicida”. 29 Afinal, como nos ensina a frase normalmente atribuída a Thomas Jefferson, mas que, na verdade, é encontrável em um discurso de John Philpot Curran, de 1790 e publicado em um livro de título “Speeches on the late very interesting State trials” em 1808, “o preço da liberdade é a eterna vigilância” (“The price of freedom is eternal vigilance”). 30 Mais precisamente assim se manifestou Curran:
“É o destino comum dos indolentes ver seus direitos se tornarem presas dos ativos. A condição sob a qual Deus deu liberdade ao homem é a eterna vigilância; se essa condição for quebrada, a servidão é ao mesmo tempo a consequência de seu crime e a punição de sua culpa”. 31
A imprescindibilidade dessa constante vigilância é constatável quando se vê um festejado filósofo da atualidade, como Richard Rorty, adepto do relativismo, reduzir a aversão à crueldade e o reconhecimento de uma humanidade comum a meras “contingências históricas”. 32 Não por outra razão, Boudon aponta para um círculo vicioso lógico e mesmo ético (embora coerente) em que acaba se emaranhando Rorty com seu relativismo, ao descambar para a explicação de que “os sentimentos de horror que Auschwitz nos inspira” são mero “produto de um condicionamento histórico”. 33 De forma que se os exércitos nazistas tivessem vencido, o relativismo cultural (culturalismo em suma) nos imporia, sob a pressão dos fatos, a aceitação dos “valores” raciais como “bons”! Apenas olvida Rorty e outros culturalistas relativistas que nesse quadro totalitário do nazismo não existiria espaço para culturalismo nem relatvismo, mas apenas para o absoluto domínio de uma ideologia. E nada disso, imposto de fora, seria fundamento suficiente para justificar racional e espiritualmente coisas como a crueldade ou o racismo, as quais continuariam sendo abjetas e moralmente inadmissíveis e indefensáveis, ainda que essa verdade sobre sua natureza estivesse soterrada por toneladas de violento e opressivo totalitarismo. Não obstante, é visível que há pensadores da atualidade capazes de relativizar a barbárie, ainda que em nome de um exercício intelectual. A verdade é que na suposta “boa intenção” de afastar “ilusões” que a seu ver poderiam colocar em risco a solidariedade humana, acabam pós – modernos como Rorty solapando quaisquer fundamentos que a pudessem sustentar, findando por abrir caminho não só para um retorno da barbárie e para uma espécie de “compreensão” para com os bárbaros que ainda existem no mundo, mas também para a sua normalização.
Um exemplo pungente da intimidade entre a imposição e o incentivo da delação horizontal na sociedade encontra-se no livro autobiográfico de Ting- Xing Ye, onde a autora narra sua dramática experiência sob o tacão de Mao Tsé – tung e sua inglória “Revolução Cultural” no seio da qual exatamente se “estimulava os jovens a delatar uns aos outros”, eliminando sentimentos de amizade, camaradagem, confiança ou qualquer vínculo humano. 34 Até mesmo os liames familiares foram destruídos por esse regime abjeto. Uma garota chegou a ser escolhida como “modelo” para a juventude porque “havia denunciado toda a família após seu pai ser rotulado de direitista”. 35
Também Van Coillie descreve bem a imposição da delação sob Mao Tsé – tung:
Si ves u oyes u observas en cualquier compañero un detalle que no sea absolutamente ortodoxo, sea en sus gustos, sea en sus escritos, en sua andares, en el juego, en el trabajo o en su silencio. Denúncialo en seguida! Tienes que traicionar a tu compañero! Si no lo haces, serás tan culpable como él. 36
E o mesmo Van Coillie noticia fato similar ao narrado por Ting – Xing Ye. A história de um rapaz de vinte anos de idade que acusou o próprio pai idoso de todos os crimes possíveis e imagináveis, levando-o ao cárcere. O ato foi considerado “heroico” pelo sistema, merecendo grandes elogios e sendo o jovem indicado como “modelo” para todos os outros. 37
Outra obra autobiográfica de autoria de Reinaldo Arenas, perseguido pelo Regime Cubano de Fidel Castro por ser dissidente e homossexual, também chama a atenção para a deterioração humana com vistas à sobrevivência em um regime totalitário, onde a delação faz parte do cotidiano. 38
Um dos recursos do chamado “Experimento Pitesti” (a tortura como forma de reeducação) que se passou na Romênia, era o denominado “desenmascaramiento interno”, que consistia em delatar os colegas presos e até mesmo funcionários prisionais mais benevolentes. Havia ainda o “desenmascaramiento externo”, quando se exigia a delação de pessoas com que o preso teve contatos anteriores em liberdade. 39
Na Alemanha nazista os pais já não podiam confiar nem mesmo nos próprios filhos, os quais eram doutrinados nas escolas para que dessem maior relevância à obediência ao Führer do que ao amor ou fidelidade à família. Bartoletti informa que “muitos pais foram presos pela Gestapo, delatados pelos filhos”. Um exemplo apresentado pela autora é o de Water Hess, o qual denunciou que o próprio pai havia alegado que Hitler era um “louco maníaco nazista”. 40 Isso resultou no envio do pai de Hess para um campo de concentração no sul da Alemanha. 41
Como bem aduz Yutang
O Estado pode facilmente transformar-se em um monstro, como já está acontecendo em alguns países, engolindo a liberdade da palavra do indivíduo, sua liberdade de consciência e de fé religiosa, sua honra pessoal e até a meta última e final da felicidade individual. 42
E uma das metas dos sistemas totalitários de qualquer orientação (comunismo, nazismo ou fascismo) é a eliminação da “afeição e da lealdade familiares”, as quais são censuradas como sentimentos burgueses que não merecem outro destino senão a extinção. 43 Dentre os instrumentos para a destruição desses laços naturais execrados pelos regimes totalitários está exatamente a cultura da delação, razão pela qual todo cuidado é pouco ao deliberar-se pela inoculação desse instituto na sociedade pela via do Direito.
Por outro lado, a violência doméstica e familiar contra crianças e adolescentes é um problema gravíssimo e suas vítimas normalmente não têm muitos recursos de defesa ou mesmo denúncia, vivem como reféns, muitas vezes até um desfecho fatal, sendo que também com frequência pessoas próximas sabem do que vem ocorrendo e se omitem.
Essa omissão decorre de fatores eminentemente culturais e de déficit moral, tal qual nos ensina Tocqueville:
Vejo uma multidão incalculável de homens semelhantes e iguais que giram sem repouso torno de si mesmos para conseguir pequenos e vulgares prazeres com que enchem sua alma. Cada um deles, retirado à parte, é como que alheio ao destino de todos os outros: seus filhos e seus amigos particulares formam para eles toda a espécie humana; quanto ao resto de seus concidadãos, está ao lado deles, mas não os vê; toca-os mas não os sente; cada um só existe em si mesmo e para si mesmo. 44
E aí surge novo questionamento acerca da conveniência (ou não) da criminalização em estudo. Seria sequer adequado e muito menos eficaz pretender obter uma mudança cultural e um ganho de qualidade moral, usando como instrumento a ameaça do Direito Penal? O Direito Penal seria um bom método pedagógico ou a cultura de um povo e sua moralidade deve ser cultivada por outros meios de aprimoramento que tornem as pessoas conscias de seus deveres, do certo e do errado, do bem e do mal, da verdade e da mentira? Parece que não haverá jamais legislação penal ou de outra natureza capaz de incutir nos homens bons sentimentos e noções de obrigação em meio a um mundo e neste mundo, um país, onde tudo é relativisado e quase todos andam perdidos.
Não é que se pretenda com a exposição dessa abordagem histórica crítica equiparar ou equalizar a criação de um tipo penal como o artigo 26 da Lei 14.344/22 com as atrocidades dos regimes totalitários do século XX ou atuais, o que seria um óbvio e ingente desvio do senso de proporções. Porém, é preciso ter em mente que o totalitarismo muitas vezes, e principalmente no mundo contemporâneo, não se implanta de roldão, repentinamente e de forma acabada. Antes, se introduz sutil, lenta e insidiosamente. Isso porque na atualidade já se sabe que o verdadeiro “poder político” não se obtém pela força bruta, nem de forma imediata, mas significa conquistar o domínio “sobre as mentes e as ações dos homens”. 45 Tratando da barbárie sob o ângulo da exagerada acumulação de capital, mesmo um autor como Veblen que acreditava na utopia socialista (outra barbárie),46 constatou a existência de distinção entre uma barbárie “feroz”, “rapace” e “predatória” nos primeiros tempos e sua mudança moderna para meios de ação mais sutis, próximos da “fraude” e marcados por certa “prudência” e “discrição”. A natureza bárbara pode ser aquela que ataca frontalmente ou dissimuladamente, uma afim da “ferocidade”, outra da “astúcia”. 47 Nem sequer há a pretensão de imputar ao legislador ou a quem quer que seja, uma má intenção ou o desiderato inequícovo de inocular um elemento totalitário na sociedade brasileira pela via do mundo jurídico. Apenas é preciso salientar com Boudon que muitas vezes uma consequência indesejável e até nociva pode advir de uma decisão refletida e bem intencionada. 48 E como temos ciência pela via da sabedoria popular, “de boas intenções o infermo está cheio”.