Lei Henry Borel (Lei nº 14.344/22): principais aspectos

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14/07/2022 às 19:50
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5. INTERVENÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO NAS CAUSAS QUE ENVOLVEM VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA CRIANÇA OU ADOLESCENTE

O artigo 127, CF atribui ao Ministério Público a condição de “instituição permanente essencial à função jurisdicional do Estado”. Também lhe incumbe da função de “defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis”. Nesse passo não é surpresa que a legislação determine casos em que o Ministério Público, obrigatoriamente, deverá intervir, ainda que não seja parte processual. Causas que envolvam interesses indisponíveis de incapazes, por exemplo, certamente são exemplos da necessária atuação ministerial.

O Código de Processo Civil, seguindo a normatização constitucional do tema, estabelece que em casos envolvendo incapazes, dentre eles os etários, há necessidade de intervenção ministerial (vide artigos 176 c/c 178, II, CPC). Também estabelece o CPC os limites e alcances da atuação ministerial, de acordo com seu artigo 179, I e II, abrangendo o direito de vista dos autos, intimação de todos os atos do processo, produção de provas, requerimento de medidas processuais em geral e de recurso.

Na área criminal, o Ministério Público é o titular privativo da ação penal pública, conforme dispõe o artigo 129, I, CF, secundado pela parte inicial do artigo 24 c/c artigo 257, I, CPP.

Mas, e na ação penal privada? Também atua o Ministério Público como “custos legis” (Fiscal da Lei – inteligência do artigo 257, II, CPP). Na fase de Inquérito Policial opina pela concessão de prazo e quando o feito é relatado e fica à disposição do querelante (artigo 19, CPP), tem vista dos autos para aferir se existe ali também algum indício de crime de ação penal pública, a fim de que tome as providências devidas em caso positivo. 49

Pode ainda o Ministério Público, nos termos dos artigos 45 c/c 46, § 2º., CPP, aditar a queixa para incluir eventual querelado, velando, enquanto “custos legis”, pela indivisibilidade da ação penal (artigo 48, CPP). Embora atue como fiscal da lei, zelando pela indivisibilidade e possa até aditar à queixa – crime nos casos de ação penal privada, não é dado ao Ministério Público o poder de incluir crime de ação penal privada não mencionado pelo querelante, isso tendo em vista o “Princípio da Opornidade” que rege tal espécie de ação penal, bem como o fato de que não é legitimado como titular. Mesmo quanto à inclusão de querelantes, há controvérsias, tendo em vista tratar-se de ação penal privada. Para alguns é possível o aditamento, sendo uma exceção às regras da ação penal privada de acordo com o disposto no artigo 45, CPP. Para outros isso não é possível, já que a omissão de algum querelado implica em renúncia tácita do direito de ação, a qual se transmite a todos os demais pelo “Princípio da Indivisibilidade da Ação Penal” (inteligência do artigo 49, CPP), não cabendo ao Ministério Público atuar, a não ser, como fiscal da lei, para apontar a configuração da renúncia e extinção de punibilidade de todos. Finalmente, há quem defenda que o Ministério Público somente apontará a infração à indivisibilidade, para que o quereleante, em desejando, adite a queixa. Se o fizer o processo prossegue. Se não o fizer ocorre a renúncia e a extinção da punibilidade. A Súmula 16 das Mesas de Processo Penal da Universidade de São Paulo estabelece o seguinte: “em face dos princípios que regem a ação privada, não é possível o aditamento à queixa pelo Ministério Público para inclusão de corréu”. 50

Em caso de recurso na ação penal privada pode o Ministério Público apresentar razões nos termos do artigo 600, § 2º., CPP. 51 Não obstante sua capacidade recursal é reduzida, tendo em vista não ser o titular da ação penal privada. Pode recorrer na condição de fiscal da lei quando a sentença for condenatória. Mas, quando a sentença for absolutória o direito de recorrer é apenas do titular da ação (querelante). O apelo do Ministério Público nesses casos constituiria, na dicção de Demoro Hamilton, uma “verdadeira aberração” por falta de interesse de agir, já que o Estado não tem interesse na punição do réu, de acordo com os princípios e institutos 52 que regem as ações penais privadas (oportunidade, conveniência, disponibilidade, perdão do ofendido, desistência etc.).

Finalmente cabe ressaltar que o ECA (Lei 8.0969/90 – artigos 202 a 205) determina a intervenção do Ministério Público, ainda que não seja parte, em ações que envolvam direitos das crianças e adolescentes, gerando nulidade a falta dessa intervenção.

Com o advento da Lei 14.344/22 foi incluído no artigo 201 do ECA, que arrola as atribuições do Ministério Público diante dos direitos das crianças e adolescentes, um inciso XIII para determinar sua obrigatória intervenção, mesmo quando não for parte, nas causas cíveis e criminais decorrentes de violência doméstica e familiar contra a criança e o adolescente.

Na seara cível, parece não existir qualquer dúvida acerca dessa incumbência obrigatória do Ministério Público em causas que envolvam menores e incapazes em geral, conforme já demonstrado. Nesse passo o novo inciso XIII do artigo 201 do ECA surge apenas como um reforço dessa necessária intervenção, que já decorria da Constituição Federal, do Código de Processo Civil e do próprio ECA.

Na área criminal, em se tratando de ações penais públicas, o dispositivo é inoquo, pois o Ministério Público não somente irá “intervir”, mas é o titular privativo da ação penal pública, aplicando-se o artigo 129, I, CF e os artigos 24 c/c 257, I, CPP, de modo a tornar totalmente dispensável a previsão do artigo 201, XIII, ECA.

Já nos casos de ações penais privadas envolvendo crianças e adolescentes como vítimas (v.g. violência moral – crimes contra a honra), também parece que a atuação do Ministério Público, embora limitada à função de “fiscal da lei”, já se encontra bem estabelecida no Código de Processo Penal, conforme acima demonstrado. Novamente o inciso XIII do artigo 201 do ECA surge como um reforço daquilo que já vinha estabelecido pelo sistema processual. A única diferença é que as normas anteriormente vigentes faziam menção à atuação ministerial na ação penal privada em geral e agora o ECA especifica sua obrigatoriedade no caso de ações envolvendo crianças e adolescentes. No mais, o alcance da atuação ministerial e de suas prerrogativas deve ser dado por interpretação sistemática com os artigos 202 a 205 do ECA. Poderá o Ministério Público, mesmo não sendo parte (ação penal privada), juntar documentos, requerer diligências e recorrer, bem como terá vista dos autos após as partes (artigo 202, ECA). Anote-se que quanto à capacidade recursal, há que observar os limites impostos pelos princípios e institutos da ação penal privada, conforme acima já mencionado, o que não nos parece poder alterar-se pelo advento do inciso XIII do artigo 201 do ECA, sob pena de desfigurar o arcabouço normativo e principiológico da ação penal privada. A intimação do Ministério Público deve ser obrigatoriamente pessoal (artigo 203, ECA). A falta de intervenção ministerial é causa de nulidade absoluta desses feitos, podendo ser reconhecida de ofício pelo juiz ou por provocação das partes ou do próprio Ministério Público. Esse alcance das prerrogativas ministeriais também vale para as ações cíveis.


6. LEI 9.099/95 E CRIMES COMETIDOS CONTRA A CRIANÇA E O ADOLESCENTE

Como é possível antever de acordo com nossas manifestações antecedentes neste texto, temos a convicção da impossibilidade de aplicação dos dispositivos benéficos da Lei 9.099/95 a quaisquer casos de violência doméstica e familiar contra crianças e adolescentes por aplicação do disposto no artigo 226, § 1º., do ECA (Lei 8.069/90) com nova redação dada pela Lei 14.344/22. Em nossa concepção é indiferente que o crime praticado contra o menor seja daqueles previstos no ECA ou na legislação codificada e esparsa em geral. Não cabe aplicar as benesses da Lei 9.099/95 a nenhum violador de crianças ou adolescentes no âmbito doméstico e familiar. É claro que para meninas já existe induvidosamente essa proibição, nos termos do artigo 41 da Lei 11.340/06. A dúvida que poderia surgir, com relação ao alcance do artigo 226, § 1º., da Lei 8069/90 se refere aos meninos, mas a nosso ver o tratamento somente pode ser isonômico.

Há, porém, controversias sobre essa questão. Autores como Cunha e Ávila 53 entendem que a vedação da Lei 9.099/95 somente tem validade para os crimes previstos no ECA, já que o “caput” do artigo 226 do mesmo diploma, que não foi alterado, diz respeito especificamente a crimes da Lei 8.069/90, não abrangendo ilícitos que não sejam ali previstos. A dicção do artigo 226, “caput” é “aos crimes definidos nesta lei”, ou seja, no ECA. Segundo os autores, portanto, o § 1º., somente pode ser interpretado em conjunto com o disposto no “caput”.

Cunha e Ávila chamam a atenção para o fato de que a Lei Henry Borel espelha muitas disposições da Lei Maria da Penha, mas no que se refere à vedação de aplicação da Lei 9.099/95, apartou-se da sistemática da Lei 11.340/06, que previu tal impedimento no seu corpo interno, mais precisamente em seu artigo 41. A Lei Henry Borel preferiu tratar da vedação respectiva em outro diploma legal, no caso, o ECA (Lei 8.069/90), em seu artigo 226, § 1º. Afirmam, com base nisso, que como a alteração legal se deu no ECA e não na Lei Henry Borel, a vedação em estudo somente se aplica aos crimes do ECA (ali previstos) e não de forma geral. Alegam os autores que se o legislador pretendesse uma vedação genérica teriam feito a previsão na Lei Henry Borel diretamente, tal como ocorre com a Lei Maria da Penha e não no ECA. 54

Entendem ainda os autores que a interpretação de vedação genérica implicaria no impedimento de aplicação da Lei 9.099/95 a quaisquer crimes contra crianças e adolescentes, ainda que fora da situação de violência doméstica e familiar, o que nem mesmo ocorre na Lei Maria da Penha. Isso porque o § 1º., do artigo 226 do ECA menciona “Aos crimes cometidos contra criança e adolescente” sem qualificar a situação de violência doméstica e familiar. 55

Fazem ainda menção à tendência de acatamento da chamada “Justiça Consensuada” e à sua ampliação pelo denominado “Pacote Anticrime” (Lei 13.964/19) com a previsão do “Acordo de Não Persecução Penal” (ANPP – artigo 28 – A, CPP). 56

Trazem ainda à discussão a decisão do STF quanto ao artigo 91 do Estatuto do Idoso não ampliar o conceito de infração de menor potencial para aquelas com penas máximas cominadas abstratamente até 4 anos, mas tão somente para autorizar a aplicação do Procedimento Sumaríssimo da Lei 9.099/95 quando a vítima do crime for idosa. No entanto, não houve entendimento do Supremo quanto ao não cabimento das benesses da Lei 9.099/95 quando o crime tiver pena máxima cominada até 2 anos (transação penal) ou mínima até 1 ano (suspensão condicional do processo). 57

Com o devido respeito, não se pode concordar com essa interpretação, tratando-se, como bem afirmam Costa e Araújo, de um evidente “equívoco hermenêutico”. 58

Nem a interpretação gramatical nem a sistemática levam ao resultado preconizado pelos autores em destaque.

O artigo 226, ECA em sua redação original não contava com parágrafos. Portanto, a inclusão destes não é, obrigatoriamente, procedida em correlação sistemática com o atual “caput”. O que hoje é o “caput” do artigo 226, ECA regula a aplicação subsidiária das normas da Parte Geral do Código Penal e do Código de Processo Penal aos crimes previstos no ECA. Aí sim, a norma se refere somente aos crimes do ECA.

Já o § 1º., não foi criado concomitantemente com o atual “caput” e sim introduzido pela Lei Henry Borel. Ali não há menção a “crimes definidos nesta lei”, mas sim a “crimes cometidos contra criança e adolescente”. Não há qualquer distinção entre crimes do ECA e demais crimes que atinjam crianças e adolescentes. Não há ligação entre o “caput” e seu § 1º., de forma que cada um trata de um regramento de aplicação de normas. O “caput” regula a aplicação subsidiária do Código Penal e do Código de Processo Penal, referindo-se aos crimes do ECA. O § 1º. regula a aplicação, ou melhor, a não aplicação da Lei 9.099/95, seja aos crimes do ECA, seja a quaisquer crimes perpetrados contra crianças e adolescentes. Cada dispositivo tem uma redação diversa e se refere a diplomas legais diversos. No caput, ao referir-se a lei à legislação codificada (geral) não teria realmente cabimento que não estivesse se referindo aos crimes previstos estritamente no ECA. Quanto aos demais crimes do ordenamento jurídico brasileiro, salvo disposição expressa em contrário, aplicam-se naturalmente tais diplomas genéricos.

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Outra comprovação da independência entre os parágrafos e o “caput” é que o § 2º., impede a aplicação de penalidade envolvendo “cestas básicas”, outras de “prestação pecuniária”, bem como substitiuição por pena isolada de multa, isso tudo, não para os crimes do ECA apenas, mas “nos casos de violência doméstica e familiar contra a criança e o adolescente” (letra da lei – artigo 226, § 2º., ECA). Resta nítido o espelhamento do artigo 17 da Lei Maria da Penha (Lei 11.340/06), o que não deixa a menor dúvida quanto à “mens legis” de propiciar tratamento idêntico às violências doméstica e familiar contra a mulher e crianças e adolescentes. Aliás, tratar de forma diferente infringiria a isonomia e seria inconstitucional. Não teria cabimento que meninas violentadas no ambiente doméstico e familiar contassem com a vedação de aplicação ao agressor da Lei 9.099/95, enquanto que meninos não contassem com tratamento isonômico.

A alegação de Cunha e Ávila quanto à diferença de topografia entre as normas proibitivas, prevendo a Lei Maria da Penha a vedação à Lei 9.099/95 em seu próprio bojo e a Lei Henry Borel, preferindo levar tal dispositivo ao ECA, é absolutamente irrelevante. Isso porque no caso da mulher, inexiste um Estatuto da Mulher com previsão similar ao ECA. Então a Lei Maria da Penha somente poderia prever a norma proibitiva da Lei 9.099/95 em seu próprio corpo. Já no caso das crianças e adolescentes, existe o ECA, podendo o legislador optar por tratar dos temas, inclusive este, no bojo da Lei 14.344/22 ou no ECA (Lei 8.069/90). Até porque a Lei 14.344/22 prevê expressamente a possibilidade de aplicação subsidiária das disposições do ECA, naquilo que couber, conforme artigo 33 da Lei Henry Borel.

Também não é justificado o temor dos autores quanto a uma exagerada proibição de aplicação da Lei 9.099/95 a todos os casos com vítimas menores, mesmo em não se tratando de situações de violência doméstica e familiar. É verdade que o § 1º. em estudo menciona genericamente “crimes cometidos contra a criança e o adolescente”. Mas, é mais do que óbvio que a referência se limita aos casos de violência doméstica e familiar, devido à genealogia do dispositivo, pois ele provém da Lei Henry Borel (Lei 14.344/22), a qual se refere especificamente a essa espécie de violência e não a quaisquer situações em que a vítima seja menor. Tanto é fato que logo em seguida, o outro dispositivo incluído pela Lei Henry Borel, o § 2º., já se refere expressamente e especificamente aos “casos de violência doméstica e familiar contra a criança e o adolescente”. Aqui sim, a genealogia comum e concomitante dos §§ 1º. e 2º., indica uma interpretação sistemática não somente entre eles, mas deles com a natureza dos fatos tratados pela Lei 14.344/22, que se refere especificamente à violência doméstica e familiar contra menores e não a qualquer caso que envolva menor como sujeito passivo de infrações penais.

Quanto ao acatamento da “Justiça Consensuada” no ordenamento jurídico brasileiro, trata-se de fato inegável. Porém, isso não significa que a aplicação desse modelo seja ilimitada. É plenamente possível, e é até mesmo a regra nesses casos, que se estabeleçam legalmente as situações em que o modelo consensuado pode ou não ser aplicado (modelo de discricionariedade regrada ou regulada). 59 A própira Constituição Federal, ao prever a possibilidade de criação de Juizados Especiais Criminais, delega ao legislador ordinário seu regramento e a conceituação de infração de menor potencial (inteligência do artigo 98, I, CF). Também não se justifica a preocupação dos autores com relação ao Acordo de Não Persecução Penal (ANPP) trazido ao ordenamento pela Lei 13.964/19. A Lei 14.344/22 não previu qualquer proibição para a aplicação desse instituto, seja em seu próprio bojo, seja no ECA ou em qualquer local (CPP etc.). Muito embora, a nosso ver, devesse ter previsto, tendo em vista um tratamento isonômico entre meninos e meninas. Isso porque com relação às mulheres em situação de violência doméstica e familiar, a própria Lei 13.964/19, que alterou o CPP, proibiu o ANPP nessas circunstâncias (vide artigo 28 – A, § 2º., IV, CPP com nova redação dada pela Lei 13.964/19). Há, portanto, uma inconstitucionalidade por insuficiência protetiva em relação aos meninos, bem como uma violação crassa da isonomia entre homens e mulheres (artigo 5º., I, CF). Note-se que a proposta não é o laxismo legal com a permissão de acordo para os casos de violência contra a mulher, mas o tratamento igualitário com o rigor da não permissão do ANPP também para a violência contra meninos.

Por derradeiro, a alusão dos autores à decisão do STF quanto ao alcance limitado do artigo 91 do Estatuto do Idoso, é a mais inadequada de todas as argumentações. Em primeiro lugar esse dispositivo, dada sua redação confusa, parecia ampliar, para os casos de idosos vitimados, o conceito de infração de menor potencial. Parecia que o artigo 91 fazia com que o conceito de infração de menor potencial para não idosos abrangesse apenas crimes com penas máximas até 2 anos, enquanto que para casos de idosos como vítimas a infração seria de menor potencial com penas até 4 anos. Ora, isso seria um absurdo, uma irrazoabilidade e a proporcionalidade virada de ponta – cabeça! O objeto de discussão era impedir a ampliação de aplicação da Lei 9.099/95 em casos de vítimas idosas. Exatamente o oposto do que se trata agora com o § 1º., do artigo 226 do ECA, que se relaciona com a restrição ou proibição de aplicação da Lei 9.099/95 para crimes em geral contra crianças e adolescentes em violência doméstica e familiar. Não há ligação possível entre os dois casos, eles são contrários, não têm nada em comum. O fato de que o STF tenha decidido que seriam aplicáveis aos casos de idosos vítimas os benefícios da Lei 9.099/95, desde que cumpridos os requisitos legais (pena máxima até 2 anos ou pena mínima até 1 ano, respectivamente para transação penal e suspensão condicional do processo), nada tem novamente a ver com o caso da Lei Henry Borel e do ECA. O Estatuto do Idoso, em momento algum criou norma proibitiva de aplicação da Lei 9.099/95, donde se conclui que ela pode ser aplicada nos seus estritos limites. O risco no Estatuto do Idoso era de indevida ampliação de aplicação da Lei 9.099/95 em prejuízo dos idosos, ocasionando evidente insuficiência protetiva e não de restrição. O único ponto de contato entre os dois “cases” é o de que cabe realmente ao legislador ordinário estabelecer o conceito de infração de menor potencial ofensivo e os critérios de aplicação das benesses da Lei 9.099/95.

Observe-se ainda que, tal qual a Lei Maria da Penha, a Lei Henry Borel reconhece a violência doméstica e familiar contra crianças e adolescentes como “uma das formas de violação dos direitos humanos” (artigo 3º., da Lei 14.344/22). Como seria possível, dentro de uma razoabilidade e proporcionalidade minimamente admissíveis, considerar uma “violação dos direitos humanos” como uma “infração de menor potencial”? Isso é até mesmo contraditório, pois ou bem estamos tratando de uma grave violação dos direitos humanos ou de uma infração de natureza bagatelar ou mesmo de médio potencial.

Outro motivo que aponta para a abrangência genérica do § 1º., do artigo 226, ECA, é o fato de que o crime previsto no artigo 25 da Lei Henry Borel tem pena máxima cominada de 2 anos e seria então de menor potencial, não cabendo, em regra, a Prisão em Flagrante e sim elaboração de Termo Circunstanciado. Acontece que o § 2º., do mesmo dispositivo trata expressamente da “Prisão em Flagrante” e ainda veda a concessão de fiança pela Autoridade Policial. Ora, se fosse aplicada a Lei 9.099/95, já que o artigo 226, § 1º., ECA só alcançaria os crimes da Lei 8.069/90, não haveria Prisão em Flagrante e nem necessidade de fiança e, ainda que excepcionalmente houvesse a Prisão em Flagrante, deveria ser concedida fiança pelo Delegado normalmente, aplicando-se o artigo 322, CPP. Nada justificaria o rigor da legislação nesse caso em dissonância com todos os demais.

A questão do tratamento isonômico entre meninos e meninas pela Lei Henry Borel é crucial para que não se venha a reproduzir, uma vez mais, discriminações negativas que não contam com justificativa plausível e decorrem de falsidades e erros provocados pelo “politicamente correto”, conforme demonstra a escritora feminista, Christina Hoff Sommers:

La investigación, citada con frecuencia para apoyar las quejas sobre los privilegios y maldades masculinas, está plagada de errores. Casi nada de la misma ha sido publicado en periódicos evaluados por profesionales. Parte de la información falta misteriosamente. Sin embargo, el falso retrato permanece y es debidamente distribuido en centros educativos, en talleres de «igualdad de género» y, cada vez más, entre los propios niños. 60

Talvez seja também bom avivar a memória de todos para o fato de que a lei recebe o nome de um menino vítima de violência doméstica e familiar bárbara, Henry Borel, e de que ele não é, por obviedade, a única criança do sexo masculino nessa situação (v.g. Caso Bernardo Boldrini, 61 Caso Rafael Matheus Winques, 62 Caso Ruan Maicon, 63 entre muitos outros).

Demonstrados os argumentos ampliativos e restritivos do alcance do artigo 226, § 1º., ECA e adotando-se o entendimento ampliativo, 64 conforme exposto, há que analisar uma questão relevante.

A vedação de aplicação da Lei 9.099/95 constante no § 1º., do artigo 226, ECA se refere textualmente a “crimes” cometidos contra crianças e adolescentes. Mas, e se ocorrer a prática de uma contravenção penal contra crianças e adolescentes em violência domética e familiar. A mais comum delas seria a contravenção penal de Vias de Fato (artigo 21, LCP). A vedação que se refere a crimes, a princípio não seria aplicável às contravenções por força do “Princípio da Legalidade”, uma vez que crimes e contravenções são espécies diversas do gênero “infrações penais”.

Acontece que o mesmo dilema já foi enfrentado acerca do disposto na Lei Maria da Penha em seu artigo 41, o qual também faz menção somente a “crimes”. E o STJ, bem como o STF estabeleceu que a palavra “crimes” nesse caso deveria ser interpretada de forma ampla, abrangendo tanto crimes como contravenções. Vejamos:

Uma interpretação literal do disposto no art. 41 da Lei n. 11.340/2006 viabilizaria, em apressado olhar, a conclusão de que os institutos despenalizadores da Lei 9.099/1995, entre eles a transação penal, seriam aplicáveis às contravenções penais. Contudo, considerando a finalidade da norma e o enfoque da ordem jurídico – constitucional, tem-se que, considerados os fins sociais a que a lei se destina, o artigo 41 da Lei n. 11.340/2006 afasta a incidência da Lei n. 9.099/95, de forma categórica, tanto aos crimes quanto às contravenções penais, a mens legis do disposto no referido preceito não poderia ser outra, senão de alcançar também as contravenções penais (STJ, HC n. 280.788/RS, Rel. Min. Rogério Schietti Cruz, j. 03.04..2014; no mesmo sentido STF, HC n. 106.212/MS, Rel. Min. Marco Aurélio Mello, j. 24.03.2011). 65

Na interpretação e aplicação dos dispositivos da Lei 14.344/22 é preciso ter sempre atenção para a necessidade de isonomia entre meninos e meninas, a fim de não abrir brechas para inconstitucionalidades por insuficiência protetiva. Ademais, é necessário lembrar que a Lei Henry Borel é praticamente especular (no sentido de espelho) em relação à Lei Maria da Penha. E se nesta última há dispositivo que aponta para sua interpretação de acordo com “os fins sociais a que se destina” e as “condições peculiares das mulheres em situação de violência doméstica e familiar” (artigo 4º., da Lei 11.340/06); não existe motivo para que tal proceder não seja estendido aos menores, levando em conta os fins sociais a que se destina a Lei 14.344/22, bem como a situação peculiar das crianças e adolescentes em situação de violência doméstica e familiar (inteligência do artigo 33 da Lei 14.344/22).

Nesse passo, é de prognosticar que os tribunais devam interpretar a vedação prevista no artigo 226, § 1º., do ECA de forma ampla, abrangendo tanto crimes como contravenções penais, a exemplo do que já ocorreu com o mesmo caso da Lei Maria da Penha.

Também por isonomia, entendemos que o mais correto será que os Tribunais superiores repitam outros entendimentos rigorosos previstos para agressores de mulher, nos casos de crianças e adolescentes também em violência doméstica e familiar. São exemplos algumas Súmulas do STJ: 66

A suspensão condicional do processo e a transação penal não se aplicam na hipótese de delitos sujeitos ao rito da Lei Maria da Penha. (Súmula 536, 3ª. Seção, julgado em 10/06/2015, DJe 15/06/2015).

A prática de crime ou contravenção penal contra a mulher com violência ou grave ameaça no ambiente doméstico impossibilita a substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos. (Súmula 588, 3ª. Seção, julgado em 13/09/2017, DJe 18/09/2017).

É inaplicável o princípio da insignificância nos crimes ou contravenções penais praticados contra a mulher no âmbito das relações domésticas. (Súmula 589, 3ª. Seção, julgado em 13/09/2017, DJe 18/09/2017).

Para a configuração da violência doméstica e familiar prevista no artigo 5º da Lei n. 11.340/2006 (Lei Maria da Penha) não se exige a coabitação entre autor e vítima. (Súmula 600, 3ª. Seção, julgado em 22/11/2017, DJe 27/11/2017).

Outra questão polêmica foi aquela da ação penal nas lesões corporais leves em casos de violência doméstica contra a mulher. A ação penal, por força do artigo 88 da Lei 9.099/95 é pública condicionada à representação do ofendido. Mas, com relação às circunstâncias de violência doméstica e familiar contra a mulher, entendeu-se que a vedação de aplicação da Lei 9.099/95 (artigo 41 da Lei 11.340/06) faria da ação penal pública incondicionada, voltando-se a aplicar o sistema geral do Código Penal, previsto no seu artigo 100, § 1º. A nosso ver, por aplicação do disposto no artigo 226, §1º., do ECA, com nova redação dada pela Lei 14.344/22, o efeito nos casos de lesões leves em violência doméstica e familiar contra crianças e adolescentes, não pode deixar de ser o mesmo. Assim sendo, prognostica-se que a Súmula 542, STJ deva ser repetida na interpretação e aplicação jurisprudencial dos casos de lesões leves contra crianças e adolescentes em situação de violência doméstica e familiar. Eis o texto da Súmula citada:

“A ação penal relativa ao crime de lesão corporal resultante de violência doméstica contra a mulher é pública incondicionada”.

Não há razão para criar distinções legais, doutrinárias ou jurisprudenciais entre meninos e meninas, especialmente porque tanto a Lei Maria da Penha (artigo 6º.), quanto a Lei Henry Borel (artigo 3º.) erigem os casos de violência doméstica e familiar, respectivamente contra as mulheres e as crianças e adolescentes (neste último caso independente do sexo) em graves violações dos direitos humanos. Ademais, ambas as leis mencionadas, assim como o ECA, são integradas pelo disposto no artigo 33 da Lei 14.344/22.

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Sobre o autor
Eduardo Luiz Santos Cabette

Delegado de Polícia Aposentado. Mestre em Direito Ambiental e Social. Pós-graduado em Direito Penal e Criminologia. Professor de Direito Penal, Processo Penal, Medicina Legal, Criminologia e Legislação Penal e Processual Penal Especial em graduação, pós - graduação e cursos preparatórios. Membro de corpo editorial da Revista CEJ (Brasília). Membro de corpo editorial da Editora Fabris. Membro de corpo editorial da Justiça & Polícia.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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