7. TERMO INICIAL DA CONTAGEM DO PRAZO PRESCRICIONAL EM CRIMES CONTRA A DIGNIDADE SEXUAL E ENVOLVENDO CRIANÇAS E ADOLESCENTES
A Lei 12.650/12 trouxe a lume novo termo inicial para contagem do prazo prescricional de crimes contra a dignidade sexual de crianças e adolescentes, estabelecendo-o como o momento em que a vítima completa 18 anos ou então, se o processo se inicia antes, o momento da propositura deste.
Na ocasião, já escrevemos sobre o tema e havia uma dúvida importante a ser sanada, conforme segue: 67
Ocorre que a legislação na época faz referência a crimes contra a dignidade sexual previstos no Código Penal ou em Legislação Especial. No Código Penal, nunca houve qualquer dúvida de que se tratavam dos crimes previstos no Título VI – Dos crimes contra a dignidade sexual, mais especificamente, seu Capítulo II – Dos Crimes Sexuais contra vulnerável. A dúvida surgia quanto a crimes contra a dignidade sexual de crianças e adolescentes previstos em legislação esparsa.
Certamente o primeiro diploma que veio à mente foi o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/90) no bojo do qual há realmente crimes que descrevem condutas envolvendo exploração sexual de crianças e adolescentes ou ao menos de suas imagens. Esses crimes podem ser encontrados nos artigos 240 a 241 – D, da Lei 8.069/90. Por seu turno, com o advento da Lei 12.015/09, restou revogado tacitamente o artigo 244 – A, do ECA, referente à exploração da prostituição de menores, tendo em vista o tratamento completo do tema pelo novo artigo 218 – B, CP. 68
Restava saber se os crimes previstos na Lei 8.069/90 podiam ou não ser considerados como “crimes contra a dignidade sexual” das crianças e adolescentes, a fim de que fossem submetidos ao novo regramento do termo inicial de prescrição.
A doutrina sobre os crimes do ECA é escassa e pouco aprofundada, de modo que não se encontra um posicionamento seguro quanto ao bem jurídico tutelado nos crimes ora enfocados. No entanto, com o advento da Lei 12.015/09, trazendo à baila a questão do bem jurídico “Dignidade Sexual”, pode-se dizer que toda conduta criminalizada que atente contra a dignidade da pessoa humana no seu aspecto sexual está tutelando esse bem jurídico – penal. É de se concluir, portanto, que os crimes previstos nos artigos 240 a 241 – D, do ECA são contra a “dignidade sexual das crianças e adolescentes”, de forma a serem abarcados pela então nova disciplina da prescrição. Certamente a menção do alcance do artigo 111, V, CP na época aos “crimes contra a dignidade sexual de crianças e adolescentes previstos (...) em legislação especial” deixava claro que a “mens legis” era exatamente de abarcar os delitos previstos no Estatuto da Infância e Juventude. 69
Acontece que a Lei 14.344/22 ampliou ainda mais o alcance dessa nova regra de prescrição, que passa a contar seu prazo da data em que a vítima faz 18 anos ou do início do processo. A redação agora foi alterada. Antes estava escrito “nos crimes contra a dignidade sexual de crianças e adolescentes”; agora consta “nos crimes contra a dignidade sexual ou que envolvam violência contra a criança e o adolescente”. Isso significa que antes a regra de contagem diferenciada do prazo prescricional valia somente para crimes contra a dignidade sexual perpetrados contra crianças e adolescentes e não para todos os crimes praticados contra crianças e adolescentes. Agora, amplia-se sobremaneira a aplicação do novo termo inicial de contagem. Ele será aplicado:
-
-aos crimes contra a dignidade sexual contra crianças e adolescentes;
-
-aos crimes de qualquer natureza que tenham por vítima crianças ou adolescentes.
Se havia motivo para alguma dúvida quanto aos crimes do ECA, agora isso é apenas um resquício histórico, pois seja em crimes do Código Penal ou de legislação esparsa, que envolvam crianças e adolescentes, sejam tais crimes contra a dignidade sexual ou de outra natureza, aplica-se a regra de contagem inicial de prazo prescricional do artigo 111, V, CP com nova redação dada pela Lei 14.344/22.
Embora na parte inicial do dispositivo, ao referir-se a crimes contra a dignidade sexual não haja menção a crianças e adolescentes, isso é intuitivo e consequente do restante da redação, que se refere à necessidade de a vítima completar 18 anos. Ora, se é assim, significa que a vítima aqui tratada, em todo o dispositivo, somente pode ser uma pessoa menor, ou seja, criança ou adolescente.
Certamente surgirá a dúvida quanto a ser aplicada a regra especial de prescrição somente para crimes praticados contra crianças e adolescentes em situação de violência doméstica e familiar ou a quaisquer casos onde a vítima seja criança ou adolescente. A única conclusão possível, seja por interpretação gramatical, seja sistemática, seja histórica, é a de que a regra especial abrangerá quaisquer crimes perpetrados contra crianças e adolescentes, em situação de violência doméstica e familiar ou não. Isso porque a lei não menciona a qualificação da “violência doméstica e familiar”, embora sua origem na Lei Henry Borel possa, em outros cenários, como já visto, sugerir isso. Acontece que no que tange à regra prescricional em estudo, esta se encontra na Parte Geral do Código Penal, o que significa que sua aplicação é abrangente de toda legislação brasileira penal, salvo disposição expressa em contrário. Finalmente, desde sempre o inciso V do artigo 111 se dirigia a quaisquer crimes perpetrados contra menores, antes apenas contra a dignidade sexual, mas em qualquer circunstância que envolvesse menores, agora, com o aumento de seu alcance, não há motivo plausível para pensar que o legislador pretenderia reduzir sua extensão e, consequentemente, diminuir o campo de tutela dos menores.
Assim sendo, a contagem especial se aplica a um caso de estupro de vulnerável praticado por um desconhecido contra uma criança ou pelos pais; também se aplica a um caso de lesões corporais praticado em razão de um desentendimento entre um adulto e um menor na rua, sendo eles totalmente desconhecidos ou apenas vizinhos ou amigos, como, da mesma forma, no caso de agressão física praticada por um tio ou um tutor.
8. NOVO REGRAMENTO DO HOMICÍDIO CONTRA MENORES DE 14 ANOS
A Lei 14.344/22 cria uma nova modalidade de Homicídio Qualificado, mediante a inclusão de um inciso IX no § 2º., do artigo 121, CP.
Passa a ser qualificado todo homicídio perpetrado contra menor de 14 anos.
O mesmo diploma legal toma a necessária providência de atualizar a Lei dos Crimes Hediondos (Lei 8.072/90) para incluir em seu artigo 1º., inciso I a classificação como crime hediondo do homicídio de menores de 14 anos, adicionando no parêntesis que descreve o tipo penal o novo inciso IX do artigo 121, § 2º., CP (vide artigo 32 da Lei Henry Borel).
Cria ainda a Lei 14.344/22 duas causas especiais de aumento de pena para os casos de Homicídio Qualificado com o “nomen juris” de “Homicídio Contra Menor de 14 Anos”. Essas causas de aumento de pena são aplicáveis exclusivamente aos casos tipificados no artigo 121, § 2º., IX, CP (“Homicídio Contra Menor de 14 Anos”), conforme deixa claro o § 2º. – B do artigo 121, CP em seu “caput” (do § 2º.-B). São elas:
I-1/3 até a metade se a vítima é pessoa com deficiência ou com doença que implique o aumento de sua vulnerabilidade;
II-2/3 se o autor é ascendente, padrasto ou madrasta, tio, irmão, cônjuge, companheiro, tutor, curador, preceptor ou empregador da vítima ou por qualquer outro título tiver autoridade sobre ela.
O inciso I do § 2º. – B se justifica sempre pela maior vulnerabilidade e, no caso do deficiente, essa condição deve ser aferida, na qualidade de elemento normativo do tipo, de acordo com o Estatuto da Pessoa com Deficiência (vide artigo 2º., da Lei 13.146/15). Já no caso de doença que implique aumento da vulnerabilidade, também se trata de um elemento normativo que deverá ser objeto de avaliação judicial casuisticamente, não se exigindo, como na deficiência, que a limitação seja de “longo prazo”. Exemplo de deficiente seria uma criança cega sem possibilidade de cura. Por seu turno exemplo de doença debilitante seria o de uma criança que sofreu uma convulsão e se encontra temporariamente sem condições de locomoção, mas que se recuperará em alguns dias ou horas.
De qualquer forma a doença deverá ser daquelas que ocasionem redução da capacidade defensiva e/ou evasiva da vítima, justificando sua maior proteção penal em face de sua efetiva maior vulnerabilidade. 70
Não é possível aplicar, em caso de incidência do aumento do inciso I, a agravante genérica prevista no artigo 61, II, “h” (criança ou enfermo), já que haveria dupla apenação pelo mesmo motivo. Somente no caso do enfermo pode ser que, acaso a enfermidade não seja causadora de maior vulnerabilidade ou incapacidade defensiva ou evasiva, se afaste o aumento e se aplique a agravante. Mas, nunca serão aplicados conjuntamente aumento e agravante.
Os aumentos previstos no inciso II se justificam pela especial relação de parentesco, responsabilidade e/ou autoridade entre a vítima e o autor do homicídio. Certamente é muito mais grave a morte de uma criança pelo próprio pai ou pela mãe do que por um desconhecido ou um conhecido sem esses tipos de vínculos. Há emprego da técnica de “interpretação analógica”, ofertando o dispositivo vários casuísmos (v.g. ascendente, padrasto, madrasta, tutor, curador etc.) e fechando a redação com uma fórmula genérica com relação à pessoa que “por qualquer outro título tiver autoridade sobre a vítima” (ex. um diretor de hospital, um médico psiquiatra, um psicólogo etc.). Em se aplicando o aumento de pena em estudo, devido à especial condição de tais pessoas ali mencionadas, algumas agravantes genéricas ficam afastadas porque constituiriam “bis in idem” (v.g. artigo 61, II, “e” (ascendente, irmão ou cônjuge), “f”, “g”, “h” (criança), “i”, CP).
Pode chamar a atenção a menção a companheiros e cônjuges, já que se tratam de vítimas menores. Acontece que é possível haver união de fato entre menores (inteligência do artigo 1723, CC), bem como até mesmo casamento (vide artigo 1517, CC). Mas, ainda gera perplexidade o fato de que a majorante se refere a menores de 14 anos e somente podem se casar aqueles que têm 16 anos completos (“idade núbil”) e ainda com autorização dos pais ou responsáveis ou por suprimento judicial (artigo 1517 a 1520 c/c 1631, CC). É preciso atentar, porém, para o fato de que a insatisfação da idade núbil não constitui “impedimento” ao casamento, de forma que este não é nulo, muito menos inexiste, mas apenas anulável (vide artigos 1521, incisos I a VII c/c 1548, II, CC). Quem apenas não tinha “idade núbil” e se casa de alguma forma (iludindo o oficial, por exemplo) se encontra casado, sendo apenas “anulável” tal casamento de acordo com o disposto no artigo 1150, I, CC. Tanto é fato que o menor que se casou abaixo da “idade núbil” pode, quando a atinge, confirmar seu casamento, mediante autorização dos pais ou responsáveis ou suprimento judicial (vide artigo 1553, CC). Ora, o que é nulo não se convalida, já o que é somente anulável é passível de convalidação ulterior. Isso tudo significa que a ordem Civil torna possível haver alguém que é casado (cônjuge) e é menor de 16 anos ou mesmo de 14 anos. 71 Restará ainda nessas situações analisar a questão da prática do crime de “Estupro de Vulnerável” (artigo 217 – A, CP).
Outra dúvida pode surgir com relação à menção da figura do “curador”. Normalmente aquele que cuida dos interesses de menores é um “tutor”, sendo a figura do “curador” ligada à representação legal e defesa de interesses de incapazes maiores (alienados mentais, por exemplo). Dessa forma, o aumento de pena para tutores soa normal, enquanto pode haver estranheza com relação aos curadores, já que a vítima do homicídio seria sempre um menor de 14 anos. Acontece que é preciso lembrar a figura do chamado “curador especial” nomeado pelo Juiz sempre que um menor tiver pais ou representantes legais, mas houver colidência entre seus interesses (do menor) e os dos pais ou representantes. Isso é previsto no artigo 1692, CC; 72 artigo 72, I, CPC; artigo 671, II, CPC; artigo 142, Parágrafo Único, ECA (Lei 8.069/90); artigo 148, Parágrafo Único, alínea “f” c/c artigo 98, I a III, ECA; artigo 162, § 4º., ECA; artigo 184, § 2º. ECA e, finalmente, artigo 33, CPP.
Gilaberte chama a atenção para uma contradição existente com relação ao “empregador”. Vejamos:
Algumas das situações elencadas chamam atenção devido à incongruência para com a idade da vítima (menor de 14 anos). A primeira delas diz respeito à condição de empregador da vítima. O art. 7º, XXXIII, da CRFB proíbe qualquer trabalho a menores de 16 anos, salvo na condição de menor aprendiz, que pode ser alcançada aos 14 anos. Assim, legalmente, ninguém pode estar em uma relação empregatícia antes dos 14 anos. Há, contudo, situações excepcionais. O art. 406 da CLT permite que o Juizado da Infância e da Juventude, eventualmente, autorize a participação do menor de 14 anos em filmes, espetáculos circenses, representações teatrais e congêneres. Essa estipulação, inclusive, está em ressonância para com a Convenção nº 138 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), em seu art. 8º, e com o Estatuto da Criança e do Adolescente (art. 149). Queremos crer que a referência ao empregador – contida na majorante – se refira a essas excepcionalidades. Não obstante, entendemos que ela se estende também àqueles que ilegalmente exploram o trabalho de pessoas menores de 14 anos, ou teríamos uma situação anacrônica, com o empregador formal sendo punido de forma mais intensa do que aquele que atua ao arrepio da lei. 73
Total razão assiste ao autor acima mencionado. Apenas faria um acréscimo de ordem técnica quanto ao empregador de fato, ou seja, aquele que, ao arrepio da lei e da Constituição, emprega menores de 14 anos. Correta a conclusão de Gilaberte quanto à necessária razoabilidade e proporcionalidade em aplicar o incremento penal também a este, já que seria um absurdo punir mais severamente o empregador legal e menos severamente o ilegal. Não obstante, entendemos que nessa situação o aumento não se deverá embasar na figura do “empregador”, mas que seria um dos casos de aplicação da interpretação analógica, utilizando-se a fórmula geral e considerando o empregador de fato como uma daquelas pessoas que por outro título tem autoridade sobre a vítima.
Gilaberte chama a atenção para o fato de que as majorantes do artigo 2º. – B, I e II do artigo 121, CP acabam elevando o máximo das punições “in abstracto”, respectivamente, para 45 anos e 50 anos. Afirma o autor que esses patamares não podem ser aplicados, tendo em vista sua necessária limitação pelo artigo 75, CP que “estipula pena privativa de liberdade máxima de 40 anos”. Alega que “o excesso punitivo deve ser descartado”, tendo ocorrido “desacerto legislativo na eleição do patamar de incremento da sanção”. 74
Há que, respeitosamente, discordar do autor. Não há erro do legislador. Realmente o patamar máximo de 40 anos é previsto pelo artigo 75, CP, mas tal dispositivo não se refere à pena cominada ou mesmo aplicada e sim à pena a ser efetivamente cumprida pelo condenado. Uma pessoa, diante do disposto no artigo 75, CP, pode ser condenada ou ter uma somatória de penas que chegue, por exemplo, a 500 anos. Isso não é proibido. O que não poderá ocorrer é que a pessoa venha a cumprir efetivamente penas maiores do que 40 anos. Seria de se indagar para que então aplicar uma pena acima de 40 anos, já que não seria cumprida? É que tal pena será a base para cálculo de eventuais benefícios como progressão de regime ou livramento condicional. Portanto, a cominação “in abstrato” e até mesmo a aplicação “in concreto” de pena acima de 40 anos pode ocorrer normalmente; o que o artigo 75 impede é que alguém cumpra efetivamente mais de 40 anos de prisão, com vistas especialmente ao impedimento de violação por reflexo da vedação constitucional da pena de “prisão perpétua” (inteligência do artigo 5º., inciso XLII, alínea “b”, CF - RHC 103.551, rel. min. Luiz Fux, 1ª T, j. 21-6-2011, DJE 163 de 25-8-2011.).
Neste sentido se manifesta, como toda a doutrina, Greco:
Em obediência ao disposto no art. 5º., XLVII, da Constituição Federal, que proíbe as penas de caráter perpétuo, diz o caput do art. 75. do Código Penal que o tempo de cumprimento das penas privativas de liberdade não pode ser superior a 40 (trinta) anos.
Não se confunde com tempo de condenação. Poderá o agente ser condenado a 300 anos, por exemplo. No entanto, de acordo com a determinação legal, não poderá cumprir, efetivamente, como regra, período superior a 30 (trinta) anos. 75
Ademais, a temática é superada na jurisprudência desde o advento da Súmula 715, STF, com a seguinte dicção:
A pena unificada para atender ao limite de trinta anos de cumprimento, determinado pelo art. 75. do Código Penal, não é considerada para a concessão de outros benefícios, como o livramento condicional ou regime mais favorável de execução (leia-se hoje, quarenta anos, tendo em vista a atual redação do artigo 75, CP, dada pela Lei 13.964/19).
Outra perplexidade que pode surgir com a criação da qualificadora do “Homicídio contra menor de 14 anos” é o conflito com a causa especial de aumento de pena para o homicídio doloso, constante da parte final do § 4º., do artigo 121, CP, conforme redação dada há tempos pela Lei 10.741/03.
No que tange ao aumento ali previsto para os idosos (maiores de 60 anos) não se vislumbra qualquer conflito, já que não foi criada qualificadora nova como na hipótese dos menores de 14 anos. Neste último caso, a primeira impressão que pode surgir é a de que teria havido uma revogação tácita do trecho do § 4º. , do artigo 121, CP quando prevê aumento de pena quando a vítima do homicídio doloso é menor de 14 anos. Isso porque agora se aplicaria a qualificadora e não o aumento. Pretender aplicar concomitantemente o aumento e a qualificadora configuraria “bis in idem”.
Realmente, o intento de aplicar ambos os incrementos penais seria inviável devido à dupla apenação pelo mesmo motivo (idade da vítima). No entanto, é preciso perceber que o legislador não cometeu um erro ao não revogar expressamente o aumento de pena para casos de vítimas menores de 14 anos. 76
Doravante, poderá ser levado a termo o seguinte procedimento:
1)Em usando a acusação a qualificadora do artigo 121, § 2º., IX, CP , não poderá lançar mão da majorante do artigo 121, § 4º., “in fine”, CP, pois configuraria “bis in idem”. Pensa-se nestes casos em situações em que a única qualificadora seja a da idade da vítima;
2)Havendo, porém, mais de uma qualificadora e dentre elas a de que a vítima é menor de 14 anos, deverá o acusador, na busca da pena mais justa e rigorosa, qualificar o crime com a outra figura e utilizar a condição etária da vítima como causa e de aumento de pena. Em geral se discute se na existência de mais de uma qualificadora se deve usar as demais como elemento de aferição da pena – base (circunstâncias judiciais – artigo 59, CP) ou como Agravante Genérica (artigo 61, CP), prevalecendo o entendimento referente à primeira solução exposta. 77 Mas, neste caso essa discussão se desvanece porque a condição etária da vítima é expressamente prevista como causa de aumento e, desde que não seja utilizada para justificar a qualificação do delito, não existirá “bis in idem” na sua aplicação. Obviamente, não será possível usar também a qualificadora etária seja como agravante seja como circunstância judicial, pois então haveria “bis in idem” com a majorante. Agora, se o acusador se descuidar ou distrair e apontar a causa etária como qualificadora, realmente ficará impedido de utilizar o aumento de pena pelo mesmo motivo (“bis in idem”). É preciso, portanto, nesses casos, estar atento, pois “dormientibus non succurrit ius” (“O Direito não socorre quem dorme”). E atenção deve ser redobrada na análise de cada caso concreto, considerando ainda as causas especiais de aumentos previstas exclusivamente para o “Homicídio contra Menor de 14 anos”. Isso porque, em certos casos será mais vantajoso e mais adequado, utilizar sim a qualificadora e deixar de lado o aumento de pena do § 4º. Por exemplo, se houver aplicabilidade do § 2º. – B, I, do artigo 121, CP, sendo a vítima, além de menor de 14 anos, deficiente, por exemplo. O aumento varia de 1/3 até 1/2 e não vale a pena utilizar o § 4º., onde o aumento é de somente 1/3. Com ainda maior razão, nos casos do § 2º., II do artigo 121, CP, quando a vítima for menor de 14 anos e o autor for uma das pessoas ali arroladas, o acréscimo é fixado em 2/3, tornando novamente dispensável o uso do § 4º., do mesmo dispositivo, que prevê um aumento de apenas 1/3. Ou seja, a solução no caso de mais de uma qualificadora somente será a de descartar a do artigo 121, § 2º., IX, CP em prol do § 4º., do mesmo dispositivo, nas situações em que não houver majorantes especiais do “Homicídio contra menor de 14 anos”. Usando-se então a qualificadora do § 2º., IX, do artigo 121, CP com os aumentos do § 2º. – B, I ou II, afastado e impedido fica o emprego da majorante do § 4º. Nesses casos, em havendo outra qualificadora, esta deverá ser avaliada na quantificação da pena – base como circunstância judicial (artigo 59, CP) ou como agravante genérica (artigo 61, CP), sendo a nosso ver a melhor solução a de utilização na determinação da pena – base.
Observe-se que se poderia pensar que toda essa discussão seria dispensável, pois que seria aplicado o incremento de pena do artigo 121, § 2º., IX, CP quando o menor de 14 anos fosse morto em situação de violência doméstica e familiar e o aumento do § 4º., do mesmo dispositivo para mortes de menores fora dessas hipóteses de violência doméstica e familiar. No entanto, essa seria uma errônea interpretação, pois a qualificadora criada não se limita a mortes de menores de 14 anos em violência doméstica e familiar, mas se estende a todas as mortes de menores de 14 anos. Não consta do dispositivo (inciso IX, do § 2º., do artigo 121, CP) nenhuma referência à circunstância de violência doméstica e familiar. A qualificadora somente faz a exigência de que a vítima do homicídio seja menor de 14 anos. Ainda que o dispositivo tenha sido inserido no Código Penal pela Lei Henry Borel, nada existe que justifique a sua restrição aos casos de violência doméstica e familiar, devendo prevalecer sua interpretação gramatical, já que não há nenhum liame sistemático plausível com a Lei 14.344/22. Observe-se que se levarmos em conta a comparação da Lei Henry Borel com a questão da violência doméstica e familiar contra a mulher, isso fica ainda mais claro. Neste segundo caso, a Lei 13.104/15, ao criar a qualificadora do “Feminicídio” e pretender sua aplicação estrita aos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher e misoginia, o fez de forma expressa, de acordo com o artigo 121, VI, CP, referindo-se a “razões da condição de sexo feminino” e ainda definindo essa expressão confusa no artigo 121, § 2º. – A , I e II, CP, como as situações que envolvam “violência doméstica e familiar” e/ou “menosprezo ou discriminação à condição de mulher” (misoginia). Não há nada similar no § 2º. – B, I e II do artigo 121, CP. Menciona-se, como no inciso IX em estudo, apenas a faixa etária da vítima e os aumentos se referem a situações de ainda maior vulnerabilidade ou de relações de parentesco, responsabilidade ou autoridade. Neste último caso, reforça-se a noção de que a qualificadora é ampla, abrangendo qualquer homicídio de menor de 14 anos, pois que se fosse ligada apenas às relações domésticas e familiares, vários casos elencados no inciso II do § 2º. – B do artigo 121, CP constituiriam “bis in idem” e seriam inaplicáveis (v.g. ascendentes, padrastos etc.).
Também advogando a tese da natureza ampla da qualificadora em estudo, encontra-se o escólio de Gilaberte:
O homicídio é qualificado sempre que for praticado contra pessoa menor de 14 anos, mesmo que não decorra de violência doméstica ou familiar. Essa qualificação se deve à vulnerabilidade intensificada da vítima, menos apta a empreender autodefesa de forma eficaz. Cremos que surgirão posições doutrinárias defendendo que o homicídio qualificado pela idade da vítima necessariamente deve ser praticado em situação de violência doméstica ou familiar, cumprindo-se, assim, a ratio legis. Mas não nos parece o raciocínio mais acertado, quando comparamos o homicídio etário com o feminicídio: neste, a lei deixa claro que não basta a morte de uma mulher, sendo imprescindível que esta morte ocorra nas circunstâncias do art. 121, § 2º-A do CP; naquele, existe apenas a menção à idade. 78
Relevante e oportuna ainda é a observação do mesmo autor quanto ao fato de que para a configuração da qualificadora em estudo deve o agente ter ciência da idade da vítima, pois, caso contrário, incidirá em “erro de tipo” que afastará a qualificação (inteligência dos artigos 19 e 20, CP). 79
A Lei 14.344/22 também alterou a redação do artigo 121, § 7º., II, CP. Ali era previsto um aumento de pena da ordem de 1/3 até a 1/2 para os casos de “Feminicídio” quando o crime tivesse por vítima menores de 14 anos, maiores de 60 anos ou pessoa com deficiência. A Lei Henry Borel retirou a hipótese dos menores de 14 anos, mantendo apenas a majorante etária para os maiores de 60 anos. A retirada é compreensível. Com a criação da qualificadora do “Homicídio contra Menores de 14 anos”, em caso de “Feminicídio” contra menina menor de 14 anos, haverá agora crime duplamente qualificado e a somatória de mais um incremento penal pelo mesmo motivo constituiria “bis in idem”. Note-se que também não seria possível manter tal aumento etário (o do § 7º., agora revogado), qualificando o homicídio via “Feminicídio” e utilizando a questão etária para aplicar o aumento de pena para homicídio doloso previsto no § 4º., do artigo 121, CP. Da mesma foram ocorreria “bis in idem”. Haveria agora, não uma qualificadora e um aumento pelo mesmo motivo etário, mas dois aumentos pelo mesmo motivo etário, o que é igualmente inviável. Portanto, a eliminação da majorante do artigo 121, § 7º. , II, CP para as menores de 14 anos foi uma questão técnica incontornável.
Não obstante, na atual conjuntura, com a eliminação do aumento de pena para o caso de meninas menores de 14 anos específico do Feminicídio, em ocorrendo um crime duplamente qualificado, é também possível, como acima já demonstrado, optar pela qualificação devido ao Feminicídio e não utilizar a qualificadora da menoridade, aplicando a causa de aumento de pena do § 4º. do artigo 121, CP. 80 Também, se houver aumentos específicos do § 2º. – B, será preferível sempre utilizar a qualificadora etária e deixar o Feminicídio como circunstância judicial a ser aferida na pena – base, nos termos do artigo 59, CP.
Outra alteração procedida no mesmo § 7º., inciso II foi a ampliação das pessoas vulneráveis, afora os maiores de 60 anos, que justificam a majoração. Antes era previsto o caso das pessoas com deficiência. Com o advento da Lei 14.344/22, além das “pessoas com deficiência”, ensejam o aumento também as vítimas “com doenças degenerativas que acarretem condição limitante ou de vulnerabilidade física ou mental”, ainda que não se enquadrem na definição de “pessoa com deficiência” prevista, como já dito, no artigo 2º., da Lei 13.146/15 (Estatuto da Pessoa com Deficiência). Um exemplo prático seria o de uma pessoa debilitada por “Lúpus Eritematoso Sistêmico”, 81 enfraquecida e, portanto, mais vulnerável, embora não classificável como “deficiente” físico ou mental.
Obviamente todas essas inovações, seja a qualificadora, sejam os aumentos de pena ora expostos, somente poderão ser aplicados para os casos de homicídio acontecidos posteriormente à entrada em vigor da Lei 14.344/22, pois que não podem tais regras retroagir, já que constituem “novatio legis in pejus”.