Capa da publicação Câmera na farda do policial
Capa: Antônio Cruz / Agência Brasil

O uso de câmera na farda para filmar a ação policial

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23/07/2022 às 15:22

Resumo:


  • A utilização de câmeras corporais por policiais pode melhorar a transparência e a responsabilização das ações policiais, além de servir como prova no judiciário.

  • A presença de câmeras pode influenciar o comportamento tanto dos policiais quanto dos cidadãos, potencialmente reduzindo o uso da força e o número de queixas contra a polícia.

  • O uso de gravações de câmeras corporais também pode ser uma ferramenta valiosa para o treinamento e aperfeiçoamento de táticas policiais e na formação de novos agentes.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

4. Relevância para o judiciário e utilização das imagens como provas

4.1. Amparo legal da utilização da câmera como garantidora da legalidade da ação policial

A presente investigação tem por base o modelo conceptual demonstrado pela Figura 1, onde são perceptíveis as ligações entre as variáveis e as hipóteses em estudo, tendo por base o objetivo geral de apurar a percepção dos polícias com funções operacionais pelo mundo.

Criado pelo autor

A definição de hipóteses de um estudo é um passo muito importante na construção do mesmo, pois “um trabalho não pode ser considerado uma verdadeira investigação se não se estrutura em torno de uma ou de várias hipóteses” (Quivy & Campenhoudt, 1995, p. 119). Segundo Marconi e Lakatos (2003), as hipóteses são respostas de caráter provisório e provável. Ou seja, são os possíveis resultados que numa fase inicial são pensadas pelo investigador como exequíveis de alcançar, podendo ou não se verificarem no final da investigação.

Tendo em conta os resultados obtidos por Snyder, Crow e Smykla (2019), mais concretamente, a não dependência da função que os polícias desemprenham face à sua opinião sobre as câmeras individuais corporais, foi estabelecida como hipótese de investigação a seguinte: • H1: A aceitação das Quivy, R., & Campenhoudt, L.V. (2005). Manual de investigação em ciências sociais. Lisboa: Gradiva. não depende da função desempenhada pelos polícias Segundo as conclusões retiradas de Pelfrey Jr. e Keener (2018), os agentes de Polícia apresentaram uma opinião geralmente positiva, apesar de terem surgido algumas preocupações e questões no que concerne à utilização das câmeras individuais corporais. No entanto, também

os polícias com funções de comando (correspondendo às Carreiras de Chefe e Oficial de Polícia), demonstraram ter uma visão bastante otimista sobre a implementação das câmeras individuais corporais, semelhante aos resultados obtidos também por Smykla et al. (2016). Face às fontes literárias foi possível formular como hipótese de investigação a seguinte: • H2: A Carreira dos polícias não tem influência na percepção dos mesmos sobre a utilização das câmeras individuais corporais; Com base nos resultados reportados por Jennings et al. (2014), as diferenças estatísticas relativas ao género dos participantes são irrelevantes. Resultados idênticos foram os obtidos por Gramagila e Philips (2018), Obasi (2018), Smykla et al. (2016) e Snyder et al. (2019) sendo que, de uma forma geral as opiniões mantiveram-se constantes entre as várias variáveis sociodemográficas como a idade, o género, a raça, a educação e até os anos de experiência. Com base nestes resultados, foi formulada como terceira hipótese de investigação, a seguinte: • H3: As variáveis sociodemográficas não têm influência na percepção dos polícias sobre a implementação das câmeras individuais corporais. Por impossibilidade de referir literatura consistente com as variáveis “vitimização policial” e “punição disciplinar”, mas devido à importância que estas têm para a nossa investigação, foram ainda estabelecidas como hipóteses de investigação as seguintes: • H4: O facto de um polícia já ter sido vítima de violência no decorrer do serviço não tem influência na sua percepção sobre a implementação das câmeras individuais corporais. • H5: A punição disciplinar por uso da força não tem influência na percepção dos polícias sobre a utilização das câmeras individuais corporais.

4.2. Desestimularão e mudanças de comportamentos e reações durante as ações policiais

Nos EUA na sequência de uma série de eventos envolvendo o uso da força por parte dos polícias, o Governo fez um investimento de milhões de dólares na implementação de câmeras individuais corporais nas suas Forças de Segurança, como forma de alterar a conduta dos polícias, tanto ao nível do uso da força como na redução de queixas externas à atuação destes (Merola, Lum, Koper, & Scherer, 2016). Relativamente à redução do uso da força por parte dos polícias, Ariel, Farrar e Sutherland (2015), realizaram um estudo no Departamento Policial de Rialto, em 988 turnos, durante doze meses, após a implementação das câmeras individuais corporais. O estudo revelou uma quebra de 60% de incidentes registados com recurso à força por parte dos polícias, o que consequentemente levou a um decréscimo de 0.7 queixas do público contra polícias, por cada 1000 ocorrências, para 0.07.

No Departamento Policial de Mesa, no Arizona, durante o ano do programa piloto da implementação das câmeras individuais corporais, foi testado o impacto das câmaras nos polícias e nas queixas contra eles, segundo o relatado por Miller et al. (2014). Estes autores constataram que o número de queixas contra polícias equipados com câmeras individuais corporais, no geral, diminuiu cerca de 40% e, no caso de queixas por uso da força, a diminuição foi de 75%. Conclusões animadoras foram também as retiradas do estudo elaborado por Braga, Sousa, Coldren Jr. e Rodriguez (2018) no Departamento Policial de Las Vegas, tendo registado uma quebra de 16.5% de queixas relatadas por cidadãos contra polícias e ainda uma diminuição de 11.5% de incidentes com polícias que implicaram o uso da força. Nesta linha de pensamento o estudo elaborado por Jennings, Lynch e Fridell (2015), registou uma redução de 53.4% de incidentes de resistência por parte dos suspeitos e ainda uma diminuição de 65.4% das queixas externas no Departamento Policial de Orlando. No Reino Unido, Henstock e Ariel (2017) desenvolveram um estudo para apurar os efeitos das câmeras individuais corporais na Polícia Britânica, durante seis meses, e concluíram que existiu uma diminuição no recurso à força em 50%. Porém este valor exclui as situações em que foram feitas algemagens com a colaboração do suspeito, pois essas aumentaram em 40%, o que pode indicar que os suspeitos são mais colaborantes quando estão sob o “olhar” de uma câmeras individuais corporais, reforçando a capacidade dissuasor que as câmeras individuais corporais possuem.

Ainda no Reino Unido, no que concerne às queixas apresentadas contra os polícias, segundo Goodall (2007), no projeto levado a cabo em Plymouth, registou-se uma redução de 14.3% nos seis meses do projeto. Por outro lado, Ariel (2016) encontrou resultados menos animadores no Departamento Policial de Denver, Colorado, no que concerne à redução de queixas contra os polícias. Existiu uma redução de 35% de queixas por uso da força, porém, paralelamente registou-se um aumento de 14% de queixas por má conduta dos polícias. Segundo Ariel (2016), este aumento pode ser explicado pela consciencialização dos cidadãos de que o comportamento do polícia está a ser gravado, logo a sua queixa terá um fundamento mais sólido e reclamam por qualquer conduta que achem desadequada. Porém, o mesmo argumento pode ser utilizado para os casos em que se registou uma diminuição das queixas em geral contra a conduta dos polícias, ou seja, os cidadãos tomam consciência de que estão a ser gravados logo não apresentam tantas queixas quando estas não reúnem pressupostos para tal. Segundo Lum et al. (2019), a consciencialização de que a atuação do polícia está a ser gravada, leva a um desincentivo a quem quer apresentar queixas contra polícias, principalmente as de natureza maliciosa ou impulsiva, por saberem que estas não têm fundamento suficiente e que as gravações o comprovam. Em Boston, o estudo de Braga, Barao, McDevitt e Zimmerman (2018) revelou que, apesar da redução do uso da força ser estatisticamente pouco significativa, a redução do número de queixas e do preenchimento de relatórios do recurso à força foi estatisticamente significativa.

A redução do número de incidentes com uso excessivo e desproporcional da força, resultante da implementação das câmeras individuais corporais nos Corpos de Polícia, não é um fenómeno garantido. O que se pode constatar é que em algumas Forças de Segurança, através dos relatórios do uso da força que os polícias têm que preencher e ainda pela diminuição do número de queixas apresentadas pelos cidadãos, existiu de facto um menor recurso à força. Este facto pode ser justificado pela maior consciencialização por parte dos polícias e dos cidadãos de que o seu comportamento está a ser gravado e, consequentemente, ter um efeito dissuasor, tanto no emprego da força por parte do polícia, como na colaboração do cidadão às ordens do polícia. Por outro lado, o número de queixas contra os polícias aumentou em alguns casos, devido ao incremento da consciencialização dos cidadãos de que o comportamento do polícia está a ser gravado e como tal existe uma “prova mais sólida” para a queixa contra o polícia (Ariel, 2016).

O comportamento humano é estudado por várias ciências, como por exemplo a psicologia no que toca à dimensão psicológica, ou a sociologia quando nos referimos aos comportamentos humanos em função do meio social em que estes estão inseridos. Ambas as ciências tentam encontrar fundamento para a conduta humana e para os fatores que a condicionam, sejam eles do foro psicológico ou social. No entanto, existem ainda outras ciências que se debruçam sobre o comportamento humano, como a criminologia, que não se dedica apenas ao estudo dos fenómenos criminais, como também os fatores que originam comportamentos desviantes.

Na esfera da psicologia o comportamento humano é estudado pela psicologia comportamental que tem como base o behaviorismo, sendo definido por Watson como “a ciência do comportamento” (cit in Chorão, 2002, p.519). Por sua vez, Baum (2019) define ainda o behaviorismo como a “filosofia sobre o comportamento (…) [que] toca em assuntos próximos e que nos são caros: porque fazemos o que fazemos e o que devemos e não devemos fazer” (p. 3-4). Neste sentido surge ainda a ideia de comportamentos desviantes, que são os comportamentos considerados ilegais, à luz das normas estabelecidas numa determinada sociedade e num determinado hiato temporal.

O desvio tem sido atribuído como algo inerente a um certo tipo de comportamento ou pessoa: o delinquente, o homossexual, o doente mental, entre outros, e, de facto, esta foi uma posição que teve credibilidade até às teorias de patologia social. Contudo, é ainda importante na pesquisa clínica e criminológica. No entanto, para os sociólogos, desvio é visto, não como um tipo de pessoa, mas sim como uma propriedade formal de situações sociais e sistemas sociais. (Dias, 2013, p.22)

Os primeiros estudos sobre o comportamento humano apontavam os comportamentos desviantes como patologias, ou seja, os criminosos eram vistos como pacientes. Lombroso (2019), um dos pais desta corrente, tentou encontrar um padrão patológico nos criminosos. Ao examiná-los, o autor, encontrou uma numerosa série de anomalias na face, esqueleto e várias funções físicas e sensitivas, que fortemente se assemelhavam às raças consideradas primitivas. Mais tarde, numa vertente mais sociológica, surge a ideologia de Durkheim, onde “o desvio é (…) um fenómeno social que se pode designar de socioestatística” (Dias, 2013, p. 23). Por último, começou a entender-se que os comportamentos desviantes não têm que ter necessariamente uma origem específica, mas podem ser explicados por fatores de variadas ordens (Dias, 2013).

No que se refere às atitudes e aos comportamentos entre polícias e cidadãos, segundo Binder e Scharf (1980), na interação entre os mesmos, existe uma relação assimétrica entre os intervenientes, uma vez que os primeiros representam o Estado e o seu poder coercivo. Esta ideia representa uma posição de superioridade do polícia, que se traduz em maior responsabilidade e influência social, o que, por um lado, pode ser um fator dissuasor para o cidadão, mas acarreta também maior responsabilidade para o polícia.

No que concerne a detenções, também surgem resultados mistos e algo contraditórios. O estudo realizado por Ariel (2016) por exemplo verificou que no grupo de controlo, onde não existiam câmeras individuais corporais, a probabilidade de existir uma detenção era 18% maior. Neste sentido, também Koen (2016) constatou que os polícias sentiram algum impacto das câmeras individuais corporais na sua discricionariedade, o que os levava a ter uma conduta mais cautelosa com questões legais, mas similarmente explicaram que se sentiram mais desconfortáveis por deixarem passar infratores com um simples aviso verbal ou escrito.

Não é possível prever a natureza das interações entre polícias e cidadãos, podendo tratar- se de uma simples ocorrência de rotina com um nível de risco baixo ou de uma situação inopinada com um alto nível de risco para os intervenientes. O comportamento e a atitude dos cidadãos face aos polícias são muitas vezes influenciados, pela forma como estes vêm e respeitam a Polícia e a sua autoridade, sendo que uma situação relativamente calma e com um baixo nível de risco, rapidamente pode escalar para uma ocorrência de risco elevado pela presença e/ou interação de um indivíduo com alguma aversão à Polícia.

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Segundo Alpert, Dunham e MacDonald (2004) os comportamentos dos polícias e dos suspeitos nos seus encontros são influenciados pelas ações, comentários e condutas de cada um, face ao outro. Assim, o comportamento e a conduta dos cidadãos face aos polícias podem estar previamente influenciados por preconceitos já enraizados nesses, ou podem ainda ser alterados consoante a interação com o polícia. Sendo que, no decorrer da ocorrência o polícia e o cidadão interpretam e decidem como respondem um ao outro, afetando o desfecho da mesma (Alpert et al., 2004). Por sua vez, como será abordado nos subcapítulos seguintes, a forma de resolução da ocorrência poderá determinar a legitimidade dos cidadãos em relação às Forças de Segurança, logo é necessário que esta se paute por uma conduta caracterizada por um conjunto de valores considerados positivos pelos cidadãos, tais como a transparência.

4.3. Impacto na conduta do cidadão frente as filmagens por policiais nas ocorrências

Outro argumento utilizado para apregoar a necessidade de implementação de câmeras individuais corporais nas Forças de Segurança é a capacidade dissuasora e modeladora de comportamentos que as mesmas têm no público. Principalmente nos indivíduos mais agressivos, aumentando a sua obediência e respeito pelo policial, mas também o impacto que estas câmaras têm na cooperação entre os cidadãos e a Polícia e a sua disposição para recorrerem às Forças de Segurança.

Barela (2017) após ter elaborado um estudo comparativo de três anos antes e três anos após a implementação das câmeras individuais corporais no Departamento Policial de Las Vegas, concluiu que não existiu uma diferença significativa no comportamento do policial, porém, esta atitude não é idêntica em relação ao comportamento do público para com a Polícia. Neste sentido, o autor comprovou que as câmaras têm, efetivamente, um poder dissuasor nos indivíduos, quando estes estão conscientes de que as suas ações estão a ser gravadas. Também Jennings et al. (2015), verificaram uma melhoria no comportamento do público para com os polícias, tendo registado uma redução de 53.4% de incidentes com resistência. Ellis, Jenkins e Smith (2015), consolidam esta informação, pelo facto de reportarem uma redução de 36% de crimes de agressões contra polícias, em comparação com o ano anterior quando não estavam distribuídas CÂMERAS INDIVIDUAIS CORPORAIS à Polícia de Hampshire. Com resultados estatisticamente menos significativos, Jennings, Fridell, Lynch, Jetelina e Gonzalez (2016), relatam que as situações de resistência caíram 8.4% em doze meses no grupo equipado com CÂMERAS INDIVIDUAIS CORPORAIS, enquanto no grupo de controlo houve um aumento de 3.4%.

Por outro lado, Ariel et al. (2016), encontraram resultados díspares dos anteriores, tendo registado um incremento de 15% de agressões a polícias quando estes estão equipados com as CÂMERAS INDIVIDUAIS CORPORAIS, em comparação aos polícias sem este dispositivo. Segundo Ariel et al. (2018b), este aumento traduz-se numa probabilidade de 37% de um polícia ser agredido, em comparação com o grupo de controlo, justificada pela teoria da autoconsciência. Ou seja, segundo Ariel et al. (2018b), os polícias que usavam as CÂMERAS INDIVIDUAIS CORPORAIS, em situações de maior stress, expõem-se mais ao risco de serem agredidos, por se sentirem mais salvaguardados com as gravações recolhidas.

No entanto, como é percetível, este argumento parece não apresentar um fundamento sólido. Existem estudos que indicam que efetivamente é percetível uma redução da violência dos cidadãos contra os polícias equipados com as CÂMERAS INDIVIDUAIS CORPORAIS, não obstante, o estudo de Ariel et al. (2016) apresenta resultados contraditórios aos anteriores. Segundo Lum et al. (2019), foram ainda elaborados seis estudos, com resultados pouco expressivos no que concerne a agressões a polícias ou a relatos de resistência por parte dos cidadãos. Existem ainda outros fatores relacionados com o comportamento do cidadão que poderiam ser estudados, tais como: a predisposição para o cidadão chamar a Polícia quando tem notícia de um crime, sabendo que o mesmo está equipado com uma CÂMERAS INDIVIDUAIS CORPORAIS e a cooperação do cidadão (testemunha/vítima/informador) com o polícia por este estar equipado com uma CÂMERAS INDIVIDUAIS CORPORAIS. No primeiro caso, há apenas um estudo elaborado que aborda essa vertente, porém as conclusões não são explícitas, sendo que, o segundo fator foi também objeto de estudo, mas com conclusões pouco significativas, segundo, Lum et al. (2019). Por sua vez, relativamente ao número de crimes e às contraordenações praticadas pelos cidadãos, na presença de um polícia equipado com uma CÂMERAS INDIVIDUAIS CORPORAIS, com base no estudo de Ellis et al. (2015), verificou- se uma redução de 18%, sendo que o crime com maior redução é o crime de ameaças, que caiu 44%. Também com recurso a uma comparação entre os crimes registados em 2009, numa fase prévia à implementação das CÂMERAS INDIVIDUAIS CORPORAIS nas Polícias de Aberdeen e Paisley, em 2010, o ODS Consulting (2011), constatou uma redução da incidência criminal em 26% na área do estudo. Com dados estatisticamente menos relevantes, Goodall (2007), registou também um decréscimo da criminalidade geral, não sendo possível determinar um nexo de causalidade entre a implementação das CÂMERAS INDIVIDUAIS CORPORAIS na Polícia de Devon e Cornwall e a redução da criminalidade. Relativamente ao impacto que este tipo de tecnologia pode ter no público, principalmente nas interações entre este e os polícias, existem várias ideias apregoadas. Todavia, como os estudos com foco nesta vertente são relativamente reduzidos, existem alguns resultados contraditórios, não sendo possível afirmar com toda a certeza de que a utilização das CÂMERAS INDIVIDUAIS CORPORAIS por parte dos polícias reduz efetivamente a resistência dos cidadãos face às Forças de Segurança e as agressões aos elementos dessas Forças, ou que aumenta a colaboração com a Polícia ou que tem um impacto na criminalidade da área em questão.

4.3.1. Impacto na conduta dos policiais

Nos EUA na sequência de uma série de eventos envolvendo o uso da força por parte dos polícias, o Governo fez um investimento de milhões de dólares na implementação de BWC nas suas Forças de Segurança, como forma de alterar a conduta dos polícias, tanto ao nível do uso da força como na redução de queixas externas à atuação destes (Merola, Lum, Koper, & Scherer, 2016). Relativamente à redução do uso da força por parte dos polícias, Ariel, Farrar e Sutherland (2015), realizaram um estudo no Departamento Policial de Rialto, em 988 turnos, durante doze meses, após a implementação das BWC. O estudo revelou uma quebra de 60% de incidentes registados com recurso à força por parte dos polícias, o que consequentemente levou a um decréscimo de 0.7 queixas do público contra polícias, por cada 1000 ocorrências, para 0.07.

No Departamento Policial de Mesa, no Arizona, durante o ano do programa piloto da implementação das BWC, foi testado o impacto das câmaras nos polícias e nas queixas contra eles, segundo o relatado por Miller et al. (2014). Estes autores constataram que o número de queixas contra polícias equipados com BWC, no geral, diminuiu cerca de 40% e, no caso de queixas por uso da força, a diminuição foi de 75%. Conclusões animadoras foram também as retiradas do estudo elaborado por Braga, Sousa, Coldren Jr. e Rodriguez (2018) no Departamento Policial de Las Vegas, tendo registado uma quebra de 16.5% de queixas relatadas por cidadãos contra polícias e ainda uma diminuição de 11.5% de incidentes com polícias que implicaram o uso da força. Nesta linha de pensamento o estudo elaborado por Jennings, Lynch e Fridell (2015), registou uma redução de 53.4% de incidentes de resistência por parte dos suspeitos e ainda uma diminuição de 65.4% das queixas externas no Departamento Policial de Orlando.

No Reino Unido, Henstock e Ariel (2017) desenvolveram um estudo para apurar os efeitos das BWC na Polícia Britânica, durante seis meses, e concluíram que existiu uma diminuição no recurso à força em 50%. Porém este valor exclui as situações em que foram feitas algemagens com a colaboração do suspeito, pois essas aumentaram em 40%, o que pode indicar que os suspeitos são mais colaborantes quando estão sob o “olhar” de uma BWC, reforçando a capacidade dissuasor que as BWC possuem. Ainda no Reino Unido, no que concerne às queixas apresentadas contra os polícias, segundo Goodall (2007), no projeto levado a cabo em Plymouth, registou-se uma redução de 14.3% nos seis meses do projeto.

Por outro lado, Ariel (2016) encontrou resultados menos animadores no Departamento Policial de Denver, Colorado, no que concerne à redução de queixas contra os polícias. Existiu uma redução de 35% de queixas por uso da força, porém, paralelamente registou-se um aumento de 14% de queixas por má conduta dos polícias. Segundo Ariel (2016), este aumento pode ser explicado pela consciencialização dos cidadãos de que o comportamento do polícia está a ser gravado, logo a sua queixa terá um fundamento mais sólido e reclamam por qualquer conduta que achem desadequada. Porém, o mesmo argumento pode ser utilizado para os casos em que se registou uma diminuição das queixas em geral contra a conduta dos polícias, ou seja, os cidadãos tomam consciência de que estão a ser gravados logo não apresentam tantas queixas quando estas não reúnem pressupostos para tal.

Segundo Lum et al. (2019), a consciencialização de que a atuação do polícia está a ser gravada, leva a um desincentivo a quem quer apresentar queixas contra polícias, principalmente as de natureza maliciosa ou impulsiva, por saberem que estas não têm fundamento suficiente e que as gravações o comprovam. Em Boston, o estudo de Braga, Barao, McDevitt e Zimmerman (2018) revelou que, apesar da redução do uso da força ser estatisticamente pouco significativa, a redução do número de queixas e do preenchimento de relatórios do recurso à força foi estatisticamente significativa.

A redução do número de incidentes com uso excessivo e desproporcional da força, resultante da implementação das BWC nos Corpos de Polícia, não é um fenómeno garantido. O que se pode constatar é que em algumas Forças de Segurança, através dos relatórios do uso da força que os polícias têm que preencher e ainda pela diminuição do número de queixas apresentadas pelos cidadãos, existiu de facto um menor recurso à força. Este facto pode ser justificado pela maior consciencialização por parte dos polícias e dos cidadãos de que o seu comportamento está a ser gravado e, consequentemente, ter um efeito dissuasor, tanto no emprego da força por parte do polícia, como na colaboração do cidadão às ordens do polícia. Por outro lado, o número de queixas contra os polícias aumentou em alguns casos, devido ao incremento da consciencialização dos cidadãos de que o comportamento do polícia está a ser gravado e como tal existe uma “prova mais sólida” para a queixa contra o polícia (Ariel, 2016).

No que concerne a detenções, também surgem resultados mistos e algo contraditórios. O estudo realizado por Ariel (2016) por exemplo verificou que no grupo de controlo, onde não existiam BWC, a probabilidade de existir uma detenção era 18% maior. Neste sentido, também Koen (2016) constatou que os polícias sentiram algum impacto das BWC na sua discricionariedade, o que os levava a ter uma conduta mais cautelosa com questões legais, mas similarmente explicaram que se sentiram mais desconfortáveis por deixarem passar infratores com um simples aviso verbal ou escrito.

Também Ready e Young (2015), no Departamento Policial de Mesa, Arizona, constataram que o grupo de voluntários a utilizar as BWC revelou uma maior iniciativa nas interações com o público e passou mais autos de contraordenações, porém relativamente às detenções, não houve alterações substanciais, sendo que, no que concerne à proatividade policial houve uma maior precaução antes de ser dada voz de detenção. Por outro lado, Katz, Kurtenbach, Choate e White (2015) utilizaram o número de detenções para determinar o impacto das BWC no policiamento do Departamento de Phoenix, tendo registado um aumento de detenções em 42.6% em comparação com o período pré-câmaras. Também Braga et al. (2018) comprovaram um aumento de detenções e de elaboração de autos de contraordenações no grupo equipado com BWC, no Departamento Policial de Las Vegas. Ou seja, comprovando o argumento de que as BWC aumentam a proatividade policial.

4.4. Fator de uso das imagens para aprimoramento e aperfeiçoamento das táticas policiais e para novos policiais nos cursos de formações

A utilização de CÂMERAS INDIVIDUAIS CORPORAIS vai muito além da atividade operacional e de ser um mero auxílio à investigação criminal e ao processo judicial, sendo uma ferramenta com várias potencialidades no que concerne à formação dos polícias. O acesso às imagens captadas no decorrer de situações reais, pode ser bastante pedagógico para a formação inicial de novos polícias, bem como, a possibilidade dos próprios polícias equipados com as CÂMERAS INDIVIDUAIS CORPORAIS reverem a sua atuação perante determinada ocorrência e corrigirem certos procedimentos ou condutas que tenham tido. O Comandante da Polícia de Miami (cit in White, 2014), após algum tempo de utilização das CÂMERAS INDIVIDUAIS CORPORAIS na formação dos seus novos polícias, refere que “nós conseguimos gravar situações, em cenário de treino, e depois vamos revê-las e mostrar ao aluno, ao recruta, ao polícia, o que fizeram corretamente, o que fizeram mal, e o que se pode melhorar” (p.25). Também na Polícia norueguesa, o estudo de Phelsp, Strype, Le Bellu, Lahlou e Aandal (2016), debruçou-se sobre a aplicação das CÂMERAS INDIVIDUAIS CORPORAIS na formação e quais os resultados que foram sentidos nos alunos. Neste sentido, concluíram que a utilização desta tecnologia no treino dos seus polícias, conjugada com intervenções sistemáticas por parte dos formadores e com base em simulações, incrementou a aprendizagem, principalmente no âmbito da tomada de decisão e na comunicação. No que concerne à tomada de decisão, também Richards et al. (2017), verificam que as Body-Worn Cameras são uma mais-valia na formação e propõem ainda, entre outras hipóteses, que no futuro sejam utilizados cenários, com base numa plataforma de realidade virtual, que forneçam uma visão 360º ao polícia, mas que mantenham os níveis de stress e perigosidade os mais aproximados da realidade.

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Sobre o autor
Guilherme Urzedo Rodrigues

Pós Graduando em Direito Penal Militar e Processual Penal Militar pela Unyleia. Bacharel em Direito pela Unitri, Uberlândia/MG. Policial Militar do Estado de Minas Gerais.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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