A Antropologia e o Direito compartilham muito mais do que um substrato social onde apóiam os pés. De acordo com Geertz (1997), além de uma linguagem erudita própria – o que, afinal, é predicado de muitas outras áreas do saber –, ambos conseguem depreender "princípios gerais de fatos paroquiais". Além disto, em relação notadamente aos Direitos Humanos, irmanam-se na abordagem holista, de "descentramento" e reconhecimento da pluralidade de culturas e respeito à alteridade.
No entanto, tal afinidade não tem operado para aproximar advogados e antropólogos e um dos grandes dissensos diz respeito ao caráter particular, local, ou geral, universal do Direito. Aduz-se a isso o fato que o Direito vem reduzindo-se a um enfoque estritamente forense, que desprivilegia a experiência etnográfica, sendo já possível concluir com Geertz (1997) que "a interação de duas profissões tão orientadas para a prática, tão profundamente limitadas a universos específicos e tão dependentes de técnicas especiais, teve como resultado mais ambivalência e hesitação que acomodação e síntese" (p.251).
A imagem de que a Antropologia é um grande espelho no qual se reflete a infinita variedade humana é também utilizada conotativamente para o Direito, por sua vez, um espelho completo a refletir toda a realidade social. Não é razoável supor, portanto, que dois espelhos possam revelar coisas tão distintas, embora construir elos entre estas duas ciências não seja de modo algum uma tarefa dócil.
Através do clássico ensaio de Geertz, "O saber local: fatos e leis em uma perspectiva comparativa", aqui estes fios serão, outra vez mais, torcidos e esticados a fim de que sejam recosturadas as possibilidades de diálogo entre Direito e Antropologia, pelo bem da plenitude da compreensão do Direito enquanto ciência.
Assier-Andrieu (2000) aponta para dois erros comuns nas tentativas de aproximação: um seria considerar o Direito hermético a não-juristas e subordinar as demais ciências sociais a um papel instrumental secundário; o outro seria desprezar a complexidade do Direito, correndo-se "o risco de arrombar portas abertas e o de ser o alvo da chacota dos especialistas, prontos a denunciar essa ‘forma de sociologia espantosamente confusional nesse terreno que pretende dominar’" (XII).
Geertz (1997) registra outra dificuldade quando, da união da Antropologia com o Direito, gera-se uma disciplina "centauro", um ramo de pretensa autonomia: o necessário, postula Geertz, não é mais uma fusão, mais uma cadeira ou mais uma prova bimestral, e sim o alargamento da compreensão, a interseção, apurando a escuta para identificar o que cada um dos campos precisa, num trabalho de "ir e vir", que é hermenêutico, formulando questões cujas respostas sirvam a ambos.
Uma destas questões logo identificadas por Geertz (1997) é a relação "ser/dever ser", corrente na linguagem do Direito e da Antropologia, embora significando associações ligeiramente diferentes: no primeiro caso, o que aconteceu e o que é legal; no segundo, o que aconteceu e o que é gramaticalmente correto; nos dois casos, afinal, uma simplificação dos fatos subsumível a uma esquematização jurídica ou etnográfica.
Em paralelo ao que Geertz (1997) chama de "explosão dos fatos", momento em que physys e nomos deixam de ser tais realidades puras, há um frenesi jurídico por aquilo que seria para Dworkin (2003) a "busca da resposta certa" [01], ainda que ao custo da importação de tecnologias (testes de inteligência, grampo eletrônico, balística, etc.) ou da transmutação de juízes em Hércules [02] (DWORKIN, 2003).
Para Geertz (1997), a "perversão" deste quadro dá-se quando os fatos tornam-se "pedras no caminho" do Direito e afastá-los do processo parece extremamente atraente. É neste cenário que ocorre, por exemplo, a depreciação do júri, a dispensa de audiência havendo matéria "estritamente de direito" ou ainda jatos de súmulas ocupando um lugar demasiado importante, fragmentando realidades e oferecendo respostas previsíveis.
A conseqüência imediata deste exagero (Geertz critica o exagero, considerando, contudo, inevitável e necessário que alguma simplificação se dê) pode ser extraída de Bordieu (2003) como um distanciamento em relação aos "profanos" (os não-versados em Direito), favorecendo a racionalização que acentua o desvio "dos vereditos armados de Direito e as intuições ingênuas da eqüidade" (p.212). Isto é assim porque o espaço judicial já não comporta a visão vulgar de reconstrução espontânea dos fatos, a "estória real e completa", e as regras possíveis de discurso são cada vez mais limitadas ao linguajar dos técnicos – o que para Geertz (1997) configura "diagramas altamente editados a realidade, produzidos pelo próprio processo de emparelhamento" (p.258).
Isto consiste no processo de representação, um diálogo parcial, limitado, havendo a redução do conflito direto entre partes interessadas a um debate extremamente regulado por procedimentos que elas nem sempre dominam (BORDIEU, 2003). Trata-se de uma maneira específica de pensar e não se busca mais "o que aconteceu", mas "o que acontece aos olhos do direito", o que acarreta duas implicações instantâneas: 1) a criação de ficções legais [03] (p.ex. "o que não está nos autos não está no mundo"); 2) a percepção de que, se o Direito muda espaço-temporalmente, então o que os olhos do Direto vêem também muda, sendo ele um saber local.
Direito como saber local, saber focal [04], é um produto da cultura. Se o Direito não é a única forma de solução de conflitos, nem a mais eficaz ou a mais comum, se também não é simplesmente dominação, heteronomia, o Direito como cultura mantém-se como referencial válido. Nas diferenças culturais, a postura adequada é menos a de explicar ou comparar e mais a de interpretar. Esta é a proposta de Geertz quando sugere um "ir e vir" e a substituição do "é/deve ser" por um "se então" das normas genéricas e o "como portanto" dos casos concretos, o que confere coerência e permite observar estas proposições como duas faces de uma mesma coisa e não como contra-pólos (e Geertz prova através de exemplos que ocorrência de fato e julgamento nem sempre serão momentos diferenciados, o que em muito relativiza as categorias conhecidas).
Assier-Andrieu (2000), por seu turno, informa que determinar o que deve ser em contraposição ao ser "não é passar todos os comportamentos pelo crivo do proibido e do obrigatório" (p.13), já que o Direito não é outra coisa que não um modo de imaginar o real. Este relativismo, de pronto esclarece Geertz (1997), não defende o niilismo e não se confunde com ceticismo [05]: equivale, isto sim, a pôr as representações em perspectiva, estranhando a imagem que os espelhos revelam e extrapolando para outras paragens. Relativizar o Direito, tomá-lo como uma postura interpretativa, não gera o caos: ao contrário, permite a harmonização e a clareza de que existe vida longe dos códigos que conhecemos, aliás, existem muitas formas de vida jurídica.
Os caminhos são abertos, conforme Geertz (1997), através de uma reviravolta interpretativa que não oponha mais lei e fato como realidades inconciliáveis, que enxergue no Direito não apenas a imagem refletida da realidade social, mas o agente desta realidade.
É importante não considerar o pluralismo jurídico como acidental, e sim como ponto central do Direito, tendo ainda o estudo comparativo do Direito como uma tradução intercultural e descrever estas representações "irregulares em termos regulares, sem destruir, neste processo, a qualidade irregular que elas possuem" (1997, p.339). Ter isto em conta abre o que é local para um mundo de possibilidades, contactando outras formas locais de saber, dialogando com elas de modo que uma ilumine a outra, sem que se apaguem em generalizações fáceis, uma empreitada ousada para qual o Direito e a Antropologia têm de unir esforços.
Sousa Santos (website), em contraposição a "alterofobia" e à "canibalização cultural", de certa forma alinha-se com Geertz na proposta de uma "hermenêutica diatópica" como instrumento no diálogo intercultural dos direitos, mediante a idéia de que todas as culturas são incompletas e o diálogo entre elas pode avançar a partir dessa incompletude, desenvolvendo a consciência de suas imperfeições. Esta é mais uma solução à impossibilidade de um "esperanto", citado tanto por Geertz quanto por Sousa Santos, como projeto inviável no universo de direitos.
Bibliografia
ASSIER-ANDRIEU, Louis. O direito nas sociedades humanas. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
BORDIEU, Pierre. A força do Direito. Elementos para uma sociologia do campo jurídico. In: O poder simbólico. 6. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003. pp. 209-254.
GEERTZ, Clifford. Fatos e Leis em uma perspectiva comparativa. In: O Saber Local. Petrópolis: Vozes, 1997. pp. 249-356.
DWORKIN, Ronald. Integridade no Direito. In: O império do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 2003. pp. 271-331.
SOUSA SANTOS, Boaventura. Por uma concepção multicultural de Direitos Humanos. Disponível em http://www.dhnet.org.br/direitos/militantes/boaventura/boaventura_dh.htm Acesso em 07 mai 2007.
Notas
01 O dever de buscar a "resposta certa" impõe a reconstrução da rede legal anterior, vinculando-se à tradição, aos precedentes, à legislação, ao apelo sensível da comunidade presente.
02 O juiz Hércules é a personagem capaz de alcançar a resposta certa de Dworkin: para toda pretensão jurídica haverá um princípio que lhe assegure a resposta de ser ela ou não amparada por Direito. Hércules é mais reflexivo, mais autoconsciente e tem mais tempo que qualquer juiz verdadeiro, mas é um modelo a ser seguido e não um mito, no que vai uma diferença.
03 Para Assier-Andrieu: "a alçada da ficção é a adaptação mais íntima do fato ao direito, à custa de todas as inverossimilhanças que a eficácia jurídica converterá em ‘figuras de verdade’" (p.36).
04 Ainda para Assier-Andrieu, "o direito é um fenômeno em perspectiva. Dá-se com ele o mesmo que com um monumento ou uma paisagem que muda o aspecto conforme a luz e a distância do olhar" (XIV).
05 Sobre a postura cética, ver Dworkin, 2003.