1-Introdução.
Aqui não se irá tratar do tema proposto de forma exaustiva, mas apenas se propõe uma rápida análise da autoria indireta, com observações de cunho majoritariamente constatador e minoritariamente indagador.
A autoria mediata não tem originado grandes trabalhos doutrinários, em que pese não ser tão incomum tal tipo de autoria delitiva no âmbito forense.
2- Teoria do Domínio do fato.
Não se pode pretender falar de autoria indireta ou mediata olvidando da teoria do domínio do fato, eis que essa teoria se adequa perfeitamente ao autor que utiliza outrem para cometer o delito. Pois bem, a teoria do domínio do fato pode ser explicada como sendo aquela que considera autor do delito o indivíduo que detém o curso do fato em suas mãos - ou seja, aquela pessoa que pode determinar se a conduta lesiva vai ou não ser realizada. Nas palavras de Rogério Greco, essa teoria considera autor do delito aquele "que tem o poder de decidir se irá até o fim com o plano criminoso, ou, em virtude de seu domínio sobre o fato, isto é, em razão de ser o senhor de sua conduta, pode deixar de lado a empreitada criminosa".
Cezar Roberto Bitencourt elenca o que considera como conseqüências da teoria do domínio do fato, sendo elas: "1ª) a realização pessoal e plenamente responsável de todos os elementos do tipo fundamentam sempre a autoria; 2ª) é autor quem executa o fato utilizando a outrem como instrumento (autoria mediata); 3ª) é autor o co-autor que realiza uma parte necessária do plano global ("domínio funcional do fato"), embora não seja um ato típico, desde que integre a resolução delitiva comum.".
Por outro lado, a aplicação da teoria do domínio do fato não é ilimitada no âmbito da autoria delitiva. Ela encontra limites nos crimes culposos e mesmo nos delitos dolosos de mão própria.
Sendo uma teoria que exige o controle do curso dos fatos, da conduta propriamente dita, de forma consciente e com vistas a um fim, naturalmente ela não tem aplicação nos crimes culposos, pois estes têm por característica justamente a imprevisibilidade do resultado danoso, do próprio crime.
Já no caso de delitos de mão própria, faz-se necessária uma distinção. Pode-se diferenciar crimes próprios e crimes de mão própria. Os crimes próprios somente podem ser praticados por pessoas que detêm especiais qualidades como, por exemplo, o crime de infanticídio, pois apenas mãe pode matar sob efeito do puerpério, ou, ainda, quando se exige a qualidade de funcionário público para o agente do delito.
Os crimes de mão própria são mais restritivos quanto à qualificação dos autores, pois somente podem ser cometidos pessoalmente por determinadas pessoas, como, por exemplo, no caso de falso testemunho.
Pode-se imaginar que a autoria mediata seja exercida nos crimes próprios, pois o chamado "homem de trás" pode utilizar, por exemplo, algum funcionário público para cometer delito próprio. Mas não se admite autoria mediata nos crimes de mão própria, pois apenas determinada pessoa pode cometer o delito, como é o caso da testemunha.
A teoria do domínio do fato alberga, outrossim, a possibilidade de divisão de tarefas, comportando, portanto, a co-autoria, pois não é necessário que o autor indireto exerça totalmente a atividade delituosa, podendo praticar apenas parte de um plano criminoso e sobre este plano criminoso é que deve exercer o domínio do fato, conforme nos diz Rogério Greco.
3- Autoria Mediata.
È considerado autor mediato ou indireto aquele que comete o delito não pessoalmente, mas sim mediante outra pessoa, ou seja, utiliza outrem para executar os atos que produzem o fato típico. Júlio Fabbrini Mirabete exemplifica com o caso da enfermeira que, por ordem do médico, ministra veneno ao paciente supondo que se trata de um medicamento.
A autoria indireta admite várias possibilidades. Pode-se enumerar como exemplos de autoria mediata: erro determinado por terceiro, previsto no artigo 20, § 2º, do CP; coação moral irresistível, prevista no art. 22, primeira parte, do CP; obediência hierárquica, prevista no art. 22, segunda parte, do CP e a utilização de inimputável, prevista no art. 62, inciso III, segunda parte, do CP.
O erro determinado por terceiro se dá quando o autor mediato provoca o erro do executor, o que pode acontecer dolosamente ou culposamente, segundo ensinamento de Celso Delmanto.
A coação moral irresistível acontece quando "a ação coatora se exerce sobre o ânimo do coagido, compelindo-o a agir ou deixar de agir", nas palavras de Edgard Magalhães Noronha. Geralmente se faz a promessa de um mal a alguém, sendo necessário que seja um mal grave a fim de justificar a conduta do executor.
A obediência hierárquica à ordem não manifestamente ilegal também revela uma atuação de autor indireto, eis que o que ordena comete o delito utilizando-se de subordinado. No entanto, juntamente com José Geraldo da Silva, podemos afirmar que há necessidade da presença de elementos mínimos para reconhecimento dessa excludente de culpabilidade. Esses elementos são: subordinação hierárquica; competência ou atribuição de quem ordena para emitir a ordem; a ordem não pode ser manifestamente ilegal, sob pena de co-autoria com responsabilização do executor e não pode haver excesso no cumprimento da ordem.
Todos esses casos são admitidos sem divergências pelos doutrinadores como casos em que está presente o autor mediato ou indireto. Porém, um caso provoca divergências doutrinárias: justamente a utilização de executor inimputável. Temos duas posições a respeito.
A primeira é a posição dos doutrinadores que defendem a existência de autoria indireta no caso de utilização de inimputável para execução do delito, que segue a argumentação definida para os demais casos de autoria mediata, ou seja, o "homem de trás" define a atuação criminosa do executor, tendo o poder de definição acerca da finalidade da atividade do executor inimputável.
A segunda é a posição dos doutrinadores que não admitem tal modalidade de autoria indireta, afirmando que o autor mediato não detém o poder de definição acerca dos fatos, pois somente existiria uma probabilidade de que o inimputável exerceria a conduta antes definida. Vejamos o que Eugênio R. Zaffaroni e José H. Pierangeli dizem a respeito do tema:
" De nossa parte, não cremos que esta hipótese configure autoria mediata, por entender que a falta de reprovabilidade da conduta do interposto não dá o domínio do fato ao determinador.(...) Aí, o determinador conta apenas com uma probabilidade de que o interposto cometa o injusto".
Não julgamos procedente a lição dos ilustres doutrinadores. É que noutros casos também há apenas mera probabilidade de execução dos atos determinados pelo autor indireto. Num exemplo dado pelos próprios doutrinadores acima citados, como sendo caso de autoria mediata, verificamos que há mera probabilidade de execução, vejamos:
"Quem ameaça a outro de morte, encostando uma metralhadora em sua têmpora, a fim de que escreva e envie uma carta injuriosa a um terceiro, tem o domínio do fato...".
Ora, quem poderia assegurar ao autor mediato que o ameaçado não desejasse a própria morte a cometer um delito qualquer? Não esqueçamos os fundamentalismos e traços suicidas presentes em vários cidadãos antes, hoje e, certamente, no futuro. Aqui, como alhures, o autor mediato conta também apenas com mera probabilidade de que o executor exercerá os atos previamente planejados.
Essa mera probabilidade de atuação, outrossim, verifica-se claramente na obediência hierárquica à ordem não manifestamente ilegal e na coação moral irresistível, pois o autor mediato está sempre se valendo de uma provável atuação do autor imediato.
É verdade que Zaffaroni e Pierangeli não esqueceram esse contra-argumento às suas posições, vejamos:
"Pode-se argumentar que tampouco tem o domínio do fato quem se vale daquele que cumpre com o seu dever ou age justificadamente, mas, em todos esses casos, cabe considerar que há domínio, posto que há um fundamento jurídico sério (o dever e a permissão) para fazer-nos presumir que o interposto agirá no cumprimento do ver ou no exercício da permissão. Mas isto não ocorre nos casos em que o direito prevê apenas a irreprovabilidade da conduta daquele que resolve agir contra seus comandos.
No nosso entender, a posição dos ilustres doutrinadores é totalmente insustentável. Ora, a contradição e o erro dessa posição se podem verificar nas palavras dos próprios Zaffaroni e Pierangeli quando dizem:
"Costuma-se afirmar que há autoria mediata, quando o sujeito se vale de outro que é inculpável, isto é, de outro que comete um injusto inculpável, como acontece com quem se vale de inimputável, de um sujeito em erro de proibição invencível ou de alguém em situação de necessidade exculpante. De nossa parte, não cremos que esta hipótese configure autoria mediata
Perceba-se que Zaffaroni e Pierangeli não consideram o erro de proibição invencível ou a necessidade exculpante como fundamentos jurídicos sérios para que os agentes nessas situações cometam o injusto. Qual a razão do cumprimento do dever ou do exercício da permissão, nas próprias palavras dos doutos citados, serem fundamentos jurídicos mais "sérios" que o erro de proibição invencível ou a necessidade exculpante, com a conseqüente exclusão da autoria mediata nos dois últimos casos, não há palavra alguma explicativa na doutrina apontada. Seria assim, porque sim...
Na verdade, e já para finalizar, não há razão alguma para essa diferenciação. Não há dúvida de que há possibilidade de autoria mediata nos casos de utilização de pessoa inculpável. Como já se deixou antever, em todos os casos citados os fundamentos jurídicos merecem a mesma credibilidade, não tendo sentido lógico considerar uma obediência hierárquica mais ou menos "séria", do ponto de vista jurídico, que um erro de proibição invencível, por exemplo, sem falar que em todos os casos há mera probabilidade de que o executor aja conforme definido pelo autor indireto.
Ficamos, pois, nesse ponto, com a corrente doutrinária que admite a existência de autoria indireta no caso de utilização de inimputável para execução do delito, afirmando que o autor mediato pode comandar a atuação criminosa do executor, tendo o poder de definição acerca da finalidade da atividade do inimputável.
Bibliografia.
Bitencourt, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal. Volume I. 3ª edição. São Paulo. Saraiva.
Delmanto, Celso. Código Penal Comentado. 6ª edição. Rio de Janeiro. Renovar. 2002.
Greco, Rogério. Curso de direito penal, 4ª edição. Rio de Janeiro, Impetus. 2004.
Lopes, Jair Leonardo. Curso de direito penal. Parte Geral. 3ª edição. São Paulo. RT. 1999.
Mirabete, Júlio Fabbrini. Manual de Direito Penal. 15ª edição. São Paulo. Atlas.
Noronha, E. Magalhães. Direito Penal. São Paulo. Saraiva. 1998. Pág. 160.
Silva, José Geraldo da. Teoria do Crime. Campinas. Bookseller. 1999.
Zaffaroni, Eugenio Raúl. Manual de direito penal brasileiro. Parte geral. 5ª edição. São Paulo. RT.2004.