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O direito e a virtude

02/06/2007 às 00:00
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            Para atingir o fim último do homem, são necessários disposições e hábitos.

            A palavra virtude vem de vir (vis), que indica a idéia de força. Qualifica a energia da vontade, e designa, como diz Tomás de Aquino (1221-1274), uma qualidade boa do espírito que torna reta a vida, e da qual não pode ninguém fazer mau uso (definitio virtutis quae solet assignari, scilicet, virtus est bona qualitas mentis, qua recte vivitur, qua nullus male utitur S.th. I-II 55,4).

            Opõe-se-lhe o vício, que é o hábito operativo do mal ou a disposição estável para cometer o mal. Contrário da virtude, é uma falta de energia, que consiste na má qualidade do espírito que faz viver mal, e da qual ninguém pode fazer bom uso.

            Algumas virtudes são chamadas de intelectuais e têm incidência notável sobre o comportamento ético das pessoas.

            No bom senso a inteligência apreende intuitivamente as virtudes evidentes por si mesmas: "O todo é maior do que qualquer de suas partes."

            A sabedoria julga todas as coisas a partir das suas causas mais profundas e universais. É o que fazem a filosofia, a ontologia e a teologia natural.

            A ciência procura conhecer, partindo das causas próximas. No plano prático, nossa inteligência precisa ser esclarecida, para que ela dirija corretamente nossos atos em demanda da finalidade respectiva.

            Temos dois tipos de atividades distintos pelos verbos fazer e agir. Quando lidamos com objetos diferentes de nós mesmos, encaminhamo-nos para a sua finalidade, fazemos algo; a disposição permanente que orienta esse tipo de atividade é chamada de arte (recta ratio factibilium). Assim é a arte musical, a pictórica e a própria lógica, que é a arte de pensar corretamente o raciocínio.

            Quando, ao contrário, se trata de orientar nosso próprio comportamento, para que nos leve ao fim supremo, estamos agindo; a virtude correspondente é a da prudência (recta ratio agibilium), virtude intelectual e, ao mesmo tempo, moral, porque é ela que julga com retidão quais os meios oportunos para atingirmos nossa meta suprema.

            Sócrates (470/469-399 a. C.) ensinava a bem pensar para bem viver. Para ele, a virtude adquire-se com a sabedoria ou, antes, com ela se identifica.

            Para Platão (428/427-347 a. C.), a virtude perfeita é o apanágio da alma espiritual. É a sabedoria ou ciência desta coordenação de prazeres, em que reside a felicidade.

            Aristóteles (384/383-322 a. C.) considerava que o funcionamento perfeito da vida consciente é obra das virtudes morais.


O direito e as virtudes morais

            As virtudes morais são disposições estáveis para bem agir, adquiridas à luz da razão, tendo a vontade por sujeito imediato.

            Elas são adquiridas e não inatas. Têm a sua fonte primeira na inteligência da ordem moral e das suas condições absolutas.

            Afetam imediatamente a vontade, pelo fato de procederem dos atos voluntários e de, ao multiplicar as próprias determinações, a vontade fortalecer-se a si mesma e adquirir um particular poder de ação.

            Para Aristóteles (384/383-322 a.C.), em sua Ética a Nicômaco (1.II.c.I), a virtude deriva a um tempo da retidão da razão e do exercício. Sem dúvida que um só ato basta para criar um começo da virtude; mas isso é apenas uma virtude esboçada, que só se poderá estabilizar e merecer autenticamente o nome de virtude mediante uma prática prolongada.

            Quando uma virtude ou um vício se acham inteiramente formados desde o primeiro ato, é que já estavam pré-formados por atos de virtude ou de vícios conexos ou por certas disposições hereditárias.

            As virtudes de ordem natural são fruto da boa vontade, unida a uma prática perseverante. Alguém torna-se prudente à força de ouvir e de meditar os conselhos de outrem e de exercer o seu próprio juízo. A gente se transforma em pessoa corajosa familiarizando-se com o perigo e em senhor dos sentimentos, submetendo-se a uma longa disciplina. A lei da virtude é a lei de todos os hábitos, que nos impõe uma ascese (exercício).

            Para Tomás de Aquino (1221-1274), "as virtudes que são do homem... o homem pode adquirir pelos próprios atos... e esta disposição assim firmada é um hábito de virtude moral" (Virtutes quae sunt hominis in eo quod est homo... homo potest acquirere ex actibus propriis... et ista disposito sic firmata est habitus virtutis [moralis] - Virt. i. com. a. 9; cf. In Eth. II lect 1 n. 247 sqq.; lect.2 n. 260 sqq.; III Dist. 33, 1 a.2 sol.2; S.th. I-II q. 63 et 51).

            A virtude é essencialmente pessoal. Não é uma herança nem resulta das circunstâncias, da educação ou do meio. A hereditariedade não pode dar a virtude por si mesma, mas somente certas predisposições, que não geram infalivelmente nem a virtude nem o vício.

            Nas famílias de artistas e de sábios há certas aptidões favoráveis hereditárias e cultivadas assiduamente pela educação. E, sobretudo, pela vontade pessoal.

            As virtudes são mais pessoais do que os talentos especulativos ou artísticos. As predisposições morais, que vêm conosco ao nascermos, abortam muito mais depressa e mais facilmente do que as predisposições intelectuais ou artísticas. A virtude é sempre o prêmio do esforço, da boa vontade e do exercício permanente.

            As virtudes são necessárias. Disto nos convencemos considerando os incessantes e variados deveres que ao homem incumbem: deve abster-se de todo o mal e fazer o bem, através de todas as suas faculdades; deve vencer ou dirigir todas as suas paixões, achar a justa medida em qualquer circunstância; deve conformar-se com mil prescrições, regras e conveniências que nunca é permitido infringir ou desprezar.

            Somente pelas virtudes, isto é, pelo hábito do bem sob todas as suas formas, é que o homem será capaz de bastar aos seus deveres. Só elas lhe permitirão fazer o bem com a constância, a presteza e o gosto, que são fruto do hábito em geral.

            As virtudes asseguram a constância da vontade virtuosa, produzem a presteza em fazer o bem e fugir do mal, enfim vêm a ser uma segunda natureza e, tal como a própria natureza, fazem agradáveis todos os atos dos quais são o princípio.


O direito, a virtude e os filósofos

            A virtude só se define adequadamente em referência à razão, da qual procede, e à vontade, na qual se forma e reside.

            Sócrates (470/469-399 a.C.) reduzia a virtude à ciência. Nos Diálogos de Platão (428/427-347 a.C.) aparece com freqüência a fórmula socrática "Ninguém é mau voluntariamente" (Protágoras, 345, d-e). Em Górgias, 480 b, é estabelecido igualmente que os vícios são meras doenças. Sócrates desconhecia o aspecto essencial da virtude, que é o de ser um hábito da vontade.

            Para Zenão (333/332-263 a.C.), a regra suprema da moralidade é viver conforme a natureza, naturam sequere. E viver segundo a natureza significa viver de acordo com a razão, submetendo-se espontaneamente à fatalidade das leis cósmicas. Nesta submissão voluntária, que gera a imperturbabilidade do espírito (ataraxia), consiste a virtude, que é o único bem, a felicidade suprema, amável por si mesma e de si mesma prêmio.

            Tanto o vício como a virtude são absolutos, não admitem graus. Quem possui uma virtude possui todas e é sábio; quem comete um delito é réu de todos, e entre os crimes não há gradação. Tudo o mais que virtude não for nem vício – prazeres, dores, humilhações, desonra, pobreza etc. – são coisas indiferentes (adiáforas); o sábio as despreza. Daí o aforismo Sustine et abstine: sofre a dor e abstém-te do prazer.

            Para Descartes (1596-1650), o ponto de partida é a existência do pensamento. Penso, logo existo (Cogito, ergo sum). Se cessasse totalmente de pensar, cessaria totalmente de existir. Por pensamento entende-se tudo quanto cai sob o domínio da consciência.

            A sua dificuldade prática é como chegará o homem a sujeitar a vontade ao entendimento. Problema das paixões. Elas são úteis quando se mantêm nos seus limites naturais – coisa que raramente acontece. Numa longa correspondência epistolar com Isabel, princesa platina (Lettres à Elisabeth, 1º/09 e 6/10/1645 – Chevalier, p. 92), Descartes afirma que "basta que as paixões sejam submetidas à razão; e, assim domesticadas, elas são, às vezes, tanto mais úteis quanto mais pendem para os excessos [...]. Só as [almas] fracas e baixas é que se estimam mais do que devem, e são como os pequenos vasos, que três gotas de água podem encher". A virtude será então o resultado dessa estratégia que transformará a razão em hábito.

            A concepção cartesiana da virtude é resolutamente intelectualista, ou seja, "basta bem julgar para bem agir" – paradoxo que não distingue a vontade da razão e a virtude do juiz.

            Kant (1724-1804), como os estóicos, identifica a virtude com a vontade reta, nega a realidade de um bem objetivo independente do sujeito moral e acaba pondo o sinal da virtude na tensão do querer (Grundlegung zur Metaphysik des Sitten, 1785, Delbos, p. 177). Por isso, com freqüência se tem salientado o caráter estóico da moral kantiana.

            Sua teoria da virtude é nitidamente voluntarista, pois a razão é incapaz de apreender uma ordem de direito, necessária e universal, por ser absolutamente limitada ao domínio dos fenômenos, e a lei moral depende de um postulado que é o da existência de um valor absoluto.

            Pena que uma virtude que se define pela pura obediência a uma lei, que a razão de modo algum pode compreender, não seja virtude de um ser racional.


O direito e as virtudes cardeais

            A palavra cardeal vem de cardo, cardinis = gonzo, eixo, ponto principal. As virtudes cardeais são assim chamadas porque são as primeiras de todas e fontes de outras.

            Estas virtudes são a prudência, a justiça, a fortaleza e a temperança. Essa divisão, proposta por Aristóteles (384/383-322 a.C.) – Ética a Nicômaco, VI, c. V et seq. – e repetida por Tomás de Aquino (1221-1274) – S.th. I-II 57,4; II-II 47 5 a.3, 58, 1, 143 –, justifica-se objetiva e subjetivamente, já que cada virtude tem um objeto e um sujeito imediato distinto.

            Do ponto de vista objetivo, é necessário que a razão conheça o bem e o proponha à vontade como regra de sua atividade (prudência); que a vontade realize essa ordem da razão, quer pelos atos exteriores concernentes às relações dos homens entre si (justiça), quer triunfando dos obstáculos que nascem das paixões sensíveis por meio da temperança, que modera o desejo e o gozo dos bens sensíveis, e por meio da fortaleza, que firma a vontade no dever e domina o temor produzido pelas dificuldades e perigos.

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            Do ponto de vista subjetivo, todas as faculdades que concorrem para a realização do bem moral têm necessidade de ser fortalecidas pelas virtudes. Essas faculdades são a razão, que é aperfeiçoada pela prudência; a vontade, que é aperfeiçoada pela justiça; e a sensibilidade, cujo apetite concupiscível (desejo) é aperfeiçoado pela temperança e cujo apetite irascível (temor) o é pela fortaleza, nos precisos termos de Tomás de Aquino (S. th. II-II, 61, 2).

            Uma virtude só é perfeita se consegue que, em todas as ocasiões, o bem honesto seja realizado de maneira constante e firme. Ora, cada virtude só preenche esta condição à medida que implica, juntamente consigo, o exercício das outras virtudes.

            É a prudência que produz essa solidariedade mútua das virtudes e faz delas um organismo. Sendo virtude intelectual e moral, é essencialmente indivisível e dá a todas as virtudes sua forma e sua medida.

            Essas observações relativas ao organismo das virtudes têm mero valor teórico, pois se referem ao estado de natureza pura, que não é o estado real da humanidade.

            No estado real, ou de natureza decaída e redimida, as virtudes adquiridas não podem, sem a caridade, formar um verdadeiro organismo. Permanecem no estado de simples disposições, isto é, de virtudes imperfeitas, que permitem praticar atos bons, mas não viver bem de maneira constante e firme.

            Como diz Tomás de Aquino, "só as virtudes infusas são virtudes perfeitas no sentido puro e simples... as virtudes adquiridas só são virtudes sob certo aspecto, e de modo algum no sentido puro e simples" (solae virtutes infusae sunt perfectae, et simpliciter dicendae virtutes [...]. Aliae vero virtutes, scilicet acquisitae, sunt secundum quid virtutes, non autem simpliciter – S.th. I-II, 65,2).

            As virtudes cardeais consistem num justo meio-termo, segundo a célebre fórmula de Aristóteles: in medio virtus (Ética a Nicômaco, II, c. V-IX).

            Para compreender o sentido desta asserção, é preciso observar que não poderia tratar-se de um meio-termo material, mas somente de um meio-termo de razão, a ser determinado entre a falta e o excesso, a abstenção e a ação na prática das virtudes morais.

            A medida é a condição de toda a perfeição humana, consoante as normas da prudência.

            Desde Platão distinguem-se quatro virtudes morais ou cardeais. Na sua ética ele dizia que a virtude própria dos filósofos é a sabedoria, a dos guerreiros, a coragem, a dos operários, a temperança, a de todos, a justiça.

            Prudência é a reta noção daquilo que se deve fazer, ou, no dizer de Tomás de Aquino (1221-1274), recta ratio agibilium (S.th. II-II 57, 4 e II-II 47, 5 arg 3).

            O seu objeto é o agir humano (agibile), para distingui-la da arte, cujo objeto são as coisas que se produzem (factibile). É virtude da razão, pela qual o homem sabe o que é preciso fazer ou evitar. Nossa inteligência tem que ser iluminada para escolher os meios adequados que levam à meta proposta.

            Pela prudência privada cada um dirige a si mesmo. A prudência pública é a do chefe e serve para o governo da sociedade.

            Justiça é a vontade firme e constante de respeitar todos os direitos e de cumprir todos os deveres, ou, no dizer de Tomás de Aquino, habitus secumdum quem aliquis [...] ius suum unicuique tribuit (S.th. II-II 58, 1). Não há virtude mais alta, pois todos os atos honestos procedem da disposição de dar a cada um o que é seu. Por esta virtude é que os homens estão reunidos em sociedade e participam de uma vida comum.

            É a justiça geral, legal ou social que faz com que o homem obedeça à lei, a qual ordena os atos de todas as virtudes ao bem comum da sociedade. A justiça particular divide-se em comutativa e distributiva. A comutativa regula as relações entre pessoas privadas e consiste em dar a cada um o que é seu; a distributiva vê as relações entre a sociedade e cada um de seus membros.

            Fortaleza é uma firmeza da alma contra tudo o que a molesta neste mundo – virtude que faz vencer as dificuldades e os perigos que excedem a medida comum e sofrer com paciência as penas mais pesadas.

            A verdadeira fortaleza não consiste em não temer coisa alguma e em se atrever a tudo, senão em temer com prudência e em ousar sem temeridade: se preciso, ele sabe ir ao encontro de uma morte certa, mas evita sem apreensão todo o perigo inútil.

            Da magnanimidade resultam a magnificência, a paciência e a perseverança. A magnanimidade concita aos grandes empreendimentos em razão de sua excelência e a despeito das suas dificuldades. A magnificência realiza as grandes obras que a magnanimidade concebe. A perseverança vai sempre adiante, e a paciência nunca recua.

            A temperança tem por objeto a moderação nos prazeres dos sentidos. É a regra, a medida e a condição de toda a virtude. Sem ela a prudência vira astúcia, a sabedoria carece de medida, a fortaleza excede-se em seu fim e a própria justiça raia pela falta de eqüidade –summum ius summa iniuria, conforme diz Cícero (De officiis, Livro I, 10).

            São seus elementos a moderação e a honestidade. Dela derivam a sobriedade no beber e no comer, bem como a castidade, que regula o uso dos prazeres sexuais e o pudor que lhe corresponde.

            Os atos pelos quais se exerce a temperança são os que correspondem às virtudes de continência, reguladora das paixões, de humildade, que modera os desejos de grandeza e as vãs esperanças, de mansidão e de clemência, que afastam os desejos de vingança, e de modéstia, que modera o comportamento externo.

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Sobre o autor
Máriton Silva Lima

Advogado militante no Rio de Janeiro, constitucionalista, filósofo, professor de Português e de Latim. Cursou, de janeiro a maio de 2014, Constitutional Law na plataforma de ensino Coursera, ministrado por Akhil Reed Amar, possuidor do título magno de Sterling Professor of Law and Political Science na Universidade de Yale.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LIMA, Máriton Silva. O direito e a virtude. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1431, 2 jun. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/9973. Acesso em: 26 abr. 2024.

Mais informações

Texto baseado na fusão de artigos publicados no "Jornal da Cidade", de Caxias (MA), entre 24/09 e 22/10/2006

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