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O juiz e a conectividade.

Os autos e o mundo virtual

Leia nesta página:

            "Os justos só são eficazes, só conseguem manter a existência de uma comunidade, constituindo uma inteligência coletiva".

Pierre Lévy


            Muito embora tenha virado clichê enaltecer o potencial coletivo da rede, no Judiciário isso ainda é um grande tabu, pois a decisão judicial, mesmo quando proferida de forma colegiada, deflui ainda de um processo de convicção visceralmente monocrático.

            Deixando de lado as complexas formalizações matemáticas da novel teoria das redes, o sociólogo catalão Manuel Castells, transformou um simples insight numa trilogia monumental sobre a era da informação. Sua grande sacada foi afirmar que o ‘poder dos fluxos é mais importante que os fluxos do poder’.

            Essa locução é bem mais revolucionária que aparenta, pois significa, na prática, realçar toda a potência das conexões interativas da inteligência articulada coletivamente, enfim, do que Marx chamava, nos Grundrisse, de ‘general intellect’.

            Mas o que isso tem a ver com o juiz contemporâneo? A resposta é simples: permite ver o magistrado não como Poder, senão como potência e contrapoder, ou seja, antes de representar o Poder, o Poder constituído e estático, o juiz contemporâneo pode catalisar os fluxos da dinâmica dos laços da coletividade.

            Por um lado, a sentença é um ato de inteligência. Por outro, o sentimento está incrustado nas profundezas de sua própria etimologia latina (sententìa,ae, ‘sentimento’). Mas sentimento e intelecto são justamente as duas instâncias mais afetadas pelo poder dos fluxos e influxos das novas tecnologias de informação e comunicação.

            Hoje não vinga mais a figura do gênio solitário. Ninguém consegue mais competir com a velocidade e a riqueza criativa dos fluxos de conhecimento que se irradiam pela rede. Ninguém, isoladamente, detém nem sequer o conhecimento disponível de uma única área do saber.

            O juiz solipsista, que desconecta os autos do mundo, que não interage com as partes e com o contexto sócio-cultural, tem cada vez mais dificuldade de atuar com adequação social.

            A sentença não é mais um sentimento isolado, fruto de uma racionalidade jurídica particular, de uma justiça individual. O sentimento contemporâneo de justiça é eminentemente coletivo, solidário e cooperativo. Esse sentimento, cristalizado na própria etimologia da sentença, antes que individual, é indiviso, é comum e compartilhado na sua inteireza.

            A sentença contemporânea tende a ser o ‘lugar-comum’, não no sentido de expressões estereotipadas, mas na acepção aristotélica do termo - tópos koinós – isto é, o discurso que se contrapõe aos ‘lugares especiais’, aos discursos especializados, aos saberes privativos.

            Esse ‘lugar-comum’ não é mais o texto assinado no papel pela individualidade do julgador, mas o hipertexto, a malha comunal que não cessa de se comunicar, de se construir e reconstruir, através do processo virtual.

            Nesse sentido devemos estar atentos para que o estupendo avanço proporcionado pela lei do processo eletrônico (Lei 11.419/2006), que consagra o código fonte aberto, o software livre, a internet e o procedimento virtual como regra, não seja canalizado numa direção contrária, ou seja, a da verticalização vinculante dos procedimentos.

            A experiência demonstra que os processos fechados e opacos de informatização dos sistemas judiciários, na mão de uns poucos especialistas, condicionam e aprisionam a liberdade e a independência do juiz na condução do feito, o que, efetivamente, implica uma perda bruta de fenomenalidade procedimental e instrumental do acesso judiciário e, por conseqüência, da própria eficácia dos direitos materiais do cidadão.

            O que se percebe nesse momento de refundação virtual da ciência do direito processual, é a exponencialização de sua instrumentalidade, que se irradia da inscrição escrita e estática dos autos, para a intermidialidade do processo, isto é, para a conjunção, interação e contaminação recíproca entre os vários media propiciados pelas novas tecnologias de comunicação e informação.

            Por outro lado, a hipercomplexidade da realidade jurídica transnacional já desafia novas formas de atuação judicial. No chamado espaço jurídico europeu, em que se entrelaçam dezenas de tribunais supremos, tribunais constitucionais, o tribunal de justiça da União Européia e o tribunal europeu de direitos humanos, os Judiciários são chamados, cada vez mais, a decidirem sobre o emaranhado de direitos nacionais, comunitários e internacionais.

            Nessa esfera, quase-caótica, o sistema tradicional de hierarquia entre os tribunais e as normas já não funciona mais. Constrói-se, a partir daí, o conceito de cooperação judicial ou interjurisdicional. Cria-se a figura do ‘magistrado de enlace’, desconhecida dos ordenamentos jurídicos da América Latina.

            A idéia de cooperação judicial começa então a ganhar corpo, pois torna factível erigir, assim, uma espécie de meta-rede jurisdicional, que se irradia espargindo e estendendo conexões de tutela jurisdicional, superando seus limites naturais vinculados à idéia tradicional de soberania.

            Além disso, no plano interno, esse conceito de cooperação judicial permite desenvolver mecanismos de conexão entre os sistemas judiciários estaduais e federais, comuns e especializados, pois atualmente os vários tipos de Justiça nacionais (estadual comum, federal comum, do trabalho, eleitoral e militar) praticamente não têm qualquer mecanismo institucionalizado de atuação cooperada.

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            Além de superar os limites nacionais, e os próprios compartimentos de Justiças intranacionais, a cooperação virtual entre autoridades permite também superar os limites da mídia de papel, fundando um novo princípio processual: o da intermidialidade, o que altera profundamente não só a inscrição da decisão judicial, mas também o próprio processo de formação da convicção do juiz, que passa, dessa maneira, a ser mais cooperativo, coletivo, e, nesse sentido, mais eficaz.

            O que está nos autos virtual está instantaneamente no mundo virtual. Não há mais dicotomia entre os autos e o mundo – uma máxima da ciência jurídica clássica - o que pode viabilizar inclusive cogitar-se, efetivamente, da superação das barreiras postas entre o processo e os direitos do cidadão.

            A cooperação judicial internacional, ensejada pela novas tecnologias de informação e comunicação, é a cidadania hipertextualizada e a democracia do plug and say, enfim alvorecidas no Poder Judiciário.

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Sobre o autor
José Eduardo de Resende Chaves Júnior

doutor em Direitos Fundamentais pela Universidad Carlos III de Madrid, juiz do Trabalho em Belo Horizonte (MG), vice-presidente da Rede Latino-americana de Juízes

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CHAVES JÚNIOR, José Eduardo Resende. O juiz e a conectividade.: Os autos e o mundo virtual. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1434, 5 jun. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/9985. Acesso em: 18 dez. 2024.

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