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A imunidade absoluta de jurisdição de Estados

"sólida regra costumeira" ou mito?

A imunidade absoluta de jurisdição de Estados: "sólida regra costumeira" ou mito?

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Pelo zelo a uma suposta norma consuetudinária que não resistiria a uma análise mais detida, indenizações e verbas trabalhistas deixaram de ser pagas ou, pelo menos, judicialmente discutidas.

"Uma boa sentença é demasiado dura para a mandíbula do tempo e milhares de anos não lograriam devorá-la, ainda que todas as épocas dela se alimentem". (Cartaz afixado na entrada da Defensoria Penal Pública de Valparaíso, Chile).


Introdução

            Em 1976, na cidade de São Paulo, a Srª Geny de Oliveira propôs reclamação trabalhista contra a Representação Comercial da República Democrática Alemã (RDA), pleiteando a anotação na carteira profissional de seu falecido marido dos dados relativos ao contrato de trabalho entre o de cujus e a mencionada representação [01]. A Representação Comercial da RDA contestou e, preliminarmente, invocou a imunidade de jurisdição.

            Em sede recursal, o feito foi remetido ao Supremo Tribunal Federal, sendo julgado em 1989. Após o pedido de vistas, o ilustre internacionalista e então ministro do STF, Francisco Rezek, proferiu voto que foi acatado por todos os demais julgadores. O voto do Ministro Rezek sepultou a aplicação da teoria da imunidade a todos os casos em que Estados estrangeiros estavam envolvidos (teoria da imunidade absoluta), restringindo-a a hipóteses em que o país estivesse agindo como "ente soberano" (teoria da imunidade relativa).

            Em síntese, argumentou o ministro Rezek que a imunidade de jurisdição de Estados resultava de uma "antiga e sólida regra costumeira" [02], que "deixou de existir na década de setenta" [03]. Desse modo, haveria ruído "o nosso único suporte para a afirmação da imunidade numa causa trabalhista contra Estado estrangeiro, em razão da insubsistência da regra costumeira que se dizia sólida – quando ela o era -, e que assegurava a imunidade em termos absolutos". [04]

            Nas decisões subseqüentes do STF e do STJ, consolidou-se, a partir de então, a aplicação da teoria da imunidade relativa de jurisdição dos Estados, revertendo posicionamento anterior, que consagrava a imunidade absoluta, não apenas em decisões, mas também em pareceres da procuradoria-geral da República. O próprio Rezek, na década de setenta, em parecer que proferiu na condição de Procurador-Geral da República (cargo que ocupou antes de ser nomeado Ministro do STF) defendeu, incisivamente, a imunidade absoluta:

            Tem-se, pois, que a imunidade daquele Estado soberano (Japão) à jurisdição doméstica não resulta da convenção de Viena, mas de uma das mais sólidas regras costumeiras de Direito das Gentes. Nenhum estado ignora a impossibilidade de submeter outra Nação, contra a sua vontade, à condição de parte perante o Judiciário local. Nem poderia fazê-lo a menos que disposto – e apto – a garantir pela força bélica a execução da eventual e esdrúxula sentença condenatória, o que repugna substancialmente ao moderno Direito Internacional, que nossa república ajudou a construir e consolidar [05].

            Normas consuetudinárias têm fundamental importância para a construção do Direito Internacional – mormente, se constituírem uma "sólida regra costumeira de Direito das Gentes". Há setores do Direito Internacional que, ainda hoje, são inteiramente regidos por costumes – por exemplo, a imunidade de jurisdição de Estados [06].

            Assim sendo, pretende-se, neste artigo, investigar a configuração da imunidade absoluta como norma consuetudinária.


Delimitação do tema: imunidade de jurisdição de Estados

            A imunidade jurisdicional dos Estados, na feliz asserção do professor Boson, "consubstancia problemática extensa, complexa e apaixonante" [07]. Por ser vasto e intrincado, o tema reclama delimitação.

            Destarte, inicialmente, cumpre propor uma conceituação de imunidade de jurisdição e distingui-la de outras figuras. A imunidade de jurisdição cuida da possibilidade e medida em que Estados, seus órgãos ou empresas podem ser submetidos às cortes de outros países. Já a imunidade de execução concerne à possibilidade de adoção de medidas executórias contra os bens do Estado. [08] Embora a distinção se afigure evidente, nota-se que o mencionado parecer do então procurador-geral da República baralhou os dois institutos, ao afirmar:

            Nenhum estado ignora a impossibilidade de submeter outra Nação, contra a sua vontade, à condição de parte perante o Judiciário local. Nem poderia fazê-lo a menos que disposto – e apto – a garantir pela força bélica a execução da eventual e esdrúxula sentença condenatória (...)

            A imunidade de jurisdição não deve ser confundida com a teoria do ato de Estado (act of State doctrine), uma criação do common law anglo-americano. A primeira e mais sucinta noção na jurisprudência dos Estados Unidos está formulada na decisão da Suprema Corte Americana, no caso Underhill v. Hernandez, de 1897: "as cortes de um país não julgarão os atos executados [alhures] por outro governo no seu próprio território". Mais recentemente, em 1990, no caso W.S. Kirkpatrick & Co., Inc. v. Environmental Tectonics Corp., a Suprema Corte apresentou a teoria como uma regra decisória: "a teoria do ato de Estado (...) requer que (...) os atos de soberanos estrangeiros por eles praticados no âmbito de suas respectivas soberanias deverão ser considerados válidos" [09].

            Em síntese, a "teoria de ato do Estado" concerne a atos praticados por outros países em outras (suas respectivas) jurisdições.

            Também não se deve confundir a imunidade de jurisdição estatal com as imunidades e privilégios diplomáticos e consulares. Tais garantias são conferidas, respectivamente, aos agentes diplomáticos e consulares e, hodiernamente, regulamentadas nas Convenções de Viena de 1961 e 1963, enquanto a imunidade de jurisdição de Estados se arrima, primordialmente, em costume.

            A imunidade de Estados perante cortes estrangeiras irrompe do conflito entre dois princípios basilares de Direito Internacional: a igualdade entre os Estados e a jurisdição territorial exclusiva [10].


A imunidade absoluta precedeu a relativa?

            A origem da imunidade jurisdicional é objeto de controvérsia [11]. Parte considerável da doutrina assevera que a imunidade teria suas raízes na independência e na igualdade dos Estados e que, em princípio, seria absoluta [12]. Se os países são independentes e iguais, um Estado não poderia submeter, às suas cortes, outro país: par in parem non habet imperium [13]. Atentaria-se contra "sua soberania, sua independência, sua dignidade vê-lo como demandado" [14]. A imunidade cobriria toda a atuação estatal, o que lhe conferiria caráter absoluto.

            Contudo, a maior participação do Estado em setores que haviam sido, até então, alocados primordialmente para a iniciativa privada, teria levado a um abrandamento da imunidade, já na primeira metade do século XX [15]. Passou-se a distinguir entre os atos de império e os de gestão. Os atos de império seriam os próprios do ente soberano, enquanto os de gestão seriam aqueles de natureza comercial ou de direito privado.

            A dissonância desta versão é mais bem formulada [16] pelo professor Michael Byers, da Duke University. Segundo Byers, é uma crença geral que quando a doutrina de imunidade relativa se tornou uma norma consuetudinária de Direito Internacional, na metade do século XX, alterou-se o costume preexistente em que se garantia imunidade absoluta de jurisdição aos Estados [17]. No entanto, tal crença seria errônea e a existência de imunidade absoluta não passaria de um mito [18]. Afirma Byers [19]:

            (...) um exame da história da imunidade estatal, que é basicamente uma história de julgados de cortes nacionais e de legislação interna, indica que imunidade absoluta não era uma regra estabelecida. Mais propriamente, a história sugere que não havia qualquer norma geral regulando a imunidade de jurisdição antes da imunidade relativa se tornar uma norma de Direito Internacional e uma crença equivocada em tal regra pré-existente serviu para retardar o desenvolvimento [da imunidade relativa].

            Como esteio à sua tese, Byers aponta casos anteriores em que já se aplicava a teoria relativa de imunidade: os tribunais belgas utilizaram-na já em 1857, os italianos em 1886, os suíços em 1918. Além disso, cortes argentinas e francesas, em 1924, egípcias, a partir de 1926, gregas, desde 1928, irlandesas, a datar de 1941 e alemãs, a partir de 1949, distinguiam atos de império dos de gestão [20].

            Byers aponta que nos países do sistema common law é que se consolidou a prática de garantir imunidade absoluta, mormente nos Estados Unidos, onde tal práxis estaria "entrincheirada" a partir da célebre decisão de autoria do presidente da Suprema Corte Americana, John Marshall no caso Schooner Exchange v. McFaddon.

            Mas mesmo tal enraizamento da imunidade jurisdicional absoluta de Estados nos E.E.U.U. é, no mínimo, dubitável. No estudo que mais minuciosamente analisou o desdobramento da imunidade jurisdicional nos Estados Unidos, o professor Murray, da Universidade de Illinois, apresentou conclusão distinta, que transcrevemos [21]:

            Meu entendimento é que a teoria da imunidade relativa de jurisdição foi adotada e aplicada pelas cortes dos Estados Unidos já no início do século XIX, começando com três marcantes decisões da corte (presidida pelo juiz Marshall) e que somente por breve período, de 1926 a 1938, é que a Suprema Corte americana adotou posição ambígua concernente à teoria da imunidade absoluta, que contrastava com o posicionamento esposado pelo Departamento de Estado e pelo Executivo, na mesma época.

            As três decisões da Suprema Corte a que se refere o professor Murray são a já mencionada Schooner Exchange v. McFaddon, mais Santíssima Trinidad e, por fim, o decisum no caso Bank of the United States v. Planters´´ Bank of Georgia. Abordaremos o primeiro e o último, tendo em vista a maior atenção que receberam da jurisprudência subseqüente.


O caso Schooner Exchange v. McFaddon

            O decisum do juiz Marshall no caso Schooner Exchange v. McFaddon [22] é apontado por substancial número de doutrinadores como o primeiro ou, ao menos, a mais clara formulação da doutrina da imunidade de Estados até então [23].

            Em 1810, a escuna Exchange, até então utilizada para fins comerciais e de propriedade de dois nacionais norte-americanos, foi aprisionada pela marinha francesa. Por ordem de Napoleão Bonaparte, foi transformada em navio de guerra - o "Balaou". Dois anos depois, forçada a aportar em Filadélfia, nos Estados Unidos, para que se realizassem reparos em decorrência de uma tempestade, os ex-proprietários americanos moveram ação possessória para reaver a escuna. O governo francês contestou, argumentando que, como navio de guerra, a Exchange constituía-se em longa manus do imperador e tinha direito à imunidade, tal como o próprio Napoleão Bonaparte [24].

            Merecem transcrição alguns pontos do mencionado decisum:

            A jurisdição de uma nação em seu território é necessariamente exclusiva e absoluta. É insusceptível de qualquer limitação que não seja imposta por si mesma. (...)

            Sendo o mundo composto de soberanias distintas, possuidoras de iguais direitos e independência, cujo mútuo benefício é promovido pela relação com o outro e por troca daqueles bons ofícios que a humanidade dita e seus desejos requerem, todos os soberanos consentiram, na prática, em certos casos em circunstâncias peculiares, com um relaxamento daquela jurisdição absoluta e completa no âmbito de seus respectivos territórios, que a soberania lhes confere [25].

            Essa plena e absoluta jurisdição territorial, sendo igualmente um atributo de cada soberano e sendo incapaz de conferir poderes extraterritoriais, não sendo um soberano em qualquer aspecto submisso a outro e estando compelido por obrigações da mais alta natureza a não degradar a dignidade de sua nação, ao colocar a si mesmo ou a seus direitos soberanos sob a jurisdição de um outro, se presumirá que só entrará em território estrangeiro sob uma licença expressa ou na confiança que as imunidades pertinentes à sua posição de soberano independente, embora não expressamente estipuladas, estão reservadas por decorrência e serão estendidas a ele [26].

            Essa perfeita igualdade e absoluta independência de soberanias e esse interesse comum, que as impele a manter relações mútuas e a trocar bons ofícios umas com outras, fez surgir uma classe de casos em que se entende que cada soberania renuncia ao exercício de parte daquela complexa jurisdição exclusivamente territorial, que se declara ser um atributo de cada nação [27].

            Como se vê, Marshall não fez referência à imunidade absoluta. Aliás, em outro trecho, deixou entrever distinção entre a propriedade privada de um soberano e a propriedade pública a serviço do Estado estrangeiro, ao afirmar que:

            (…) há manifesta distinção entre a propriedade privada de uma pessoa que porventura é príncipe e a força militar que apóia o poder soberano e mantém a dignidade de uma nação. Pode-se considerar que um príncipe, ao adquirir propriedade privada em país estrangeiro, sujeita-a à jurisdição territorial; pode-se considerar que até aquele ponto se põe de lado o príncipe e se assume um caráter de pessoa individual privada, mas isso não pode ser presumido relativamente a nenhuma porção de suas forças armadas, que sustentam sua coroa e a nação que lhe confia o governo. [28]


Caso Bank of the United States v. Planters´´ Bank of Georgia

            A emenda n. XI à constituição americana veda "qualquer demanda baseada na lei ou na eqüidade, iniciada ou processada contra um dos Estados Unidos por cidadãos de outro Estado, ou por cidadãos ou súditos de qualquer potência estrangeira". Destarte, garante-se aos estados-membros da federação americana, bem como a seus órgãos, a imunidade de jurisdição.

            O Caso do Planters´Bank envolveu um banco que tinha como um de seus acionistas o estado de Geórgia. Diante da invocação de imunidade de jurisdição, o juiz Marshall, em 1824, pronunciou-se nos seguintes termos:

            Pensamos ser um sólido princípio que quando um governo se torna sócio de qualquer companhia comercial, ele renuncia de seu caráter soberano, no que concerne às transações daquela companhia, e assume a posição de um ente privado. Em vez de comunicar à companhia seus privilégios e prerrogativas, desce ao nível daqueles com quem se associou e assume o caráter pertinente aos seus sócios e à atividade comercial em que transacionará. (...) Ao conferir ao Banco capacidade de processar e ser processado, o estado de Georgia voluntariamente se despe de seu caráter soberano, no que diz respeito às transações do Banco, e abdica de todos os privilégios relativos a tal caráter. Como sócio de uma empresa, um governo nunca exerce sua soberania. (...) [29]

            Da análise da tríade, chega-se à mesma conclusão do Prof. Murray: a Suprema Corte Americana , já no início do século XIX, adotava a teoria da imunidade de jurisdição relativa.

            A orientação da corte só mudaria no caso Berizzi Bros. Co. v. SS Pesaro, em que o juiz da Suprema Corte Americana, Van Devanter, entendeu que um navio realizando comércio para o benefício da nação estava tanto a serviço público do Estado quanto um navio de guerra, devendo ser concedidas a ele as mesmas imunidades [30].


O Departamento de Estado e o ofício de Jack B. Tate (The Tate Letter)

            Observa Murray que o Departamento de Estado americano acatou os princípios mais relevantes da teoria da imunidade relativa e teve atuação bastante consistente no século XX [31]. Ainda de acordo com Murray:

            Nos casos em que se afigurava que um navio era de propriedade de um governo estrangeiro, operado diretamente por ele, e cuja extensão da imunidade serviria à sua finalidade, o Departamento de Estado tendia a fazer uma clara sugestão de imunidade. Em casos em que as circunstâncias não indicavam que o governo estrangeiro possuía e operava um navio ou onde a extensão da imunidade não fosse cumprir sua finalidade, o Departamento de Estado tendia a não tomar uma posição na questão. Isso também valia para casos em que a soberania estrangeira não era considerada "amistosa" ou em situações em que o governo dos E.E.U.U. tivesse rompido relações com o outro Estado [32].

            Em 1952, o Departamento de Estado divulgou um ofício (the Tate Letter) [33] em que explicitou de forma inequívoca sua adesão à teoria da imunidade relativa:

            O Departamento de Estado, já há algum tempo, tem considerado a questão se a prática do Governo [americano] em conceder imunidade de jurisdição a governos estrangeiros, acionados nas cortes dos Estados Unidos sem seu respectivo consentimento deveria ser mudada. O Departamento, agora, concluiu que tal imunidade não mais deveria ser concedida em alguns tipos de casos [34]. (...)

            Assim, resta evidente que, excetuando-se a União Soviética e seus satélites e, possivelmente, o Reino Unido, encontra-se pouco amparo para uma continuidade de aceitação integral da teoria da imunidade absoluta. Há evidências que as autoridades britânicas estão conscientes de suas deficiências e prontas para mudar [35].

            Dois pontos merecem particular atenção. O primeiro é o fato de a questão da relativização de imunidade estar sob análise "já há algum tempo". Segundo, é o expresso reconhecimento de pouco apoio, no cenário internacional, para a regra da imunidade absoluta.


A Convenção Européia sobre Imunidade de Estado

            A Convenção Européia sobre Imunidade de Estado resultou de discussões iniciadas em 1963. Foi finalizada em 1972, mas, decorridos mais de trinta anos, apenas sete países aderiram [36].

            Registra-se que também a Convenção inclinou-se nitidamente para a relativização da imunidade de jurisdição.


A Comissão de Direito Internacional e a Imunidade de Estados

            A comissão de Direito Internacional (CDI) foi estabelecida pela Assembléia Geral da Organização das Nações Unidas [37], com a incumbência de cuidar do desenvolvimento e da codificação do Direito Internacional.

            De reconhecida competência em Direito Internacional, é composta por 34 membros [38], eleitos pela Assembléia Geral [39].

            Em 1977, a Assembléia solicitou à Comissão de Direito Internacional que considerasse a questão da "imunidade de Estados e sua propriedade". Em 1978, a Comissão iniciou estudos sobre o tema e designou como relator o professor Sompong Sucharitkul, da Tailândia. Entre 1979 e 1986, o professor Sucharitkul elaborou oito (extensos) relatórios [40]. Submeteu-se uma versão à Assembléia Geral e, até 1988, vinte e três Estados haviam se pronunciado sobre a proposta de artigos da CDI.

            Entre 1988 e 1991, o novo relator designado, prof. Motoo Osigo, do Japão, preparou a versão final em três documentos, apresentando-os à Assembléia Geral da ONU no outono de 1991.

            Observa-se que a versão final do "projeto de artigos sobre imunidade de Estados e sua propriedade" também consagrou a teoria da imunidade relativa.


A imunidade absoluta como "antiga e sólida regra costumeira": tudo que é sólido desmancha no ar

            Em 1873 (e, portanto, mais de um século antes da decisão mencionada no início deste artigo), ao proferir lapidar voto no caso The Charkieh, em que se abordou a questão da imunidade, o juiz inglês Robert Phillimore afirmou:

            Além daquele princípio [da independência] não há posição comum. Faculta-se a cada Estado aplicar, a seu modo, o princípio e cada um o aplicou de maneira distinta. Alguns adotaram uma regra de imunidade absoluta que, se levada às ultimas conseqüências, arriscaria tornar-se um instrumento de injustiça. Outros adotaram uma regra de imunidade para atos [de natureza] pública, mas não para atos [de natureza] privada, o que tem se mostrado uma distinção elusiva. Todos admitem exceções. Não há prática uniforme. Não há regra uniforme. [41]

            Para que se possa configurar uma norma costumeira de Direito Internacional, é necessário que se tenha uma "prática geral aceita como sendo o Direito", nos precisos termos do artigo 38 do Estatuto da Corte Internacional de Justiça [42].

            Registra-se que, na primeira decisão proferida pela Corte Internacional de Justiça (CIJ) no caso Haya de la Torre, em que contendiam Peru e Colômbia, em questão concernente ao asilo diplomático, afirmou-se que a prática revelava "tantas incertezas e contradições", "flutuações e discordâncias" e "influências políticas" que se impossibilitava discernir um uso uniforme e uma aceitação constante, susceptível de servir de base ao costume [43].

            Pelos fundamentos acima expendidos, resta patente que a imunidade absoluta de Estados não configurou costume, no sentido jus-internacionalista do termo, quanto mais uma "sólida regra costumeira". As "incertezas, contradições, flutuações e discordâncias" observadas pela CIJ na primeira decisão proferida do caso Haya de la Torre são também inferíveis da prática dos Estados atinente à imunidade absoluta de jurisdição.

            Destarte, pelo zelo a uma "sólida regra costumeira" que não resistiria a uma análise mais detida, indenizações e verbas trabalhistas deixaram de ser pagas ou, pelo menos, judicialmente discutidas. A suposta norma consuetudinária era, na verdade, um mito - uma crença equivocada que custou a vários indivíduos a adequada prestação jurisdicional.


Notas

            01 Cf. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Apelação Cível nº 9696-3/SP, Pleno, Relator: Min. Sydney Sanches, julgada em 31.5.1989, com publicação no DJ de 12.10.1990.

            02 Idem.

            03 Idem.

            04 Idem.

            05 MAGALHÃES, José Carlos de. O Supremo Tribunal Federal e o direito internacional. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000. p. 136.

            06 Neste sentido, BENADAVA, Santiago. Derecho internacional público. 7ª ed. Santiago: LexisNexis, 2001, p. 27, assevera: "El derecho internacional consuetudinario conserva su importancia como parte del orden jurídico internacional. Sectores tales como la responsabilidad internacional, las inmunidades del Estado y la práctica arbitral continúan regidos por la costumbre."

            07 BOSON, Gerson de Britto Mello. Imunidade Jurisdicional dos Estados. Revista de Direito Público. São Paulo: Revista dos Tribunais, n. 22, p. 9, 1972.

            08 Neste sentido preceituam REMIRO BROTÓNS et alli: "Conforme al [principio de la inmunidad del Estado extranjero] (...), un Estado debe abstenerse, en ciertos supuestos, de ejercer jurisdicción en un proceso incoado ante sus tribunales contra otro Estado (inmunidad de jurisdicción) y de adoptar medidas de ejecución contra sus bienes (inmunidad de ejecución)."

            09 Os trechos relevantes de ambas as decisões aparecem em artigo do prof. Michael Ramsey, que apresenta conceituação própria: "a teoria dos atos de Estado estipula que, sujeito a exceções, as cortes dos Estados Unidos não julgarão a validade de atos oficiais de governos estrangeiros realizados em seu próprio território." RAMSEY, Michael D. Acts of State and Foreign Sovereign Obligations. Harvard International Law Journal, Cambridge, v. 39, n. 1, p. 1, inver. 1998.

            10 CAPLAN, Lee M.. State immunity, human rights and jus cogens: a critique of the normative hierarchy theory. American Journal of International Law. Washington, v. 97, n.4, p. 745. October 2003.

            11 The Australian Law Reform Comission. Disponível em: < http://www.austlii.edu.au/au/other/alrc/publications/reports/24>. Acesso em: 15 jan. 2005.

            12 Neste sentido, ver AKEHURST, Michael. Modern introduction to International Law. 7.ed. rev. por MALANCZUK, Peter. Londres: Routledge, 1997, pp. 118-119; REMIRO-BROTÓNS, Antonio et al. Derecho Internacional. Madri: McGraw-Hill, 1997. p. 799; CARTER, Barry E.; TRIMBLE, Phillip R.. International law. New York; Aspen Law e Business, 1999. 3.ed. pp. 595-599; SHAW, Malcolm M. International law. Cambridge: Cambridge University Press, 1997. p. 494; BLAKESLEY, Christopher L. et al. The international legal system. New York: Foundation Press, 2001. p. 505-507; HEß, Burkhard. The international law comission’s draft convention on the jurisdictional immunities of states and their property. European Journal of International Law, Oxford, v.4, n.2, p. 269, 1993; DEAK, Francis. Órganos del estado en sus relaciones exteriores: inmunidades y privilegios del estado y de sus órganos. In: SORENSEN, Max. Manual de derecho internacional publico, México: Fondo de Cultura Económica, 1994. p. 413-414.

            13 Entre pares não há superior.

            14 REMIRO-BROTÓNS, op.cit., p. 793, nota 12.

            15 MAGALHÃES, op.cit., pp. 128-129, nota 6 e DEAK, op.cit., p. 414, nota 12.

            16 BYERS, Michael. Custom, power and the power of rules. Cambridge: Cambridge University Press, 1999. pp. 110-111. Nesse sentido, ver também The Australian Law Reform Comission, op. cit.

            17 BYERS, op.cit., p. 110, nota 16.

            18 CAPLAN, op.cit., p. 753, nota 10.

            19 BYERS, op.cit., pp. 110-111, nota 16. Tradução do autor. A versão original é a seguinte: [However], an examination of the history of State immunity, which is primarily a history of national court judgments and national legislation, indicates that absolute immunity was not an established rule. Rather, history suggests that there was no general rule regulating State immunity from jurisdiction prior to restrictive immunity becoming a rule of customary international law, and that a mistaken belief in such a pre-existing rule served to retard that later development.

            20 BYERS, op.cit., p. 111, nota 16. Também o professor Joseph W. Dellapenna, da Villanova University, informa a existência de julgados, ainda no século XIX, adotando restrições à imunidade de Estado. Ver DELLAPENNA, Joseph W.. Foreign State Imunnity in Europe. New York International Law Review, New York,especialmente p. 56, Summer, 1992.

            21MURRAY, Michael D. Jurisdiction under the foreign sovereign immunities act for nazi war crimes of plunder and expropriation. New York University Journal of Legislation and Public Policy, New York, p. 225, 2003-2004. Tradução do autor. A versão original é a seguinte: "It is my position that the principles of the restrictive theory were adopted and applied by the united States courts early in the nineteenth century, starting with three landmark decisions of the Marshall court, and that only for a brief period from 1926 to 1938 did the United States Supreme Court send a mixed message concerning the absolute theory of sovereign immunity that contrasted with the more restrictive message being espoused by the State Department and executive branch during the same period."

            22 A decisão pode ser encontrada na íntegra em < http://press-pubs.uchicago.edu/founders/documents/a1_8_11s14.html>

            23 Neste sentido, ver: Australian Law Reform Comission (1984) Report No.24: Foreign State Immunity, Canberra: Australian Government Printing Office, 1984. Disponível em: < http://www.austlii.edu.au/au/other/alrc/publications/reports/24>. Acesso em: 15 jan. 2005; REMIRO-BROTÓNS, op.cit., p. 797, nota 11; CAPLAN, op.cit., p. 745, nota 9; SHAW, op.cit., p. 492, nota; BROWNLIE, Ian. Principles of public international law. 5.ed. New York: Oxford University Press, 1998. p.328; BUERGENTHAL, Thomas; MAIER, Harold M. Public international law in a nutshell. St. Paul: West Publishing Co., 1990. p. 222; GAILLARD, Emmanuel; PINGEL-LENUZZA, Isabelle. International organisations and imunnity from jurisdiction: to restrict or to bypass. International e Comparative Law Quarterly, Oxford, v.51, part 1, p. 1, jan. 2002; BLAKESLEY, op.cit., p. 506-507.

            24 Cf. HARRIS, D. J. Cases and materials on international law. 5. ed. Londres: Sweet e Maxwell, 1998. p. 308 e CAPLAN, op.cit., pp. 745-746, nota 10.

            25 The world being composed of distinct sovereignties, possessing equal rights and equal independence, whose mutual benefit is promoted by intercourse with each other, and by an interchange of those good offices which humanity dictates and its wants require, all sovereigns have consented to a relaxation in practice, in cases under certain peculiar circumstances, of that absolute and complete jurisdiction within their respective territories which sovereignty confers.

            26 This full and absolute territorial jurisdiction being alike the attribute of every sovereign, and being incapable of conferring extra-territorial power, would not seem to contemplate foreign sovereigns nor their sovereign rights as its objects. One sovereign being in no respect amenable to another; and being bound by obligations of the highest character not to degrade the dignity of his nation, by placing himself or its sovereign rights within the jurisdiction of another, can be supposed to enter a foreign territory only under an express license, or in the confidence that the immunities belonging to his independent sovereign station, though not expressly stipulated, are reserved by implication, and will be extended to him.

            27 "This perfect equality and absolute independence of sovereigns, and this common interest impelling them to mutual intercourse, and an interchange of good offices with each other, has given rise to a class of cases in which every sovereign is understood to wa[i]ve the exercise of a part of that complete exclusive territorial jurisdiction, which has been stated to be the attribute of every nation."

            28 "(…) there is a manifest distinction between the private property of the person who happens to be a prince, and that military force which supports the sovereign power, and maintains the dignity and the independence of a nation. A prince, by acquiring private property in a foreign country, may possibly be considered as subjecting that property to the territorial jurisdiction, he may be considered as so far laying down the prince, and assuming the character of a private individual, but this he cannot be presumed to do with respect to any portion of that armed force, which upholds his crown, and the nation he is entrusted to govern."

            29 "It is, we think, a sound principle, that when a government becomes a partner in any trading company, it divests itself, so far as concerns the transactions of that company, of its sovereign character, and takes that of a private citizen. Instead of communicating to the company its privileges and its prerogatives, it descends to a level with those with whom it associates itself, and takes the character which belongs to its associates, and to the business which is to be transacted. (. . .) The State of Georgia, by giving to the Bank the capacity to sue and be sued, voluntarily strips itself of its sovereign character, so far as respects the transactions of the Bank, and waives all the privileges of that character. As a member of a corporation, a government never exercises its sovereignty". Disponível em < http://press-pubs.uchicago.edu/founders/documents/amendXIs5.html > Acesso em 15/01/05.

            30 Cf. MURRAY, op.cit., p. 246, nota 21.

            31 MURRAY, op.cit., p. 252, nota 21

            32 MURRAY, op.cit., pp. 251-252, nota 21. Tradução do autor. A versão original, em inglês, é a seguinte: "In cases where it appeared that a vessel was possessed and operated by a foreign government directly, and where extension of the immunity would serve its ends, the State Department tended to make a direct suggestion of immunity.

            In cases where the circumstances did not indicate that the foreign sovereign directly possessed and operated a vessel, or where extension of immunity would not serve its purposes, the State Department tended not to take a position in the matter. This was also true in cases where the foreign sovereign was not considered to be "friendly," or in situations where the U.S. government had broken off relations with the foreign sovereign."

            33 O ofício está transcrito, na íntegra, em CARTER e TRIMBLE, op. cit., pp. 601-603.

            34 "The Department of State has for some time had under consideration the question whether the practice of the Government in granting immunity from suit to foreign governments made parties defendant in the courts of the United States without their consent should be changed. The Department has now reached the conclusion that such immunity should no longer be granted in certain types of cases".

            35 "It is thus evident that with the possible exception of the United Kingdom little support has been found except on the part of the Soviet Union and its satellites for continued full acceptance of the absolute theory of sovereign immunity. There are evidences that British authorities are aware of its deficiencies and ready for a change".

            36 Os países são Áustria, Bélgica, Chipre, Holanda, Luxemburgo, Reino Unido e Suíça.

            37 General Assembly Resolution 174(II) of November 21, 1947. G.A. Res. 174(II), U.N. Doc. A/519, at 105 (1948).

            38 G.A. Res. 36/39, 36 U.N. GAOR Supp. (No. 51) at 18, U.N. Doc. A/36/51 (1982)

            39 Para maiores informações sobre a Comissão de Direito Internacional (CDI), sugerem-se as obras de SINCLAIR, Ian. The international law commission. Cambridge: CUP, 1993 e MORTON, Jeffrey S. The international law commission of the United Nations. Columbia: University of South Carolina Carolina Press, 2000, bem como o acesso à página da CDI: http://www.un.org/law/ilc/index.htm

            40 Cf. HEß, Burkhard, op.cit., p. 270, nota 11.

            41 "Beyond that principle there is no common ground. It is left to each State to apply the principle in its own way and each has applied it differently. Some have adopted a rule of absolute immunity which, if carried to he logical extreme, is in danger of becoming an instrument of injustice. Others have adopted a rule of immunity for public acts but not for private acts, which has turned out to be an elusive test. All admit exceptions. There is no uniform practice. There is no uniform rule". A decisão aparece em FOX, Hazel. The law of state immunity. Oxford: OUP, 2002, p. 36.

            42 O Estatuto da CIJ pode ser encontrado na página daquela corte: < http://www.icj-cij.org/icjwww/ibasicdocuments/ibasictext/ibasicstatute.htm > Acesso em 16/01/2005.

            43 Partes relevantes da decisão aparecem na obra de HARRIS, D.J. op cit., pp. 24-25, nota 24.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SALIBA, Aziz Tuffi. A imunidade absoluta de jurisdição de Estados: "sólida regra costumeira" ou mito?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1464, 5 jul. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/10107. Acesso em: 25 abr. 2024.